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Fosso cultural existe até na sátira

A sátira frequentemente é uma questão cultural (charge de Jules Stauber, Edições Nebelspalter) Nebelspalter-Verlag

O choque causado pelo massacre de janeiro no semanário francês Charlie Hebdo suscitou novamente o interesse pela imprensa satírica, inclusive suíça. O riso e o humor não param forçosamente nas fronteiras culturais, mas a caricatura têm códigos que não são universais.

“Desde o assassinato de seus camaradas de Charlie Hebdo, Vigousse recebeu numerosos testemunhos e encorajamentos a continuar na sátira sem amolecer”. É assim que o “pequeno satírico romando” (da Suíça de expressão francesa),  como ele próprio se qualifica com modéstia, agradecia a seus leitores e suas 400 novas assinaturas, trazidas pela imensa vaga em favor da liberdade de imprensa depois do drama parisiense.

A capa de «Vigousse» depois do atentado. vigousse.ch

“Dois doentes mentais armados que cometeram aquele horror e as centenas de milhares de pessoas que protestaram, é maravilhoso, a liberdade de expressão nunca teve tantos adeptos!” afirma Laurent Flutsch, redator-chefe adjunto de Vigousse. Tomara que dure, é preciso acrescentar

Liberdade de imprensa e/ou autocensura

Dominique von Burg, presidente do Conselho Suíço da Imprensa, espera, por sua vez, que esse “trágico caso sirva de alento” para a liberdade de imprensa, que vem perdendo espaço. “Estamos em um período em que a autocensura é muito forte… principalmente nos Estados Unidos onde reina o politicamente correto e uma espécie de psicose que valoriza ainda mais a coragem de ‘Charlie’. Ter a coragem da provocação sistemática em nome da liberdade de expressão é uma chance.”

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Töpffer, precursor da charge política

Este conteúdo foi publicado em Formado em Paris sob a Revolução Francesa, o pintor suíço Wolfgang-Adam Töpffer (1766-1847) se inspirou de chargistas ingleses muito em voga durante a segunda metade do século 18 para denunciar tanto a política quanto os costumes e a religião. Esse novo gênero encontra um eco particular em Genebra, que atravessa uma época de embates políticos…

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“A charge é um instrumento privilegiado de propaganda porque é um pensamento visual, discursivo, conceptual que pode ser forte”, constata Philippe Kaenel. Mas esse professor de história da arte na Universidade de Lausanne é comedido: “A autocensura é indispensável a um órgão público. Não se pode dizer espontaneamente tudo o que temos no coração, senão provocamos polêmico não racional. Implicado um cuidado às mídias, a charge trabalha com códigos, registros et entrechoque de referências comuns.”

Nos órgãos de imprensa que utilizam a charge, o cartunista tem um status de comentarista e deve submeter os trabalhos (em geral, ele propõe vários), que serão aceitos ou não pela direção. Assim, o Vigousse pode recusar charges por várias razões, segundo Laurent Flutsch. “Por outro lado, na internet as charges são publicadas sem muitas discussões, livres, desconectados do contexto original. Afinal, o ‘Charlie’ é uma revista de Paris e não uma mídia universal”, Philippe Kaenel.

Ele precisa que Charlie Hebdo faz parte de “uma tradição francesa voluntariamente um pouco anarquista, em particular nos anos 1900, com uma violência extrema que não passaria mais hoje em dia”. Na Suíça, Vigousse (que publica charges de Charlie Hebdo) foi criado pelo chargista francês Barrigue e é uma espécie de transplantação da sátira francesa. 

“Não estamos no paraíso?” “Certamente não, senão vocês veriam Maomé” (Swen Wegmann, “Nebelspalter” depois dos atentados contra “Charlie Hebdo”. Swen, Nebelspalter

Denunciar antes de zombar

Com nuances. Na época, Vigousse não publicou as caricaturas de Maomé, “porque elas não nos pareciam muito engraçadas e teria sido apenas para seguir”, explica Laurent Flutsch. “A contestação e a charge são nossos motores. Uma desejo é uma denúncia, não apenas zombaria, mas a ideia de chocar uma comunidade não é um critério. Senão, somos atentos a não inutilmente ‘trash’ ou escatológicos. Podemos atacar sem ser vulgar, feroz na fineza”, acrescenta o redator-chefe adjunto do semanário satírico.

Nessa matéria, a Suíça de expressão alemã é tradicionalmente mais consensual, mais “gentil”, segundo alguns francófonos. O que pensa o redator-chefe do principal jornal satírico em alemão, o Nebelspalter? “A provocação e a insolência são uma alternativa, mas também podemos dizer muitas coisas entre as linhas, não mais gentis, mas mais sutil às vezes. Nosso sistema é também muito diferente do francês, o processo de decisão, a concordância, a democracia direta, etc., é tudo menos um poder forte e poderosos como nos países vizinhos”, responde Marco Ratschiller.

Culturas satíricas diferentes

Ele fala também de diferença cultural. “A sátira romanda (e a francesa ainda mais) é mais agressiva, mais desavergonhada do que na Suíça alemã e na Alemanha. Em nossos jornais, o jornalismo de investigação é separado do comentário ou da charge que, ao contrário, dão certo na mídia francófona.”

Principais títulos satíricos suíços

O semanário francófono Vigousse (12.000 exemplares), criado em 2009 por Barrigue (filho do chargista francês Piem) juntamente com Laurent Flutsch ePatrick Nordmann.

O mensal germanófono Nebelspalter (21.000 exemplares), criado em 1875 por Jean Nötzli em Zurique sobre le modelo do Punch inglês.

Le mensal La Tuile (2.500 ex.) foi criado em 1970 no cantão do Jura pelo panfletário Pierre-André Marchand.

O bimestral La Distinction (l987), revista de crítica social, política, literária, artística, cultural e culinária, que atribui todo ano o Grande Prêmio de Champignac para a frase mais ridícula de um personalidade política.

O bimensal Il Diavolo (4.000 ex.), criado em 1991 no Ticino (sul) pelos membros do Partido Socialista Autônomo e dirigido pelo chargista Corrado Mordasini.

Enquanto a maioria dos jornais suíços em francês empregam um chargista, o Tages-Azeiger é o único jornal em alemão a publicar diariamente uma charge com valor de editorial. O semanário NZZ am Sonntag encomenda regularmente charges ao francófono Chappate. Mas são apenas esses. “Os chargistas da parte francesa são conhecidos e solicitados na Suíça alemã porque eles têm o estatuto de jornalistas da redação. Na parte alemã não é o caso e é uma pena porque priva a nova geração de ocasiões de aprender esse ofício”, acrescenta Marco Ratschiller.

A Suíça francesa tem há muito tempo, de fato, numerosos jornais ilustrados que permitem aos chargista e desenhistas de se formar e de contribuir à riqueza dos quadrinhos, um gênero que também tem dificuldade de entrar na Suíça alemã.

Apesar das diferenças culturais gráficas e satíricas, o Nebelspalter é o mais antigo jornal ilustrado do mundo, porque ela sai uma vez por mês desde 1875. É um dos particularismos suíços, como também o número recorde de publicações por habitante.

Muitos chargistas de primeiro plano

Além disso, a Suíça é particularmente bem colocada no plano político pois não existe censura. “A liberdade de expressão é garantida na Constituição desde 1848”, lembra Philippe Kaenel.

“A charge suíça não é tão espetacular que a inglesa ou francesa, ela nunca teve talentos como Daumier. Mas há uns 40 anos, temos chargistas e ilustradores de primeiro plano que reagem também aos acontecimentos internacionais”, acrescenta Philippe Kaenel.

No esforço de ultrapassar fronteiras culturais, o Nebelspalter co-organiza desde 2007 em Berna “Gezeichnet” (desenhado), uma exposição de cerca de 50 chargistas de todo o país, que apresentam suas quatro melhores charges do ano.

Não há normas na Suíça

A Constituição garante a liberdade de expressão e o Supremo Tribunal Federal exige que sátira seja reconhecida, que ela não ultrapasse “de maneira intolerável os limites próprios à sua natureza”. Houve tentativas de censura prévia no início do século 20 e durante a Primeira Guerra Mundial (tomadas de posição muito favoráveis aos beligerantes)”, mas a liberdade é em geral garantida desde 1848.

A Autoridade Independente de Exame de Queixas em Matéria de Radio e Televisão define a sátira como “um meio particular de expressão no qual a forma não coincide conscienciosamente com a mensagem visada”, ou seja, que o público possa reconhecer o princípio satírico.

O manual do Conselho Suíço da Imprensa suíça lembra que a deontologia também se aplica aos temas satíricos. Em 2006, ele se pronunciou a respeito das charges de Maomé do jornal dinamarquês  Jyllands-Posten retomadas por Charlie Hebdo: ele estima que deve ser possível ilustrar o “grave conflito” entre a liberdade do comentário e respeito da religião “com citações em imagens bem enquadradas”, mas  que seria problemático publicar as charges sem comentário.

 (Fonte: «La satire face à la justice»Link externo)

Adaptação: Claudinê Gonçalves

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