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Os operários esquecidos da obra do século

Jose Carlos Vasconcelos fotografado com a roupa de trabalho durante os trabalhos de perfuração do túnel. Cortesia do entrevistado

A inauguração do túnel de São Gotardo teve pompa e festa. A imprensa mundial deu-lhe destaque de primeira página, mas os holofotes estiveram demasiado ocupados com os convidados VIP para lembrar os operários que ali trabalharam durante os quase 20 anos de construção. É do que se queixam, decepcionados, alguns dos operários portugueses.

“A imprensa portuguesa noticiou a inauguração do túnel do São Gotardo deixando no esquecimento todos os portugueses que lá trabalharam”, disse Nuno Fernandes à swissinfo.ch, um dos primeiros operários portugueses do mais longo túnel ferroviário do mundo.

Habita em Erstfeld, cantão de Uri, e trabalha desde Julho de 2002 nas obras da entrada norte. “Foram 14 anos da minha vida”, insiste, solene. Natural de Viseu, chegou à Suíça há 25 anos, ainda adolescente. Hoje tem 37 e continua a trabalhar no túnel, agora ao serviço de uma empresa francesa que faz a sinalização para alta velocidade.

Diz-se magoado por não ter visto nas médias de Portugal referências aos operários portugueses. Nas notícias sobre a cerimónia de inauguração de 1 de Junho falou-se de Angela Merkel, François Hollande e Matteo Renzi, mas nada sobre quem ali trabalhou “no duro e no frio”. “Não fui só eu que aqui trabalhei, mas custou-me terem-nos esquecido”, confessa Nuno Fernandes.

Condições difíceis

Recorda com gosto e com emoção na voz este “pedaço de vida” a lutar contra a rocha alpina: “Quando comecei, éramos poucos portugueses, fui um dos primeiros três ou quatro na parte norte”. Durante nove anos e quatro meses integrou as equipas encarregadas da perfuração. Conta que o primeiro ano foi o mais penoso, não só porque era o início e teve de se adaptar, mas porque a tarefa era especialmente exigente: “ajudei a furar um túnel pequeno, foram dias de trabalho muito pesado, em condições difíceis.”

Durante todos estes anos trabalhou com operários de vários países, principalmente alemães, austríacos, italianos e alguns vindos da ex-Jugoslávia. Nem sempre foram dias felizes: “Vi morrer um colega austríaco que trabalhava ao meu lado quando lhe caiu em cima uma bobina de cabo.”

Foi só quando começaram as perfurações no túnel que vieram mais portugueses, a partir de 2008. Nuno Fernandes dá valor a uma imagem de honestidade e competência que os portugueses construíram na Suíça e lamenta que nos últimos anos esta imagem nem sempre seja mantida. “Alguns dos que já cá estão não sabem ser desinteressados em ajudar os compatriotas, e até abusam e exploram”, constata, acrescentando que “também há quem depois de ser ajudado quando já encontrou trabalho e não precisa nem ‘Bom dia’ diz a quem lhe deu a mão.” 

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Operário continou na Suíça

José Carlos Vieira de Vasconcelos já deixou o São Gotardo. Trabalha actualmente na construção de uma barragem em Martigny. Durante cinco anos, de 2007 a 2012, foi encarregado de obras nas operações de betonagem no túnel: “Durante sete dias fazíamos o turno de 12 horas de dia, tínhamos em seguida sete dias livres e depois outros sete em turno de noite”. Foi um dos muitos operários portugueses que trabalharam no São Gotardo. Tem 48 anos de idade, já conta 13 de trabalho na Suíça e antes 12 na Alemanha.

Apesar de estar muito satisfeito com o trabalho que tem feito fora de Portugal e com a forma como nestes países tem sido tratado, não se decidiu a trazer a mulher e os dois filhos para a Suíça: “Estão em Marco de Canavezes, a nossa terra, e vou regularmente a casa, aproveito todos os períodos de pausa entre turnos para ir lá”.”

Os filhos têm visitado todas as obras onde tem trabalhado, vieram também conhecer o São Gotardo, mas o filho não quer seguir as passadas do pai, não partilha do fascínio que o pai tem pelo trabalho debaixo de terra. José Carlos tenciona um dia voltar definitivamente a Portugal, mas não o incomoda nada trabalhar no estrangeiro: “Gosto disto, desta vida no estrangeiro. Não saí de Portugal só para procurar trabalho, vim também porque gosto disto, sinto-me muito bem aqui. Aqui tratam-nos bem, no nosso país somos praticamente explorados.”

Riscos embaixo da terra

O trabalho no túnel foi pesado, mais difícil nos turnos da noite, mas diz que “acabámos por nos habituar” e que as relações de trabalho eram muito boas. Fala com orgulho da obra e quase com o mesmo entusiasmo sublinha que “em Martigny há seis turbinas, vale a pena ver este trabalho debaixo de terra”.

Louva o nível de segurança na obra, explica que quando as máquinas perfuram em rocha mole podem acontecer desabamentos, mas ressalva que “os acidentes dão-se principalmente por motivo de falha humana: quando começamos a ganhar experiência aventuramo-nos, descuidamos a segurança, por isso é acho muito útil as formações que regularmente temos de fazer e que nos recordam as regras de segurança”.

Dentro de uma galeria há sempre umas 200 ou 300 máquinas e comboios que transportam o betão e outros materiais e “é preciso muita atenção para não ficarmos debaixo de uma máquina ou de um comboio que descarrile”.

Fim em 2020

Manuel Lages tem 49 anos e trabalha debaixo da terra desde que chegou há 12 anos à Suíça, vindo de Sever do Vouga, na região de Aveiro: “Dentro de um túnel é sempre noite, até esquecemos se quando entrámos brilhava o sol cá fora”.

O Gotardo foi o quarto túnel onde trabalhou, actualmente está em Martigny. Trabalhou nas obras do Gotardo cinco anos e meio, desde 2007. “Havia muitos portugueses, eram mais de 50% dos operários, mas trabalhei com muitos austríacos também, havia também alemães e italianos”, recorda.

A mulher e o filho de 11 anos vivem em Portugal, o filho mais velho trabalha com o pai. “Vou sempre duas vezes por mês a casa e com a minha idade já não planeio trazer a família para cá, conto voltar definitivamente na reforma”, explica.

Fica a pensar antes de responder se o trabalho era difícil, o Gotardo deixou-lhe memórias de “uns dias melhores e outros piores”. Durante alguns períodos trabalhava 14 dias seguidos em turnos de nove horas, a fazer moldes em betão para a estrutura dos tectos e das paredes do túnel.

Os trabalhos no túnel básico do São Gotardo ficarão concluídos totalmente só em 2020, mas a partir de Dezembro os comboios de alta velocidade poderão percorrer os 57,1 quilómetros do túnel em apenas 17 minutos, completando o percurso de Zurique a Milão em duas horas e 40 minutos – menos uma hora do que actualmente.

A partir do final do ano, deverão passar pelo São Gotardo diariamente cerca de 260 comboios de mercadorias e 65 de passageiros. No ponto onde atinge maior profundidade, o túnel está a 2,3 quilómetros debaixo de terra. Uma proeza de engenharia da qual os suíços se orgulham e que não teria sido realizada sem o trabalho de homens como Nuno Fernandes e José Carlos Vieira de Vasconcelos.

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