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Refugiados de famílias disfuncionais

Pessoas desembarcando de bote inflável
Situações de migração que podem levar a traumatismos: refugiados desembarcando de um bote inflável na ilha de Lesbos, na Grécia, em 3 de janeiro de 2016. Keystone / Santi Palacios

Você, migrante: que carrega sentimento de culpa por ter ido embora e acredita que sua família, que ficou no Brasil, usa isso para se aproveitar; que se sente explorado financeiramente pelos parentes, que acham que quem mora fora nada no dinheiro. No dia 1º de junho foi comemorado o Dia Mundial da Consciência do Abuso Narcísico, o que nos leva a refletir sobre esse assunto tabu.

Filhos vítimas de pais com transtorno de personalidade narcísica Link externocostumam buscar a migração como remédio. O problema é que, mesmo longe de casa, convivem com a culpa que aprenderam a carregar desde criança. Muitos filhos sentem-se na obrigação de enviar dinheiro aos familiares, tentam comprar o amor com presentes caros, se colocam na obrigação de passar férias com eles, mesmo se incomodando com a presença. Mentiras, descaso, assédio moral e até sexual são a realidade desses sofredores, que vão embora de casa, mas não conseguem tirar o inimigo tão íntimo de suas vidas, mesmo que a oceanos de distância. 

Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

O transtorno de personalidade narcísica é pouquíssimo discutido na comunidade de psicologia internacional e menos ainda pelos profissionais brasileiros. Nos Estados Unidos, o assunto começa a se popularizar. No Brasil, poucos tratam do tema. 

Como o próprio nome diz, trata-se de um transtorno de personalidade. Nesse caso específico, caracterizado por um padrão generalizado de grandiosidade, necessidade de adulação e falta de empatia. O diagnóstico é feito por critérios clínicos. 

Mas o que isso tem a ver com a coluna Suíça de Portas Abertas? Tudo, porque muitas desses sofredores de assédio moral procuram a vida no exterior como escape para as dores que trazem desde a infância, causadas por pais com esse distúrbio. Então, você que vive fora do país e sempre se sentiu um excluído na família, que sente culpa e é manipulado por seus parentes, pode ter saído do país à procura de paz, de uma nova vida, ignorando que o mal que sofria era bem maior do que imaginava. 

Rosto de mulher
“…Querer migrar, em alguns casos, pode ser resultado de um desajuste, até de uma doença”, diz Andrea Sebben. swissinfo.ch

– Conheci pessoas que disseram se sentir estrangeiros dentro de casa. O passo para migrar e viver bem longe dos familiares foi somente o primeiro na busca de libertação. O problema é que se a pessoa não resolve esse dilema, continua prisioneiro mesmo vivendo a muitos mil quilômetros de distância”, explica a psicóloga Intercultural Andrea SebbenLink externo, especialista em movimentos migratórios, conhecedora profunda do Abuso Narcísico entre seus clientes em 25 anos de profissão. Como especialista nos dois assuntos, consegue ver um ponto de encontro entre os dois fenômenos. Andrea Sebben falou com a swissinfo.ch de Florianópolis, cidade onde vive. 

swissinfo.ch: O que é exatamente o Transtorno Narcísico? Poderia dar exemplos?

Andrea Sebben: Em geral, as pessoas que têm esse transtorno fazem sofrer quem está em volta. São em geral mães ou pais que se importam muito com a sua imagem externa; mas em casa, na intimidade, são cruéis. Na rua, uma mãe dedicada; entre quatro paredes, totalmente diferente. O grau de empatia é geralmente muito baixo. 

Trata-se de seres delirantes, que criam a realidade deles. Por essa razão, nunca pedem desculpas pelo que fizeram. Como são narcisistas, se consideram sempre corretas e maravilhosas. Elas não reconhecem qualquer falha.

Vou te dar um exemplo. A mãe que chora quando visita o filho que mora fora, mas quando o dinheiro para de ser enviado, para de telefonar. 
Geralmente, se a mãe é a personagem narcísica oculta, que é aquela que faz o papel de boazinha fora de casa, cria-se uma família disfuncional de padrão narcísico. O pai em geral é cúmplice, codependente e ao mesmo tempo manipulado. 

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Nessa dinâmica doentia, existem dois tipos de filhos: o bode expiatório e o de ouro. E se houver um terceiro, temos o perdido, que em geral não tem identidade. O primeiro nunca está certo, arruma problema com os pais e em geral não traz as características do Narcísico. Consegue se salvar. Exatamente esse é o que precisa ir embora. É o que mais sofre, funciona como a ovelha negra. O dourado é o “queridinho” e repete as maldades, embora de certa forma tenha toda sua identidade sequestrada. Por isso os especialistas falam em família disfuncional. Cada um tem um papel nessa corrente narcísica. 

E há muita gente nessa situação. A psicologia fala em 7% de prevalência do Transtorno de Personalidade Narcísica (ou NP’s, como são conhecidos). Mas os especialistas já discutem um índice de 30%. E dentro do grupo de migrantes, provavelmente esse grupo é muito maior. 

swissinfo.ch: E por que se fala tanto em mãe e pai? Pode haver chefes, tios, amigos narcísicos também, não é?

A.S.: Pode sim, mas pai e mãe estão incluídos na forma mais destruidora. Exatamente pelo tabu de amor incondicional. Essas vítimas vivem em transe, acreditam que foram amadas, embora sintam-se forasteiras. 

swissinfo.ch: E por que ainda esse conceito é tão pouco difundido, tão pouco falado?

A.S.: Infelizmente ainda se trata de um tabu na sociedade. Quem não se dá bem com a mãe é um eterno desgraçado, quase um criminoso. Vivemos em um mundo de mães perfeitas, sagradas, até mesmo a psicologia reluta em abordar o tema. Revelar que foi vítima de mãe ou pai narcísico faz com que as pessoas te julguem, achando que a força da gratidão deve ser maior do que qualquer outra. Como ser grato a um abusador?

swissinfo.ch: Como você começou a desconfiar dessa coincidência, desse encontro da migração como válvula de escape para uma família disfuncional narcísica?

A.S.: Já tive mais de 15 mil clientes expatriados e migrantes, ouvi as mais diferentes histórias. Executivos que não se julgam merecedores dos cargos que ocupam, duvidando de suas condições. Adolescentes sendo expelidos de casa como um fardo ou escapando como sobreviventes de abusos emocionais e, inclusive, sexuais. 

Esposas que não conseguem desfrutar do seu lugar de valor como mãe, esposa ou profissional. Por vezes, essas vítimas culpam a situação migratória, mas ao analisarmos a situação mais profundamente, vemos que são feridas trazidas na mala e que apenas sangram mais fortemente na distância. 

Querer migrar, em alguns casos, pode ser resultado de um desajuste, até de uma doença. Pode acontecer que essas pessoas insatisfeitas em casa precisem sair. Existem dois tipos de escolha nesse caminho: a consciente e a inconsciente. Há estudos concretos nessa área, mas não temos nada ainda que cruze a vítima de transtorno narcísico com a necessidade de curar a ferida pelo distanciamento, ou seja, a migração. 

Muitos dizem que estão deixando o país porque querem melhorar o currículo, porque precisam de novos ares. Mas, muitas vezes, o que existe é um ardor, uma fratura de vida que vai tentar ser curada com o ato de ir embora – o que eu acho excelente. 

No entanto, sem consciência isso poderá custar um certo pedágio. Quando a vítima tenta quebrar essa cadeia de assédio, a maldição da culpa se estabelecerá, tornando os tentáculos da família disfuncional alcançável até mesmo quando separados por oceanos. 

swissinfo.ch: E como se dá essa capacidade inquebrantável do assédio, até mesmo com oceanos de distância?

A.S.: Nessas famílias, a relação principal não é o amor, mas a culpa, aliada à vergonha e ao medo. Se a vítima acha que quebrando a extensão narcísica com a distância conseguirá se livrará, está enganada. Isso pode ser visto na quantidade de pessoas que se matam de trabalhar para mandar dinheiro para a família, que se sentem culpadas por ter deixada os parentes para trás, que são manipuladas. 

Há quem ceda a inúmeras chantagens e compre presentes, tentando, na verdade, comprar o amor que nunca tiveram. A culpa é a maldição que essas pessoas carregam. 

E não são somente pessoas com dificuldades financeiras passam por situação de exploração. Tive uma cliente que estudava nos Estados Unidos e a mãe controlava, telefonava chorando, para que a filha se sentisse culpada. 

Um expatriado que atendi disse que a mãe o obrigava a telefonar todos os dias no mesmo horário, para que ela visse o neto. Essa obrigatoriedade gerava um mal-estar no relacionamento e na dinâmica dessa família. Do Brasil, ela dizia que o filho ingrato a havia abandonado, que ele a tinha proibido de ver o neto.

swissinfo.ch: E como então quebrar essa cadeia?

A.S.: A vítima precisa fazer terapia. Os agressores nunca irão se enxergar como errados. Eles são narcísicos, não erram. Esse é o script. Mas cuidado: não vá procurar uma psicoterapeuta convencional, que desconheça esses novos conhecimentos. Sem a competência necessária, a vítima pode ser abusada novamente pelo próprio psicoterapeuta em não validar ou aceitar os fatos que são narrados.  

O bom dessa história é que a migração pode funcionar como o início da consciência. Viver longe do país e da cultura faz com que as pessoas comecem a enxergar outros pontos de vista. Como eu já escrevi em um de meus livros, o Intercâmbio CulturalLink externo, migrar é a arte do encontro, consigo mesmo e não com o outro. E esse encontro é em 100% das vezes libertador. 

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