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Bispo do Xingu diz que deputado “demoniza indígenas”

Cartaz do 6° Fórum Internacional de Direitos Humanos de Lucerna (desenho do centenário artista suíço Hans Erni). IHRF

Em entrevista à swissinfo durante um fórum internacional de direitos humanos na Suíça, dom Erwin Kräutler critica o projeto de lei contra infanticídio entre indígenas e defende o diálogo da Igreja Católica com as religiões naturais.

O bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) adverte também que a Amazônia sofrerá um novo golpe se o governo não tomar providências drásticas.

O bispo Erwin Kräutler, de 69 anos, austríaco naturalizado brasileiro, comanda desde 1981 o maior bispado do Brasil, com 350 mil km2 – quase nove vezes o tamanho da Suíça –, 500 mil habitantes (dos quais 8 mil índios), 750 comunidades, 40 religiosos e 26 padres.

Em quase três décadas à frente da Prelazia do Xingu, com sede em Altamira (PA), e como presidente do CIMI, ganhou fama no país e no exterior como “bispo dos índios”. Além de defender a causa indígena, é um dos líderes do movimento contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Depois de denunciar a atuação de fazendeiros e grileiros, e a exploração sexual de adolescentes por políticos, foi ameaçado de morte e se encontra há dois anos sob proteção policial.

swissinfo conversou com Kräutler durante o 6° Fórum Internacional de Direitos Humanos, realizado esta semana (5 e 6/5), em Lucerna, no centro da Suíça. Durante o evento, cerca de 800 participantes de vários países discutiram as relações entre direitos humanos e religiões. (Leia a seguir um resumo das repostas do bispo – a íntegra pode ser ouvida nos áudios na coluna à direita.)

swissinfo: Como o senhor explica ao público suíço e internacional a situação dos direitos humanos no Brasil, especialmente no que se refere aos índios?

A primeira coisa que eu gostaria de dizer é que nós temos uma Constituição que pode ser mostrada mundo afora. Creio que não há outra Constituição no mundo que defenda tanto os direitos dos povos indígenas como a brasileira. O artigo 231 é claro e inequívoco. O problema no Brasil é que o salto do texto da Constituição para a realidade nos custa muito. Muitas vezes falta vontade política para levar isso adiante ou há interesses contrários à própria Constituição e nada acontece.

Quais são os maiores problemas que existem nesse sentido no Xingu?

São os problemas de terra, não só no Xingu como em toda a Amazônia. A terra indígena não é respeitada porque os índios estão em áreas ricas em minérios, madeiras, áreas cobiçadas por grandes latifundiários que querem derrubar a selva milenar, e aí se cria o conflito. E, quando se trata de terras demarcadas, aí piora. As leis brasileiras defendem as terras indígenas, mas certos brasileiros não respeitam essas leis. Tivemos agora o caso emblemático da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, em que os índios lutaram 30 anos para ter seus direitos garantidos. Mesmo depois da assinatura de demarcação das terras pelo presidente da República, cinco fazendeiros se julgavam acima da própria Constituição brasileira.

O senhor também disse na Suíça que o etanol vai aplicar o próximo golpe à Amazônia, um argumento que o governo brasileiro rebate veementemente.

Sustento isso. Fala-se agora que a Amazônia não vai ser atingida, mas eu não acredito nisso, porque se a soja é substituída pelo etanol, para onde a soja vai? Na Amazônia não se entra pela frente, se entra pelo quintal. Eu conheci o sul do Pará como selva, hoje você anda 150 quilômetros e não vê uma árvore. Se o Mato Grosso for destinado à produção do etanol, a soja vai ultrapassar a fronteira do Pará e não vai parar.

Então isso é um golpe no sentido que a última parte da floresta vai cair, se o governo não tomar providências drásticas. Uma delas é declarar as áreas indígenas porque quase a metade delas ainda não chegou aos trâmites finais do processo de demarcação. Em segundo lugar, o governo tem de favorecer as reservas extrativistas para uso sustentável. E a terceira coisa é ter a coragem de criar parques nacionais de florestas. Se continuarmos com as derrubadas e queimadas, vamos ser corresponsáveis pelas mudanças climáticas do planeta Terra. E eu acho que o Brasil não está interessado em ter essa corresponsabilidade.

Em Lucerna, o senhor participou de debates sobre direitos humanos e religiões. Como é a relação entre esses dois campos no Brasil?

É difícil de dizer. Como bispo católico, defendo que, para nós cristãos, os direitos humanos são inalienáveis, indiscutíveis. Talvez custemos a entrar nesse esquema porque os direitos são seculares, não emanam da Igreja. (…)

Quanto ao direito à liberdade religiosa, talvez tenhamos certa dificuldade em admitir que, em vez da nossa maneira de nos impor com nossos dogmas, deveríamos entrar mais em diálogo com outras religiões. Isso é cada vez mais importante no Brasil, onde as grandes religiões históricas estão representadas, além das religiões tradicionais dos povos indígenas, especialmente na Amazônia. Não podemos negar que os índios têm sua religião. Nós cristãos, no espírito do Concílio Vaticano 2°, deveríamos entrar em diálogo também com as religiões naturais, indígenas.

Isso significaria para a Igreja abandonar sua estratégia de evangelizar os indígenas como fez no passado ou ainda faz?

Nós estamos evangelizando. Evangelizar significa levar a boa nova aos povos indígenas, mas não uma boa nova que derruba as suas culturas. Eu estou sonhando com uma evangelização a partir de suas culturas. Qualquer religião é aberta a novos impulsos. A gente não pode comparar a religião católica de hoje com as tradições de 300 anos atrás ou com as celebrações de quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500 (…). Para mim, levar a boa nova é, em primeiro lugar, defender a vida física de um povo, seu meio ambiente e suas expressões culturais. Eu estou sonhando com uma Igreja que tenha um rosto indígena.

Certas expressões culturais dos indígenas não entram em conflito com os direitos humanos, por exemplo, no caso do projeto de lei que pretende combater o infanticídio entre indígenas? Como o CIMI vê esse projeto?

Isso faz parte de uma certa onda anti-indígena. Há casos de infanticídio, mas eu não vou chamar isso de cultura. Conto um caso que não terminou de maneira fatal: quando uma mulher de determinado povo ganhou gêmeas, ela devolveu uma das duas à terra, porque não tinha condições de carregar os dois bebês no peito ou nas costas e trabalhar na roça. A gente conseguiu em última hora tirar essa criança da terra e criar. E nunca mais aconteceu um caso desses.

A alternativa, em termos de legislação branca, seria condenar um povo por infanticídio ou colocar a mulher na cadeia. Ou, então, ter uma pedagogia para dizer “gente, isso não é necessário”. Qual é a melhor pedagogia: emanar leis da sociedade branca, condenando, ou ensinar com paciência e competência a esse povo que não é por aí, que a vida tem seu valor? Eu defendo a vida desde a concepção até a morte natural, inclusive dos povos indígenas. A pedagogia que nós usamos não é baixar uma lei nos moldes da sociedade envolvente branca, condenando sumariamente uma atitude que a pessoa que cometeu não entendeu como tal.

O senhor fala de casos isolados, mas o deputado Henrique Afonso (PT-AM), autor do projeto que está no Congresso, diz que “centenas de crianças são mortas anualmente em pelo menos 13 povos indígenas”.

Esse deputado tem de me provar que há centenas de casos. Ao dizer que há centenas de casos, que ele não consegue provar, ele está demonizando os povos indígenas. Não quer mostrar os povos indígenas como eles realmente são; quer dizer que eles são bárbaros, selvagens, bichos do mato, como estamos acostumados a ouvir. É uma maneira de demonizar os povos indígenas. Não nego que exista um ou outro caso. Agora, sempre insisto na nossa pedagogia junto a um povo que está acometido, vamos dizer, por um mal desse tipo.

O senhor defende a vida e já foi ameaçado de morte. É perigoso defender os interesses dos índios?

Ao se colocar em defesa dos povos indígenas, você contraria interesses poderosos. As ambições e a ganância de certa gente são tão grandes que eles não admitem que a gente defenda essas minorias étnicas. E aí começa todo tipo de difamação, de agressão e inclusive de escritos em jornais de que esse homem que está falando desse jeito tem que ser eliminado.

Não vou dizer que apenas minha defesa da causa indígena seja a razão disso. Há outras razões, por exemplo, sou contra a hidrelétrica Belo Monte, também por razões de certa maneira indígenas, mas não só. E depois eu denunciei casos absurdos de exploração sexual de menores. Isso criou o ódio. Inclusive fizeram uma ameaça em que marcaram o dia da minha morte, mas sobrevivi. Na Prelazia do Xingu continuo até hoje sob proteção policial, 24 horas por dia, faz dois anos. Por aí se pode imaginar como está a situação. Mas, mesmo assim, não vou arredar o pé. Eu sei que tudo o que falei e defendi até agora, vou continuar a defender e a falar.

A Ação Quaresmal Suíça (Fastenopfer, ligada à Igreja Católica da Suíça) é parceira do CIMI. Qual é a importância do apoio suíço ao seu trabalho?

Nós somos gratos por esse apoio, não só da Fastenopfer, como também da Igreja Evangélica na Suíça (através da ONG Pão para Todos – Brot für alle). Precisamos do apoio internacional para defender essa causa. Agora, apoio internacional não significa que nos deixemos orientar por decisões tomadas aqui. Nós sabemos perfeitamente o que é para fazer. O CIMI tem duas funções: uma é a presença ao lado dos povos indígenas, a outra é a conscientização do povo brasileiro em geral.

Geraldo Hoffmann, swissinfo.ch

Nasceu em 12 de julho de 1939, em Koblach, Vorarlberg, Áustria.

Em 1958 a 1959 ingressou na Congregação do Preciosíssimo Sangue em Schellenberg, Principado de Liechtenstein.

De 1959 a 1965, estudou Teologia e Filosofia em Salzburgo.

Veio ao Brasil em julho de 1965, após ser ordenado padre, para trabalhar como missionário entre os índios do Xingu.

Desde 1981, é bispo da Prelazia do Xingu, o maior bispado do Brasil em termos de área, com 500 mil habitantes (8 mil índios).

Foi presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) entre 1983 e 1991, e ocupa este cargo novamente desde 2006.

Por sua defesa dos índios e dos pobres, recebeu vários prêmios e distinções no Brasil e no exterior nos últimos 20 anos.

Detém vários títulos de doutor honoris causa, entre eles, um concedido pela Faculdade de Teologia de Lucerna (Suíça).

É autor de vários livros sobre a Amazônia e a questão indígena.

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