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Para o brasileiro ficar de pé

Democracia direta – Em toda a nossa história, o povo sempre esteve ausente da vida política. E um Estado de Direito só existe quando o cidadão controla a atuação dos governantes.

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Por Fábio Konder Comparato


Projetos de lei da democracia direta tramitam na Câmara e no Senado. Reuters

Minhas sugestões para um futuro programa de governo em matéria de democracia direta não são novas. Elas constam de um Projeto de Lei e de uma proposta de Emenda Constitucional, ambas em tramitação no Congresso Nacional. Em toda a nossa história, o povo sempre foi ausente da vida política. Ao desembarcar na Bahia em 1549, Tomé de Souza trouxe um minucioso Regimento de Governo, onde tudo estava previsto. Faltava apenas um elemento: não havia povo. Nossa primeira organização estatal assentou-se no vácuo.

Nossa independência, que paradoxalmente não foi resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o Rei de Portugal, mas de uma rebelião do povo português contra o rei do Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. Um observador judicioso, como Saint-Hilaire, pôde testemunhar a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: – Não terei a vida toda de carregar a albarda?

A mesma cena, com personagens diferentes, repetiu-se em 15 de novembro de 1889, com a manifestação do Marechal Deodoro e sua tropa no Campo de Santana: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada”.

Os constituintes de 1988, sob a pressão dos setores que se opunham ao regime empresarial-militar, concordaram em dar voz ao povo. Fizeram-no, porém, segundo nosso consagrado costume, usando de fórmulas de simples aparência, sem nenhum efeito prático.

O art.1°, parágrafo único da Constituição, ao proclamar que “todo poder emana do povo”, acrescentou que este o exerce não só por meio de representantes eleitos, mas também “diretamente”. O art.14 explicitou esse exercício direto do poder soberano sob três formas: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

Após haverem assim como de costume representado para a plateia, os constituintes, recolhidos aos bastidores, resolveram pôr as coisas em seus devidos lugares. O art.49, inciso XV, da Constituição determinou fosse da competência exclusiva do Congresso Nacional “autorizar referendo e convocar plebiscito”. Ou seja, o representado, no caso o povo dito soberano, só tem o direito de se manifestar em plebiscitos e referendos quando previamente autorizado pelo seu representante. Singular modalidade de mandato político.

Já quanto à iniciativa popular, a Constituição limitou-a à propositura de leis (art.61§ 2°), sem admiti-la para propostas de emenda constitucional, e sem dar aos projetos de lei oriundos do povo preferência alguma na tramitação parlamentar.

Inconformado com esse embuste político, resolvi em 2004 elaborar um anteprojeto de lei regulamentadora desses três institutos de democracia direta, apresentado à Câmara dos Deputados pelo Conselho Federal da OAB, tornando-se oficialmente o Projeto de Lei n° 4.718 daquele ano.

Nesse projeto de lei, determina-se que, tirante os plebiscitos e referendos obrigatórios, os demais serão de iniciativa própria do povo, ou de um terço dos integrantes de cada Casa do Congresso. Interpretando sensatamente o disposto no art.49, inciso XV da Constituição, dispõe o projeto que a atuação do Congresso Nacional, autorizando o referendo ou convocando o plebiscito, limita-se à simples confirmação de que todas as formalidades constitucionais foram observadas. Nada mais.

Segundo esse mesmo projeto de lei, constituiriam objeto de plebiscito assuntos determinados, entre os quais: a) execução de serviços públicos e programas de ação governamental, em matéria econômico-financeira e de políticas sociais; b) a privatização de bens públicos; c) a concessão, pela União Federal, a empresas sob controle estrangeiro, de pesquisa e lavra de recursos minerais e do aproveitamento de potenciais de energia hidráulica. No caso dessas duas últimas matérias, os referendos seriam obrigatórios. Ou seja, a decisão competiria somente ao povo, e não às autoridades governamentais.

Como se percebe, duas questões altamente debatidas no presente seriam decididas diretamente pelo povo e não pela Presidência da República: a notória deficiência em matéria de saúde e educação, denunciadas no Brasil inteiro durante as manifestações de junho de 2013, e a entrega a petrolíferas estrangeiras de mais da metade das reservas já prospectadas do chamado pré-sal.

Infelizmente, quando pressionada pelo povo em junho de 2013 para melhorar o funcionamento dos serviços públicos de natureza social, Dilma Rousseff resolveu sair pela tangente e sugerir, insensatamente, a realização de um plebiscito para a convocação de uma Assembleia Constituinte. Teria sido, no entanto, muito mais rápido e eficiente ordenar à base de apoio no Congresso que aprovasse o Projeto de Lei n° 4.718/2004 da Câmara dos Deputados.

Quanto à questão das reservas de petróleo, a presidenta entendeu que tais bens, pertencentes ao povo brasileiro, e dos quais a União Federal é mera administradora, poderiam ser alienados aos estrangeiros, a fim de aumentar o superávit primário das contas federais.

No tocante aos referendos, o citado projeto de lei determina terem eles por objeto não apenas leis ou atos administrativos, mas também emendas constitucionais, bem como tratados ou acordos internacionais. O projeto previu como obrigatório o referendo popular de toda e qualquer lei em matéria eleitoral, pois não faz o menor sentido que os parlamentares continuem a decidir com exclusividade a maneira pela qual são eleitos, sem que o povo, sempre aclamado como soberano, tenha voz ao capítulo.

Acontece que o projeto de lei, reunido a vários outros, foi submetido à relatoria de um deputado do PT que resolveu apresentar um substitutivo, eliminando totalmente o exercício direto do poder soberano pelo povo. Ou seja, continuamos na estaca zero.

Outro instituto de democracia direta sobre o qual me debrucei foi o referendo obrigatório de mandatos eletivos. Vale dizer, o recall dos americanos.

Minha proposta aos senadores Eduardo Suplicy e Pedro Simon, que a transformaram na Proposta de Emenda Constitucional n° 73, de 2005.

Segundo a PEC ainda em tramitação no Senado, transcorrido um ano da data da posse nos respectivos cargos, o presidente da República ou os integrantes do Congresso Nacional poderão ter seus mandatos revogados por referendo popular. Ou seja, se o povo elege, ele deve poder também destituir o eleito.

Quanto aos parlamentares, a PEC distingue o caso dos senadores, eleitos diretamente pelo povo de cada estado, e os deputados federais, cuja eleição é feita pelo sistema proporcional. Assim, enquanto os senadores podem ser destituídos diretamente pelo povo de cada estado, a revogação dos deputados federais far-se-á mediante a dissolução da Câmara dos Deputados, convocando-se nova eleição dentro do prazo de três meses.

Em ambos as hipóteses, tal como sucede em diferentes estados da federação norte-americana, o referendo revocatório dos mandatos será realizado por iniciativa popular. Mas aquele convocado para a revogação do mandato de presidente da República poderá também realizar-se mediante requerimento da maioria absoluta dos integrantes do Congresso Nacional, dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral. Uma vez aprovada essa PEC no Congresso Nacional, os estados e o Distrito Federal poderão alterar por emendas semelhantes suas respectivas Constituições.

Importa ressaltar que as disposições constantes, tanto do Projeto de Lei 4.718/2004 da Câmara dos Deputados quanto da PEC n° 73/2005 do Senado, uma vez aprovadas, viriam trazer notável aperfeiçoamento à nossa organização política. De um lado, a possibilidade de o povo brasileiro decidir diretamente, em plebiscitos e referendos, assuntos de interesse nacional, em lugar de se limitar a eleger seus mal chamados representantes, ou simplesmente protestar em praça pública, teria um efeito político da maior importância pedagógica para todos os cidadãos. De outro lado, o poder reconhecido ao povo de destituir os agentes políticos por ele eleitos daria a estes a consciência de sua subordinação à vontade popular, e contribuiria para elevar o nível de responsabilidade política.

Não sou, porém, ingênuo a ponto de acreditar que a classe política abrirá mão de suas prerrogativas sem uma forte pressão popular. Neste País, como bem diz o ditado, “quem pode manda e obedece quem tem juízo”.

Permito-me apenas indagar se o Brasil é realmente um Estado de Direito Democrático, como proclama nossa Constituição, sem que a atuação dos governantes seja minimamente controlada pelo povo. Até quando continuaremos a aceitar esse tipo de trapaça constitucional?

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