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Documento fundador da Suíça ganha nova exposição

O Museu da Carta Federal em Schwyz, no centro da Suíça. Keystone

O Museu da Carta Federal em Schwyz reabre após nove meses de reforma. Ele é conhecido na Suíça por abrigar um pergaminho de 1291, considerado até pouco como o "Santo Graal" que marcou o surgimento da Confederação Helvética. Apesar da importância hoje relativizada pelos historiadores, sua movimentada história e os mistérios que cercam o documento ainda fascinam muitas pessoas. 

“Wehrbereitschaft” (n.r.: Vontade de Defesa) é o nome da colossal estátua de bronze de um soldado vestindo o uniforme, com o dorso ainda nu. Ela decora o jardim do Museu da Carta Federal, no cantão de Schwyz (centro), e lembra, pela marcialidade e sisudez, outros monumentos no estilo soviético vistos em alguns cemitérios militares na Europa. Porém a obra do escultor suíço Hans Brandenberger (1912-2003) não tem uma história tão triste, pois foi realizada para uma exposição nacional dos anos 1930 e depois levada ao museu no momento da sua inauguração, em 1936.

Uma longa escadaria leva o visitante até um prédio alto, pintado de branco e sustentado por pilares que terminam em arcos. O interior está dividido em duas partes: no piso inferior, um grande salão; no andar superior, a sala com os documentos históricos. Segundo os especialistas, a construção reflete o período em que foi concebido, marcado pela crise econômica e ascensão do fascismo e nazismo. Seu principal objetivo era funcionar como arquivo do cantão de Schwyz, onde seriam guardados os principais documentos históricos da Suíça, dentre eles o mais importante de todos, a Carta Federal de 1291, considerada a partir de um comunicado do governo federal suíço em 14 de dezembro de 1889 como o pacto fundador Confederação Helvética (ler coluna à direita).

Carta Federal de 1291

A Carta (ou Pacto) Federal de agosto de 1291 é considerada como o mais antigo texto constitucional suíço. Através dela, as comunidades dos vales do Uri, Schwyz e Nidwalden, situados na região central da Suíça, formam uma aliança de proteção mutual contra ameaças externas. O texto também prevê a manutenção dos laços feudais e a proibição de juízes estrangeiros. Ele define também procedimentos jurídicos penais e civis, assim como de práticas de arbitragem entre os vales.

A Carta Federal só foi considerada oficialmente como ato fundador da Confederação Helvética a partir do fim do século 19. Essa reconsideração ocorreu a partir de uma decisão do governo federal na época, que se apoiou no documento para organizar uma festa de jubileu da fundação do país em 1891, declarando ao mesmo tempo em que 1º de agosto seria a Festa Nacional a partir de 1899.

A consagração da Carta Nacional como mais antiga constituição de uma aliança consentida na liberdade e ao longo dos séculos foi utilizada para reforçar a coesão do Estado federal democrático. Sob os efeitos das mudanças políticas ocorridas a partir de 1930, a Carta se transformou em símbolo de união em face de ameaças exteriores.

Hoje os historiadores consideram que a Carta Nacional foi apenas um pacto dentre outros firmados no fim da Idade Média. Ele também não teve a importância que foi dada na posteridade. Foi, sim, uma simples aliança de paz dentre outras. Nesse título, o texto não pode ser visto como uma declaração de independência de camponeses de caráter revolucionário. De fato, ela visava em primeiro lugar reafirmar a autoridade das elites locais.

A Carta Nacional ficou esquecida durante séculos, até ser descoberta em 1758 nos arquivos do cantão de Schwyz pelo historiador Johann Heinrich Gleser.

Fonte: Administração Federal


Uma catedral

O aspecto quase sacral não é coincidência. “Quando o museu foi aberto, o arquiteto tinha em mente uma espécie de catedral”, justifica Michel, lembrando que, no momento da inauguração, soldados levaram a Carta Federal em uma urna e a depositaram no salão superior como se fosse uma relíquia. “Sua vitrine se chamava na época ‘Altar da Pátria’.”

Hitler perdeu a guerra e a Suíça nunca foi invadida, apesar de ter permanecido durante todo o conflito em estado de alerta, com soldados postados nas fronteiras e um complexo sistema de fortificações construídas nas montanhas. O Museu da Carta Federal, que nas décadas seguintes ao conflito continuou a receber até 30 mil visitantes por anos – especialmente membros do Exército suíço consideravam uma obrigação patriótica ver a Carta Federal -, perdeu seu brilho ao longo dos anos até o período recente, apesar de ter passado por três reformas. Não apenas o fim da ameaça externa explica a falta de interesse dos visitantes.

“O Juramento do Rütli e a Carta Federal, como ato de fundação da Confederação Helvética, eram parte do currículo escolar até os anos 1980. Por isso as crianças sempre nos visitavam. Depois que esses dois elementos saíram dos livros escolares, isso mudou. Foi um efeito posterior do movimento de 1968, quando essa imagem tradicional da história suíça foi eliminada, assim como também o espírito de defesa espiritual daquela época”, explica Annina Michel.

Hoje o número de visitantes chega apenas a dez mil por ano, em grande parte escolares, aposentados e suíços do estrangeiro. Porém a direção experimenta novas formas de tornar o museu mais atraente. “A partir do ano 2000 passamos a oferecer workshops para crianças. Neles não apenas apresentamos os objetos, mas também abordamos os mitos”, explica Michel.

Uma das atividades responsáveis pela “redescoberta” da Carta Federal nos últimos anos foi uma exposição organizada nos Estados Unidos em 2006. O pergaminho foi levado à Filadélfia para ser exposto por vinte e um dias no Museu Nacional da Constituição, lembrar as raízes comuns entre os dois países. A exposição foi um sucesso e chegou a atrair cinco mil visitantes por dia, apesar dos protestos de alguns políticos conservadores na Suíça, que chegaram a oferecer um milhão de francos pela Carta Nacional. O cantão recusou-se a vendê-la e autorizou a sua viagem.

Nova exposição

Ao ser fechado para a terceira reforma em 1º de dezembro de 2013, a direção do museu considerava que era preciso dar uma nova roupagem à exposição da Carta Federal. Nove meses depois, e ao custo de 2,6 milhões de francos, o Museu da Carta Federal reabriu suas portas com um novo conceito. A reabertura, ocorrida em 20 de setembro de 2014, contou com a presença de diversas personalidades, dentre elas o ministro suíço da Defesa, Ueli Maurer. No dia ele declarou ser um antigo fã do museu. “Toda vez fico emocionado ao entrar nesse salão e ver as bandeiras e a Carta Nacional”, declarou a um jornal local.

Além do principal documento e outros pactos do período até 1513, considerados também “Cartas Nacionais”, a nova exposição apresenta outros objetos históricos como uma coleção de bandeiras do cantão de Schwyz, que ajudam a explicar o desenvolvimento a própria cruz suíça encontrada hoje na bandeira nacional. “O tema continua sendo a história da antiga Confederação Helvética. Novo é a encenação, ou seja, a apresentação desses objetos”, reforça Michel. A diretora lembra também que todos os textos de apresentação foram reescritos levando-se em conta os dados mais recentes da investigação histórica. 

A Carta Federal de 1291, um pergamento de 32 x 20 centímetros considerado oficialmente como ato fundador da Confederação Helvética. RDB

Mito ou atualidade?

Ao entrar na exposição, o visitante depara em primeiro lugar com uma série de placas de madeiras, na qual foram instalados monitores touchscreen. Eles exibem diversos vídeos – depoimentos históricos, reportagens e discursos – que levantam a questão fundamental em relação à Carta Federal: mito ou atualidade? Um vídeos mostra como pesquisadores da Escola Politécnica Federal examinaram, em 1992, fragmentos do pergaminho através do método de datação por radiocarbono. Assim eles descobriram que o material da Carta Federal é originário de um período entre 1260 e 1309. Porém eles não conseguiram provar que ela foi escrita na mesma época. Medievalistas suíços como Roger Sablonier já falam de algumas contradições encontradas no documento, lançando assim a possiblidade do pacto ter sido uma falsificação. Na Idade Média era uma prática comum que documentos fossem produzidos e datados segundo os interesses políticos ou econômicos dos governantes.

Essas novas descobertas levaram os pesquisadores a terem uma visão diferenciada da história país. “De fato existem outros pactos que são mais antigos do que a Carta Federal, mas partimos hoje em dia do princípio que a Confederação Helvética nunca foi fundada. Não existe uma data ou um documento que marque essa fundação. A verdade é que a Confederação Helvética se desenvolveu ao longo dos séculos a partir de uma complexidade de pactos. Não existe o momento do ‘Big Bang'”, diz Michel.

Portanto, a Carta Federal como uma lenda? Talvez sim, mas ela foi aparentemente necessária à Suíça. “Esses mitos tiveram uma grande influência sobre os suíços nos últimos 150 anos. Na época de formação do Estado moderno, no século 19, o objetivo era construir um passado comum para a Suíça e, dessa forma, possibilitar o surgimento de um sentimento de pertença. Durante a II. Guerra Mundial, essa reminiscência baseada em valores comuns teve uma grande importância”, acrescenta a historiadora, para quem a Carta Federal deve ser vista apenas como um pacto de paz firmado no século 13 como muitos outros. “Não é um documento especial, que tivesse tido uma grande importância no desenvolvimento da Confederação Helvética, como prova o fato dela não ter sido mencionada em nenhum lugar nos quinhentos anos seguintes.”

Nascimento da Suíça em 1307?

O primeiro historiador da Suíça, Aegidius Tschudi (1505-1572), escreveu em sua obra – Chronicon Helveticum – que a Confederação Helvética surgiu em 8 de novembro de 1307. Nesse dia, os líderes de três comunidades em vales da Suíça central reuniram-se em uma pradaria para jurar o primeiro pacto e combater o governador dos Habsburgos, o que entrou na mítica do país como o “Juramento do Rütli”.

“Na época ele queria também dar um ponto de início para a Confederação Helvética, exatamente como fizeram séculos depois os representantes do governo suíço. Ele também não encontrou nenhum documento que provasse essa história”, afirma a diretora do Museu da Carta Federal, Annina Michel. “Aegidius Tschudi era um humanista e, como tal, tudo precisava estar ancorado na realidade para realmente poder existir. Assim tudo precisava de uma data. Se ela não existisse nas fontes, precisava então ser criada. E foi o que ele fez.”

Aegidius Tschudi considerava que o verdadeiro ato constitutivo da Suíça seria a chamada “Carta de Morgarten”, onde os cantões de Uri, Schwyz e Unterwalden firmaram em 1315 um pacto para se defender contra a vingança dos Habsburgos, depois da morte do duque Leopoldo em uma emboscada. 

Links

Museu da Carta FederalLink externo

Documento oficial de criação da Festa Nacional de 1º de Agosto em 1889Link externo (pdf)

Dicionário Histórico da Suíça – o surgimento da Confederação HelvéticaLink externo

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