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Dar a palavras às vítimas das separações forçadas

Vítimas do sistema social posam para uma foto frente ao Parlamento helvético em 31 de março de 2014, em Berna. Keystone

Até 1981 na Suíça, 100 mil crianças vivendo em situação de pobreza foram recolocadas em outras famílias ou abrigadas em instituições. Hoje, cada vez mais vítimas do sistema superam a vergonha para reivindicar o reconhecimento da injustiça cometida e também exigir indenizações. Na reportagem a seguir, você vai conhecer quatro dessas histórias.


São nove horas da manhã e faz frio nesse verão chuvoso. Ele espera frente à sua residência, com a gola levantada e se aperta, com seus 1 metro e 90 de altura, dentro do veículo. O destino é o cantão do Valais. “Lá irei encontrar quatro pessoas”. Esse grandalhão com ares esportivos se chama Clément Wieilly, fundador da Associação Agir pela DignidadeLink externo e membro do grupo de trabalhoLink externo criado pelo governo federal em 2013 para ajudar as vítimas das recolocações forçadas e medidas de coerção com fins de assistência social. Além disso, faz parte do comitê da iniciativaLink externo que exige a criação de um fundo de indenização de 500 milhões de francos.

Temos uma hora e meia pela frente, tempo para ele me contar a história da sua infância roubada. Durante a viagem recebe inúmeros telefonemas no seu celular. 

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“Sou um lutador”

Para Clément Wieilly, tudo começou na primavera de 2013. Foi quando a ministra suíça da Justiça, Simonetta Sommaruga, convidou as antigas vítimas para participar de uma cerimônia oficial de retratação. “É estranho o que me aconteceu. Foi um acaso na vida. Fui então à Berna e decidi fazer algo.”

As mídias se interessam por sua história. Seu nome circula. “Minha midiatização atraiu a atenção de outras vítimas e, nesse dia, representava as 500 pessoas que me contataram. Em dez meses, percorri seis mil quilômetros para recolher seus testemunhos e ajudar-lhes a ter acesso à sua história escondida nos arquivos.”

Trata-se também de ajudar o grupo de 10 mil a 20 mil antigas vítimas que ainda estão vivas. O grupo de trabalho criou um fundo de urgência em agosto, à espera que o Parlamento suíço se pronuncie sobre a criação de um verdadeiro fundo de indenização.

A ideia da associação surgiu naturalmente. Presidida por Úrsula Schneider Schüttel, deputada federal do Partido Socialista, ela representa as vítimas frente às autoridades. Clément Wieilly dedica uma boa parte do seu tempo trabalhando para ela. “Com a distância, me tornei menos emocional. Distanciei-me da minha própria história, pois quero dar toda minha energia a essas pessoas.”

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Encontro com a Rose-France

Nesse meio tempo começou a chuviscar, mas já chegamos a Sierre. São 11 horas da manhã, o GPS conseguiu encontrar a casa. Em calça jeans e camiseta, ela aparenta ser mais jovem do que os seus 71 anos. Rose-France nos recebe em seu apartamento decorado de budas, onde ela vive com o segundo marido. Na mesa estão espalhadas revistas em quadrinhos. Com a voz trêmula, ela conta a sua história de abandono, punições físicas, incontinência urinária, pão seco e o medo do escuro. “O pior foi a falta de amor e termos nos sentindo culpados, quando na verdade éramos as vítimas”, diz.  

Clément Wieilly convida Rose-France para a próxima assembleia da associação. Ele lhe entrega folhas de assinaturas para a iniciativa popular. Ao mesmo tempo fala do fundo de ajuda imediata de quatro a 12 mil francos distribuídos pelo grupo de trabalho através da Cadeia da FelicidadLink externoe (uma fundação humanitária da Sociedade Suíça de Radiodifusão e Televisão – SRG SSR). “Eu não pedi nada, pois não cumpro as condições exigidas”, explica Rose-France. De qualquer maneira, isso não vai curar o que vivi”. Mas se receber algo, ela iria “onde houvesse sol”. Ou compraria um veículo usado para a filha deficiente.

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…Rose-Marie e Gilbert

Deixamos Rose-France almoçar com seu marido. Às 14 horas, Rose-Marie chega à estação de trem de Sion. Aos 78 anos, ela precisa de uma bengala para andar. “Fui agredida há dois anos. Foi quando me arrancaram a bolsa e quebrei o quadril e alguns dentes. Como tenho um problema cardíaco, ninguém quer me operar. Só vivo infortúnios”, lamenta. Nós vamos a um café para escutar a história de Rose-Marie, com detalhes extraordinariamente precisos, intercalados por lágrimas e risos de autoironia.

“Faz-me bem sair de tudo isso”, conclui Rose-Marie com um sorriso, olho brilhante e combativo. “Meu único desejo é denunciar o que me aconteceu. Em um país rico como a Suíça, nunca encontrei um sentimento de humanidade”. Rose-Marie recebe apenas a sua aposentadoria básica e está decidida a lutar por indenizações, começando pela ajuda imediata. Clément Wieilly vai ajudá-la a preparar seu dossiê e resolver a papelada.

“Questiono-me porque estou no planeta”

São 17 horas. Chegamos ao hospital de Sion, onde Gilbert, 82 anos, passa períodos prolongados nesses últimos quatro meses. Foi uma enfermeira que contatou Clément Wieilly. A história de Gilbert é mais sucinta do que as anteriores, mas também muito parecida: divórcio, tutelado, punições físicas, inferno…Com longas pausas, a cabeça virada sobre o travesseiro, mas também com alguns lampejos de humor. 

Crianças transferidas à força: menores oriundos de famílias pobres, órfãos ou nascidos fora do matrimônio eram abrigados à força em instituições ou famílias hospedeiras, muitas das quais de agricultores.

Detenções administrativas

As autoridades podiam ordenar, sem julgamento ou direito a pedido de recurso, o internamento de menores em estabelecimentos fechados por tempo indeterminado, com fins de reeducação pelo trabalho.

Ataques aos direitos reprodutivos

Até os anos 1970, abortos e esterilizações forçadas eram praticados por razões sociais ou de eugenia.

“É bom que aconteça algo. Ninguém se interessava na época de se inteirar da situação. A indiferença era total. O que mais me chocou foi o comportamento das pessoas. Questiono-me porque estou nesse planeta. Eu era incomodado o tempo todo.”

Gilbert trabalhou na Rede Ferroviária Suíça. Ele é viúvo, pai de três filhos e avô. Ele vive em um camping, mas recusa-se a receber qualquer forma de ajuda financeira. “Tenho um trailer, dois gatos e assim está muito bem”. Seus netos pediram-lhe que contasse sua história, mas eles não se interessam realmente. “Eu compreendo as pessoas que têm vergonha de falar, pois tudo isso é…muito duro. É bom de ter um pouco de reconhecimento, mas se alguém quiser me dar dinheiro, eu o darei ao Exército da Salvação. Eu nunca pedi ajuda. Esse é o meu temperamento e eu sempre ensinei o que é direito aos meus filhos.”

Nós saímos do hospital. O sol já se pôs. E, portanto, alguns dias antes da publicação da reportagem, uma triste notícia nos chega: Gilbert faleceu após uma longa enfermidade. Clément Wieilly está chocado e, ao mesmo tempo, revoltado: “Gilbert não teve tempo de fazer um pedido de ajuda às autoridades. As coisas andam devagar para as vítimas, pois elas são idosas e frequentemente muito pobres e com pouca saúde. É preciso que as pessoas compreendam que é uma corrida contra o relógio.”

Longo caminho

1981: após a ratificação (em 1974) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), a Suíça renuncia às práticas que permitem a internação (em instituição ou penitenciário), a coibição do direito de procriação (castrações e abortos forçados), assim como a adoção ou a recolocação familiar.

Abril de 2013: o governo federal se desculpa oficialmente perante as vítimas de recolocações forçadas e medidas de coerção para fins de assistência social.

Junho de 2013: criação de um grupo de trabalho integrando as partes envolvidas, incluindo igrejas e a União Suíça de Agricultores.

Março de 2014: lançamento de uma iniciativa popular “para a indenização”, exigindo a criação de um fundo de 500 milhões de francos. No início de setembro ela já havia recolhido 60 mil assinaturas das 100 mil necessárias.

Julho de 2014: o grupo de trabalho apresenta um relatório e um catálogo de medidas. Dentre elas: a atribuição de uma prestação financeira única de quatro a doze mil francos através de um fundo de ajuda imediata de sete milhões, financiado pelos cantões, cidades e comunas. Os pagamentos começaram através da Chaîne du Bonheur (fundação humanitária da SRG SSR). O número de pedidos é avaliado em mil até junho de 2015.

Agosto de 2014: entrada em vigor da Lei federal sobre a reabilitação de pessoas recolocadas por decisão administrativa. Ela reconhece a injustiça feita, cria o projeto de pesquisa SynergiaLink externo e garante o arquivamento como a abertura dos dossiês das vitimas.

Indenização: o grupo de trabalho poderá solicitar ao Parlamento de se pronunciar sobre uma lei, cujo principal objetivo seria o pagamento de um montante fixo associado a um complemento à pensão AVS, levando em conta a situação específica de cada beneficiário. Esta base jurídica poderá entrar em vigor em 2017, um ritmo extraordinariamente rápido para a Suíça.

Adaptação: Alexander Thoele

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