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“A Coragem é um Músculo”

Arlette quando estava em tratamento em um hospital na Alemanha dos ferimentos provocados pelos conflitos na República Centro-Africana. cortesia

Bastou uma cena de uma garota africana urrando de dor com uma bala no joelho, para que se desse início a uma sequência de eventos que transformariam não só a vida dela. O documentário "Arlette. A coragem é um músculo" é uma reflexão maior sobre um dos grandes problemas mundiais da atualidade: a crise dos refugiados.

O documentário do cidadão suíço Florian Hoffmann tem sido exibido na Europa, nos Estados Unidos e mais recentemente foi um dos destaques no Brasil, na 40ª Mostra Internacional de CinemaLink externo, em São Paulo.

Aos 29 anos, Hoffmann também assina “The Dictators’ HotelLink externo“, que tem, assim como “ArletteLink externo“, a guerra na República Centro-Africana, RCA, como ponto de partida do seu olhar cinematográfico. Filho de cineastas suíços, o documentarista nasceu em Berlim, estudou sociologia na Basileia, retornando depois à Alemanha, onde estudou cinema. Seu interesse pela África, começou mais cedo, aos 19 anos, quando foi morar em Gana, logo após ter terminado o ensino médio, trabalhando em uma organização de cooperação para o desenvolvimento da África Ocidental.

Inicialmente, “Arlette” pode parecer mais um documentário sobre vítimas de guerra. Porém, ao evidenciar a identidade e a personalidade da jovem de uma vila africana durante sua ida à Alemanha para a retirada de uma bala no joelho, ele provoca uma reflexão sobre a visão estereotipada que se tem dos refugiados. Mais do que isso, questiona a postura de países desenvolvidos que se consideram o paraíso de onde essas pessoas não querem nunca mais ir embora.

Por trás da produção do filme, há ainda histórias de solidariedade e comprometimento com o outro, que mostra como um registro de um tempo pode mobilizar pessoas e efetivamente transformar a vida de outras, como fez Florian com a jovem Arlette.

swissinfo.ch: Como surgiu a ideia de documentar a história de Arlette?

Florian Hoffmann: Estava trabalhando como diretor assistente no filme “Carte Blanche”, filmado na República Centro-Africana, sobre a investigação da Corte Internacional que buscava evidências sobre o genocídio que aconteceu lá. No filme, havia uma pequena cena de Arlette chorando muito por ter sido baleada no joelho. Quando o filme foi apresentado no Festival de Locarno, uma família suíça ficou muito tocada com essa cena. Depois da exibição, vieram falar conosco e dizer que queriam ajudá-la. Eles não sabiam como, mas estavam tão emocionados que queriam dar o dinheiro para a cirurgia. Eu estava muito sobrecarregado naquela época e não me senti muito confortável, porque, na verdade, não sou um médico ou membro de uma ONG; sou apenas um cineasta. Mas quando voltei para uma nova filmagem na República Centro-Africana, me encontrei com ela, contei sobre a possibilidade dela fazer a cirurgia na Alemanha (só que ela teria de ir sozinha) e perguntei se ela queria ir. Foi então que ela me respondeu: “Gangu ayeke mi”, que significa “a coragem é um músculo”. Para ela, toda vez que você é corajoso, é como um músculo, quanto mais você o exercita, mais fácil se torna para você ser corajoso. Toda vez que ela tinha de tomar uma decisão ela repetia isso.

swissinfo.ch: Muito sábio.

F.H.: Sim. De alguma maneira, ela é muito sábia. Ela não é uma pessoa que fala muito; é muito mais como se comporta. Ela disse que iria, mas não era fácil. Ela não tinha sequer um documento de identidade ou registro de nascimento. Foi muito difícil. Mas depois de cerca de dois anos conseguimos levá-la.

swissinfo.ch: Dois anos?!

F.H.: Sim. Ao final, ela esperou durante nove anos pela cirurgia. A questão é que na República Centro-Africana eles não têm como fazer cirurgias. Eles simplesmente cortam o membro ferido. O ferimento vai ficando pior e pior até que eles cortam.

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É só uma questão de tempo. E para ela ir à Alemanha era preciso depositar o dinheiro antes de deixá-la entrar no País. É muito difícil.

swissinfo.ch: Quantos anos ela estava?

F.H.: Ela tinha 15 quando chegou na Alemanha.

swissinfo.ch: Como surgiu a ideia de fazer o filme?

F.H.: No início, eu não pensava em fazer um filme sobre ela. Eu conhecia a vila muito bem. As pessoas ali nunca tinham ido à Europa, nunca tinham visto um avião, nunca tinham visto um lago, é uma área muito seca. Então eu pensava muito no dia em que ela voltaria para a vila depois de uma viagem à Alemanha, mas sem poder dividir nada com eles, porque se ela falasse sobre neve ou sobre nadar, eles não teriam referência do que seria aquilo que ela contaria. Então, dei a ela uma câmera Polaroid e lhe disse para tirar fotos para contar sobre suas experiências. Como ela sempre me via com uma câmera, me disse, então, para eu usá-la. E foi mais ou menos assim que o filme começou. Era muito mais a ideia de um diário filmado para que as pessoas na vila pudessem ver. O filme foi feito muito mais com uma câmera pequena, uma amiga cuidou do áudio e éramos apenas nós três. Eu estava lá todos os dias, embora não filmássemos todos os dias, porque às vezes ela não estava de bom humor, estava chateada e precisava mais de mim como um amigo do que como um cineasta.

swissinfo.ch: E quando você se deu conta que poderia virar um documentário?

F.H.: Foi muito mais quando Arlette chegou à Alemanha. Ela mesmo acabava provocando algumas cenas, só pelo fato de estar lá, de ser uma estrangeira, uma africana. Essas cenas me fizeram ter outra impressão do meu próprio País e da população. No hospital, me dei conta de que aquelas filmagens não eram importantes apenas para ela ou para seu povoado, mas também para mim. O filme foi finalizado no momento da crise dos refugiados na Alemanha. Vários conservadores discutiam sobre esse tema, enquanto o filme mostrava exatamente o quanto também é difícil para eles estarem lá. Muita gente pensa que a Europa é um paraíso, mas não é exatamente assim. Quando apresentei o filme para alguns amigos, eles ficaram muito surpresos, riram, se emocionaram, além de muito impressionados com ela, com sua força como um “personagem”. E aí pensei que talvez fosse algo bom para nós. Ganhamos um prêmio em Nova York, outro na Macedônia, fomos convidados para exibir na Mostra no Brasil. Sinto que de alguma forma é uma história muito universal, algo sobre se sentir estranho em um lugar. 

swissinfo.ch: Talvez, como documentarista, sem querer já estava vendo um filme antes mesmo de pensar nele, não?

F.H.: Em um documentário, você não pode liderar nada, você segue os eventos. Então, todos os dias era como uma história diversa. Se fosse uma ficção, eu faria uma história sobre solidariedade e o lado crítico dessa ajuda. Na Alemanha, quando se fala em ajudar, sempre se pensa em algo positivo. Porém, também pode ser algo ruim. Quando ela estava pronta para voltar, a guerra recomeçou. De repente, ela teve de ficar mais tempo na Alemanha. Nesse ponto, a história muda novamente, além dela mesma não ser uma pessoa que se possa dirigir. Às vezes, ela fazia algo muito bonito e eu queria ter aquela cena, mas não tinha como eu pedir: Arlette, você pode fazer isso de novo para eu filmar? Ela iria olhar para mim como se eu estivesse louco.

Florian Hoffmann (C)MiguelBueno

swissinfo.ch: Como essa experiência toda lhe impactou? 

F.H.: Esta foi a primeira vez que estive realmente muito perto de uma guerra. E estando perto de Arlette todos os dias, pude ver como a guerra afeta a vida das pessoas. Hoje realmente não entendo como temos guerras. Isso pode soar muito ingênuo, mas é isso. Uma guerra é algo muito diferente do que vemos na TV, que é uma guerra para o “entretenimento”. Tive com ela uma grande experiência. Acho que todos os meus próximos filmes serão sobre guerra, porque não entendo de fato como as pessoas podem matar umas às outras. Ao mesmo tempo, quando vemos o filme é possível aprender muito com Arlette, porque ela também é muito forte como pessoa, sem ser arrogante. É interessante também, porque na nossa sociedade sempre pensamos que as pessoas com melhor formação são melhores do que as que têm menos. Mas aí você olha para Arlette, que nunca tinha ido para escola, mas sabe mais da vida do que eu.

swissinfo.ch: Em geral, quando se pensa sobre África, se pensa em miséria, pobreza e guerras. Pelo menos no Brasil. Você teve uma experiência forte por lá. Qual é a sua percepção sobre os países africanos que você conhece?

F.H.: Quando eu tinha 19, me mudei para uma vila em Gana, aprendi a língua. Era muito ingênuo. Tinha terminado o colégio, trabalhava em um escritório lá. Foi a melhor escola que tive. Quando cheguei, devo dizer que eu era muito arrogante, com aquela arrogância europeia. Na verdade, as pessoas te tratam assim: você é branco, tem educação formal, então você lidera. Mas você falha imediatamente, porque você não tem ideia sobre como funciona o país, a cultura, as pessoas. Como eu poderia liderar algo? Acredito que as pessoas por lá estejam tendo sucesso em muitas coisas mais do que a gente. O problema, no entanto, é que não estamos abertos para ver isso. E isso foi uma das coisas que quis mostrar em “Arlette”.

swissinfo.ch: Como?

F.H.: No início do filme, as pessoas logo têm a impressão de que será mais um filme sobre mais uma vítima, mais uma refugiada… Ela é uma garota africana com um ferimento no joelho que vai fazer uma cirurgia em um grande país de brancos. Mas aí, percebe-se que ela é muito, muito mais forte do que isso, e ao longo do filme se vê essa personalidade. Acho que na Alemanha hoje é assim que são vistos os refugiados: um amontoado de pessoas, sem suas próprias personalidades. Quando um refugiado chega, ele não tem permissão para trabalhar, tem de permanecer confinado em determinada área, não tem permissão sequer de cozinhar ele mesmo o que come. O que tentamos mostrar em “Arlette” é essa personalidade, tiramos essa ideia do refugiado apenas como vítima. Mesmo a mídia de esquerda não deixa de mostrar os refugiados como vítimas – como é difícil ser um refugiado e ter ido para Europa, como sofrem. Claro, que isso é importante retratar, mas não é só isso. Não se pode apenas apresentar os refugiados como vítimas, sem rostos, sem personalidades, sem histórias. O que eu quis foi mostrar uma dessas pessoas e como ela pode nos ensinar. Esse é o principal objetivo: como essa menina africana pode nos mostrar muito mais do que ser uma vítima.

swissinfo.ch: Você percebia o tempo todo durante as filmagens, certo?

F.H.: Sim. Há uma cena em que ela está no hospital e os médicos entravam no quarto dela, olhavam o joelho, comentavam sobre o estado e iam embora. Não olhavam para ela, não davam um oi, não perguntavam como ela se sentia. A Polaroid dela tinha um flash. Então, toda vez que os médicos chegavam, ela passou a dispará-lo. Tirava várias fotos deles. Depois de algum tempo, com aquela luz, eles acabam sendo obrigados a olhar para ela, e aí davam um sorriso, um olá. Era muito engraçado. Não havia muita conversa, mas foi então que me dei conta de que na Alemanha nós somos especializados em tantas coisas, mas as pessoas não olham muito para as outras.

swissinfo.ch: Como você vê esse papel do cinema em contribuir para transformar a sociedade?

F.H.: Espero que as pessoas vejam “Arlette” menos com um filme interessante e mais como uma forma de reflexão. Estamos tentando exibi-lo para muito mais pessoas, principalmente as conservadoras, que pensam que os refugiados querem ficar no País, usam o sistema social e não querem mais voltar para seus países. No filme, todos gostam de Arlette, sejam conservadores ou de esquerda. Daí essa garota diz que não quer ficar, que lá não é o paraíso e decide voltar para sua família e seu país em guerra.

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swissinfo.ch: Você conviveu muito com ela o que poderia contar de interessante desse convívio?

F.H.: Tive uma grata surpresa com Arlette. Ela sempre quis ir para escola, mas não podia por conta do joelho. Da última vez que eu estive na RCA, deixei pago um curso para ela na Alliance Française, que era a única escola que estava funcionando. Eu lhe disse que se a guerra desse uma trégua, ela teria uma escola para ir, que já estava paga e que não precisaria esperar por mim. Pouco antes de eu vir para a Mostra, aqui no Brasil, recebi o seu diploma. Ela não me contou que estava indo para a escola durante todo o ano, só faltou um dia apenas. E eu sei o quanto deve ter sido difícil, pois conheço o caminho. São duas horas para ir e duas horas para voltar, tendo ainda de passar por fronteiras. E ela fez isso durante um ano. Desde então, estou mais tranquilo, porque sei que ela está lidando bem com a vida dela em meio a essa guerra toda.

swissinfo.ch: Você chega a se dar conta de que pode ter salvado a vida dela?

F.H.: Acho que ela mesma salvou a própria vida. Ela está muito forte agora. O que aprendemos é que essas pessoas que estão indo para Europa têm de tomar várias decisões o tempo todo: decidir arriscar a vida em um barco, pagar alguém para isso, ir ou não… E quando chegam à Europa, não podem mais tomar nenhuma decisão. Passam a ser tratadas como crianças, perdem a individualidade. Quando Arlette decidiu retornar para o país dela, mesmo em guerra, achei muito ruim. Mas mesmo eu tendo duas vezes a idade dela, era sua decisão, eu tinha de respeitá-la.

swissinfo.ch: Livre arbítrio de todos nós.

F.H.: Sem dúvida.

Suíços em destaque em 2017

Vários filmes suíços estão circulando pela América Latina este ano. A Swiss FilmsLink externo, organização que promove o cinema suíço, vem intensificando a atuação na região com mais olhos para o Brasil em 2017. Resultado disso é a própria Mostra Internacional de Cinema que na sua edição do próximo ano terá a Suíça como destaque na Programação “Foco”.

Para o diretor Florian Hoffmann, que também tem planos de retornar ao País, o público brasileiro é muito interessante. “O que mais gostei aqui no Brasil é do público, que é crítico, muito questionador, e isso é muito bom”, diz ele, acrescentando que como cineasta é esse questionamento que o ajuda a entender o que possa ter feito de errado e a não repetir os mesmos erros”.

Segundo ele, na Europa, por onde tem viajado muito com o documentário, as pessoas se limitam a não dizer nada quando não gostam e a repetirem que é maravilhoso quando gostam. “Claro que é bom ouvir isso, mas ao final não acrescenta nada de novo”, afirma. “Eu realmente quero entender o que gostaram e não gostaram, então, eu realmente quero voltar ao Brasil no próximo ano, porque realmente é muito enriquecedor”, completa.

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