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Menino ou menina? Crianças são operadas para preencher corretamente o questionário

Entre M. e Deborah, as protagonistas do filme, nasce uma amizade que lhes ajuda a superar as dificuldades inerentes à sua situação. visionsdureel.ch

Supostamente 1 a 2% de todas as crianças nascem intersexuais. Muitas vezes elas permanecem presas em um doloroso silêncio durante toda a vida. O documentário "Nem Eva, nem Adão, uma história intersexual", de Floriane Devigne, agora lhes dá uma voz.

A diretora Floriane Devigne questiona no filme as normas de gênero estabelecidas, para as quais a sociedade às vezes está pronta a ir muito longe. O documentário franco-suíçoLink externo fará parte da competição no Festival “Visions du Réel”, em Nyon.

O segredo da intersexualidade é muitas vezes difícil para a pessoa suportar. O tabu é frequentemente opressivo, destrutivo. O filme de Floriane Devigne destaca essas variantes do desenvolvimento sexual, e dá voz àqueles afetados.

Deborah (25 anos) e M. (27 anos) cresceram com o mesmo segredo: nasceram como intersexuais. Ou seja, no nascimento não se sabia se eram meninas ou meninos. Como a sociedade até agora não permitiu que se escapasse dos binários dos sexos, os médicos decidiram que as duas crianças teriam o sexo feminino.

“Eles me operaram para remover meus testículos e, aos nove anos, eu fiz outra cirurgia porque havia algo a ser melhorado. E uma outra aos 12 anos. Os médicos trataram essas intervenções sobretudo como estéticas. Na minha opinião, elas foram devastadoras”, diz Deborah no filme.

Decidir o mais rápido possível, operar e de nenhuma forma falar sobre o assunto: é assim que era, e ainda é hoje, frequentemente tratado com as crianças intersexuais. Só aos sete anos de idade Deborah e M. tomaram conhecimento de que são intersexuais e, portanto, também inférteis.

Após um período de dúvida, Deborah se sente confortável com sua identidade hoje. Ela estuda na Universidade de Lausanne e até decidiu dedicar sua tese ao tópico da intersexualidade. M., por outro lado, que mora em Paris, foi até hoje prisioneira do tabu. À mercê de seus medos, ela luta com um corpo que não consegue abraçar. “Eu não posso mais imaginar o futuro”, diz ela.

Destinos semelhantes, mas também diferentes

Quando uma produtora sugeriu para ela o tema da intersexualidade, Floriane Devigne ficou cética inicialmente. Ela não estava inclinada a focar sua câmera em um assunto tão íntimo, que ela mal conhecia; ela também se sentiu desencorajada pelos severos aspectos médicos relacionados ao tema.

Mas um encontro com os protagonistas finalmente inspirou a diretora de Lausanne, e ela decidiu usar uma correspondência entre as duas jovens como um fio condutor para o filme. Ao compartilhar e-mails elas se revelaram, compartilhando suas dúvidas e as experiências que tiveram, porque são diferentes.

As histórias de M. e Deborah são semelhantes, mas diferem em um ponto essencial: M. cresceu na França, Deborah na Suíça.

“Deborah teve a sorte de ser acompanhada por um médico do Hospital Universitário de Lausanne, que foi uma das únicas pessoas na Europa a questionar sua abordagem há 20 anos”, explica Devigne. E hoje ele está lutando contra a intervenção precoce em recém-nascidos intersexuados. “Não é necessária uma operação urgentemente. A angústia dos pais não é motivo para operar uma criança”, afirma em frente à câmera – contra o conselho de muitos de seus colegas.

Na França, o diretor não encontrou nenhum médico, que estivesse disposto a fazer as mesmas declarações em público. Assim, as perguntas de M. dão de cara com o silêncio ou com um discurso médico autoritário. Eles não deveriam ter um segundo filho, contaram a seus pais.

Filme leva à fundação de uma associação

Da amizade entre diferentes protagonistas do filme e seu ambiente, surgiu a associação InterAction, l’Association Suisse pour les Intersexes (Associação Suíça para os Intersexuais). Fundada em outubro de 2017, a organização oferece suporte aos intersexuais e suas famílias, principalmente por meio do fornecimento de informações. A organização também quer criar “lugares seguros”, pontos de contato para os afetados e operar uma linha direta de telefone. Ela também promove uma abordagem que não trata a intersexualidade como sofrimento ou doença, ao lidar com opções de desenvolvimento sexual.

Informações e contato: https://www.inter-action-suisse.ch/homeLink externo

“Muitos intersexuais absorveram o discurso da maioria, estão convencidos de que estão sofrendo de uma malformação ou doença e que precisam ser consertados”, lamenta Devigne. Esta afirmação a deixa triste.

“Nessa idade, tanto faz!”

O filme levanta a questão: até que ponto a sociedade está pronta a chegar, em nome da norma? A cena mais chocante do filme traz uma resposta preocupante. Deborah fala com sua irmã de 16 anos, Sereina, pela primeira vez sobre sua intersexualidade, e as intervenções pelas quais ela teve que passar. Em particular, ela descreve em detalhes as visitas regulares ao hospital para verificar – sob anestesia – que ela pode ter “relações sexuais “normais” com um homem.” Esse procedimento parece louco quando você é uma menina de nove anos: “Nessa idade, você não se importa!”

A profissão médica se concentra no bom funcionamento dos órgãos de seus pacientes, e perde a visão de seu bem-estar emocional. “Durante a adolescência, nos perguntavam sistematicamente se nós tínhamos tido um relacionamento (sexual) com alguém, mas nunca se éramos felizes”, explica Audrey, que também é intersexual, no filme.

A possibilidade de se desenvolver além da norma não é considerada. “Eles constroem nas meninas uma vagina para garantir que elas possam ser penetradas por esses senhores no futuro, o que é uma violência que gera arrepios”, explica Devigne. Ela está indignada: “Isso também significa simplesmente assumir que a norma é ser heterossexual e poder ter filhos”.

Prisioneiros de silêncio

Além das operações e da dificuldade de conviver com um gênero que outros escolheram para si, o silêncio continua sendo o maior inimigo das pessoas intersexuais. No passado, não falar sobre isso era parte da forma de lidar com intersexuais. “Gostaríamos de conhecer pais de outras crianças intersexuais, mas os médicos nos aconselharam a não fazer isso”, explica o pai de Deborah após a estreia do filme.

A câmera, no entanto, não sucumbe ao sofrimento, mas revela o surgimento da amizade: uma das coisas que tem o poder de romper as cadeias que impedem a pessoa de viver. Passo a passo, M. consegue quebrar o tabu, sua concha se desfaz em contato com Deborah, mas também com Audrey e Edward, que também são intersexuais. “Tentei capturar o momento em que dizemos algo à sociedade, sobre o qual muitas pessoas acham que não se deveria falar”, declara Floriane Devigne.

M. finalmente se revelará, e Deborah encontra as palavras para finalmente compartilhar sua história com sua irmã. E se era mais doloroso para um deles sair das sombras do que para o outro, era porque, como diz Deborah, “eu tinha um segredo, M. tinha um tabu.”

Intersexualidade: Cirurgia com consequências sérias

Não há estatísticas completas e confiáveis sobre o número de pessoas intersexuais. Frequentemente citado é um estudo de Anne Fausto-Sterling, professora de biologia da Brown University nos EUA, que estima que cerca de 1,7% da população é intersexual. Às vezes, as variações das diferenças de gênero ao nascer não são visíveis e só aparecem mais tarde.

Em alguns casos, a intervenção médica imediata é necessária por causa do risco de morte, mas em muitos casos tais intervenções não são justificadas.

No passado, muitas crianças sem características sexuais definidas foram operadas imediatamente, para lhes dar um sexo claro. Essas operações eram feitas às vezes sem o consentimento dos pais e, muitas vezes, tinham consequências irreversíveis.

Desde a década de 1990, a pesquisa mostrou que as crianças que se submeteram à cirurgia precoce sofreram complicações físicas e mentais na vida adulta. A profissão médica começou a mudar sua atitude, mas não há lei que regule estas questões.

Em 2016, depois que a Comissão Nacional de ÉticaLink externo (NEK na sigla em alemão) publicou um relatório sobre o assunto no campo da medicina humana, o governo suíço sublinhou que intervenções prematuras ou evitáveis violavam o direito à integridade física. Sempre que possível, tratamentos irreversíveis devem ser esperados, até que a criança afetada tenha idade suficiente para decidir por si mesma.

(Fonte: sda)

Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos

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