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Bem de luxo ou maldição: o mármore branco de Carrara

Pedreira de onde se extrai mármore de Carrara.
A pedreira de onde se extrai o famoso mármore de Carrara. @ Alberto Campi

O famoso mármore branco de Carrara não é apenas um símbolo de luxo. A pedreira tornou-se um dos locais mais importantes para a extração de carbonato de cálcio, utilizada na produção de pasta de dente. Mas sua extração causa danos no meio ambiente. E há riscos mortais para os trabalhadores. Lucram com isso: elites locais e internacionais, entre elas a família Bin Laden e uma multinacional suíça.

O branco é perturbador. De longe as pedreiras de Carrara lembram uma geleira. À medida que nos aproximamos, no entanto, um distrito de mineração se espalha diante de nossos olhos, como uma manta cor de casca de ovo que cobre os flancos dos Alpes Apuanos. Dezenas de caminhões pesados, carregados de gigantescos blocos de mármore bruto, cruzam as montanhas de escombros feitas pelas escavadeiras.

Na estrada íngreme, nosso carro com tração nas quatro rodas esforça-se para chegar até a pedreira de Michelangelo. Lá o mármore Statuario, uma das espécies de mármore mais caras, é extraído. Por ele são pagos até 4.600 francos por tonelada.

Aqui se encontra uma dúzia de trabalhadores ocupados no sol escaldante. Riccardo, de 52 anos, que trabalha nas pedreiras da Toscana há cerca de 30 anos, está atrás de um bloco de mármore com uma serra de fio diamantado.

Trabalhador na pedreira de Carrara
Riccardo Marmor trabalha há mais de trinta anos na extração de mármore. © Alberto Campi.

O calor é esmagador. “No verão a pedreira é um verdadeiro forno, e no inverno é frio e úmido”, diz Riccardo, ofegante.

Seu pai e tio quebraram mármore. Com orgulho ele explica seu trabalho, antes de finalmente dizer: “Eu ainda espero que meu filho faça algo diferente em sua vida.”

Trabalho de alto risco

Apesar dos esforços feitos nos últimos anos, a segurança das pedreiras ainda é insatisfatória para os trabalhadores. Em 11 de julho, um bloco de mármore em um depósito quebrou ao meio. Luca Savio, 37 anos, pai de um menino pequeno, foi morto. Algumas semanas antes, em maio deste ano, Luciano Pampana, 58 anos, havia morrido: ele foi esmagado por uma escavadeira.

“Os escravos continuam a perder sangue em Carrara”, reclamou padre Raffaello em um de seus sermões. “Os Alpes Apuanos foram brutalmente feridos e, embora não muitos possam se beneficiar disso, alguns se tornaram muito ricos!”

Os sindicatos simplesmente exigem o fechamento de pedreiras onde as medidas de segurança são inadequadas. Nos últimos doze anos, onze pessoas perderam a vida nas pedreiras. Seis entre 2015 e 2016. “Isso é realmente demais, considerando que existem cerca de 600 mineiros em toda a província”, diz Roberto Venturini, Secretário do sindicato União Fillea CGIL em Massa, a capital da província de Massa-Carrara.

Para o representante sindical, que nos acompanha no terreno, há apenas uma maneira de conciliar a operação do local com a segurança de emprego e a proteção do meio ambiente: “A produção deve ser desacelerada e o número de trabalhadores aumentado.”

Em sua opinião, o crescente descontentamento dos moradores de Carrara, que estão cada vez menos tolerando os riscos e danos causados pela mineração, poderia servir como uma alavanca para trazer empresas de exploração à sensatez.

Monocultura do mármore

A província de Massa Carrara é um microcosmo que representa o crescimento da economia industrial: automação, escassez de recursos, concentração de riqueza, e o conflito entre meio ambiente e produção. Este último realmente pegou fogo na década de 1980.

Tratava-se de um sítio químico abaixo das pedreiras, localizado em direção ao mar. Em um referendo consultivo em 1987, eleitores acordaram com o encerramento do complexo industrial Farmoplant, do grupo italiano Montedison Group. Um ano depois, em julho de 1988, a explosão de tanques contendo o perigoso pesticida Rogor acelerou o desmantelamento do local.

Essa decisão alcançou círculos mais amplos, e as empresas químicas da região encerraram sua produção. Ao fazer isso, eles deixaram centenas de funcionários sem destino e, convenientemente, “descartaram” os terrenos contaminados para as autoridades locais.

Apenas o setor de pedreiras de mármore resistiu a essa sangria, e criou uma “monocultura” industrial. Então, somente alguns poucos fazem grandes lucros. Mas para as pessoas que vivem na região permaneceram apenas algumas migalhas. E a administração de crises nas áreas ambientais e de emprego.

Do orgulho à miséria

Hoje o mármore tornou-se sinônimo de “desastre” para o povo de Massa-Carrara. Este mármore, que moldou a identidade das pessoas que ali vivem e tornou a região conhecida em todo o mundo, é a causa de uma grande miséria social, e de grandes preocupações ambientais.

Moinho na região de Carrara
Moinho de carbonato de cálcio. O pó representa quase três quartos da produção das pedreiras de Carrara. © Alberto Campi

Nos últimos três anos, os lucros da indústria aumentaram mais de 5% ao ano. É difícil encontrar outro setor industrial com esse crescimento. E o crescimento beneficia um número cada vez menor de empresas.

O número de funcionários está em constante declínio, e uma parte cada vez maior das atividades de tratamento são feitas hoje no exterior. Desde o início de 2000, o número de postos de trabalho locais caiu mais de 30%: dos cerca de 7.000 a cerca de 4.750 postos.

Nos últimos anos mais de 300 postos de trabalho foram perdidos nas pedreiras, cada vez mais mecanizadas, e mais 300 nas áreas de processamento e tratamento.

Por outro lado, os confrontos não diminuíram. De um lado os ambientalistas, do outro os empreendedores. Alguns tendem a minimizar o impacto econômico, enquanto outros destacam empregos no setor. A única certeza é que o mármore molda a identidade rebelde das pessoas em Carrara.

“Arrogância do poder”

“Ferida e zangada, a comunidade local percebe os senhores do mármore como representantes de um poder arrogante, que se apropria da riqueza que este raro material oferece”, diz Paolo Gozzani, secretário do sindicato CGIL em Massa-Carrara. Em contrapartida, no entanto, essa elite recusa oportunidades e perspectivas às pessoas locais para melhorar sua situação social. E eles não se preocuparam em tornar a mineração de mármore uma indústria útil para toda a região, disse Gozzani.

“A regra para as empresas na indústria da pedra parece ser a de não cumprir com as regulamentações ambientais.”
Aldo Giubilaro, Procurador Geral em Massa

Um ponto de vista compartilhado por Giulio Milani, escritor e editor local. Ele publicou um livro sobre a devastação da região através da mineração de mármore. Milani está preocupado com o futuro de seus três filhos. “Quando chove, os rios da região são tão brancos como leite, por causa do pó de mármore, a chamada Marmittola. E isso não é tudo.”, acrescenta.

Carrara sofreu quatro inundações em nove anos, todas devido à instabilidade hidrológica do terreno. “É hora de quantificar os custos sociais que surgiram através da extração. Nós vivemos em uma área de mineração real que precisa ser considerada como tal, considerando a população local que está sofrendo as consequências.”

As declarações de Milani são corroboradas pela posição inequívoca do Procurador-Geral de Massa, Aldo Giubilaro. Recentemente, ele comentou sobre uma grande operação em várias empresas do setor de mineração de mármore.

Ela (a operação) exibiu amostras de violações ambientais que são comuns na região. “Além das raras exceções, certamente louváveis, a regra para as empresas da indústria de pedra e construção parece não estar em conformidade com os requisitos ambientais. Com consequências muito negativas para os habitantes da região”, disse o promotor.

“Não é apenas um problema ambiental, mas também, e sobretudo, pela saúde das pessoas que vivem nesta província: infelizmente elas estão no topo da lista de doenças cancerígenas em toda a Toscana”, diz Giubilaro. Ele é conhecido por quebrar a “omerta”, a lei do silêncio que prevalece nesta indústria.

Prédios industriais
Uma das 180 empresas do grupo Omya, na região de Carrara. © Alberto Campi

O “pó de mármore” dos suíços

Saímos da pedreira de Michelangelo e seguimos em direção ao vale. Abaixo, os caminhões descarregam os blocos que os mineiros selecionaram como inferiores. Aqui predomina um ruído incessante. Aqui no “Mulino”, um moinho, o rejeito é esmagado em cacos de mármore.

Essas lascas são então carregadas novamente em veículos que trafegam pela Strada dei Marmi (estrada do mármore), uma estrada de seis quilômetros de extensão, com galerias, cuja construção foi financiada por fundos públicos, no montante de 130 milhões de francos.

A rodovia leva à empresa industrial Omya SA, onde os fragmentos de mármore são processados em carbonato de cálcio. Este é um componente que é utilizado tanto pasta de dentes, como espessante e abrasivo, como também em dezenas de outros produtos.

O moinho de carbonato de cálcio. Este pó representa quase três quartos da produção das pedreiras.

Este “pó de mármore” é muito cobiçado. Especialmente pela Omya, uma empresa multinacional com sede na Suíça, mais precisamente no cantão da Argóvia. A Omya não está nas cotações da bolsa e é amplamente desconhecida do público. O Grupo possui 180 fábricas em 55 países, e é líder mundial na produção de carbonato de cálcio.

Em 2014, o Grupo comprou uma fábrica local de seu principal concorrente, a Imerys (França). Ela então adquiriu participações significativas nas quatro empresas de mármore ativas na região.

Cerca de 75% do material extraído nas pedreiras são estes “fragmentos”, que são convertidos em carbonato de cálcio. Os famosos blocos de mármore representam apenas cerca de 25% do total da mineração.

No passado, esses fragmentos eram considerados um resíduo incomodo. Mas trinta anos atrás, um homem transformou esse “resíduo” em ouro: o grande industrial italiano Raoul Gardini, cuja estrela no curso da investigação Mani-Pulité se apagou dramaticamente. Em julho de 1993 ele cometeu suicídio, após alegações da existência de um caixa para financiar partidos políticos.

Alguns anos antes, em 1987, Gardini entrou no negócio de mármore com o Calcestruzzi Spa. Ele teve a ideia de processar fragmentos de mármore em carbonato de cálcio: um negócio que prosperou rapidamente. E isso não mudou até hoje.

Podemos ver isso na base do Monte Sagro, no Parque Natural dos Alpes Apuanos, um Patrimônio Mundial da UNESCO. Eros Tetti, da Salviamo le Apuane (Salve os Alpes Apuanos), nos mostrou as paredes da montanha: elas estão literalmente gastas. Tudo isso para suprir o comércio de carbonato de cálcio. Uma depredação que também afeta a encosta sul da montanha.

Em Seravezza, uma vila a cerca de meia hora de carro de Carrara, somos recebidos por um grupo de cidadãos que lutam contra a expansão descontrolada das atividades de mineração. “O nosso grupo foi formado em oposição à reabertura de três pedreiras de mármore em Monte Costa”, dizem eles. “Estamos preocupados com o nosso território, e estamos preocupados com as consequências dessas atividades em nossa comunidade.”

A parte nobre vai para o exterior

Enquanto o “pó de mármore” permanece na Itália, o “ouro branco” – os blocos de mármore – é exportado em estado bruto para o mundo inteiro, os EUA, a China, a Índia e os países árabes. Os blocos de mármore são processados no exterior, onde o trabalho é mais barato. Como resultado, praticamente não fica mais nada para as pessoas. Os dias em que Massa e Carrara eram centros mundiais de arte e artesanato de mármore já se foram há muito.

Montanha com pedreira
O Monte Sagro com as suas pedreiras. © Alberto Campi

Boutros Romhein, escultor de origem síria, vive em Carrara há 35 anos, onde introduz estudantes de todo o mundo sobre os segredos da escultura em mármore. “Na Via Carriona, que vai das pedreiras até a costa, quase não há artesãos de mármore hoje”, lamenta. “No passado, pequenas e grandes empresas familiares faziam esculturas ou produziam materiais arquitetônicos. Agora elas estão ameaçadas de extinção.”

As estatísticas confirmam esse desenvolvimento. Em 2017, a exportação de blocos de mármore da Itália aumentou 37%. Com cerca de 212 milhões de euros, Carrara alcançou as maiores vendas no país. No mesmo período, o volume de negócios das empresas de artesanato de mármore caiu 6,6%.

O mármore da família Bin Laden

O mármore de Carrara continua sendo um negócio lucrativo, conforme demonstrado pela entrada da família saudita Bin Laden na indústria em 2014. Naquele ano, ela investiu 45 milhões de euros para garantir o controle da empresa Erton. Erton detém metade do capital de Marmi Carrara.

O Grupo detém um terço das concessões mineiras locais, através da Società Apuana Marmi. Quatro famílias locais dividiram o dinheiro de 45 milhões de euros que a CpC Holding investiu. A exploração pertence ao grupo saudita Binladin.

Assim, Carrara tornou-se uma área de mineração industrial, em detrimento da tradicional economia artesanal local das pedreiras. Um desenvolvimento que também tem um impacto negativo no emprego. No ano passado o aumento da taxa de desemprego foi de 36,7%.

Assim, a província de Carrara ficou em segundo lugar no ranking das províncias italianas com o maior aumento da taxa de desemprego. Ao mesmo tempo que o negócio com mármore e carbonato de cálcio estava apenas começando.

Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos

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