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“Nunca fui corrompido em quarenta anos”

Homem posando em cima de colina com uma cidade e lago ao fundo
"Viver aqui é como estar de férias", afirma Thomas Müller no alto de uma colina com Rorschach e o Lago de Constança ao fundo. swissinfo.ch

Thomas Müller é prefeito de Rorschach e deputado-federal pelo Partido do Povo Suíço, da direita conservadora, mas já foi até diretor de clube de futebol. Casado há quatro décadas com uma catarinense, conhece como poucos o Brasil. Em entrevista à swissinfo.ch, explica porque há tão pouca corrupção na Suíça e por que uma esperança do Brasil seria a Justiça. Um dos políticos mais polêmicos do país, Müller não poupa críticas ao Islã e os que combatem o sigilo bancário.

De Berna, a capital suíça, até RorschachLink externo é uma viagem de quase três horas. O passageiro desembarga em uma cidade tranquila, com pouco menos de 10 mil habitantes, localizada às margens do Lago de Constança. Nessa manhã, poucas pessoas passeiam na rua principal, onde as lojas anunciam promoções e outras já fecharam há muito tempo suas portas. Alguns turistas vindos da Alemanha desembarcam no porto e compram sorvete para as crianças no restaurante local. Um dia tranquilo em um típico vilarejo suíço.

Na prefeitura, um prédio construído 1691 por um nobre bávaro, as portas estão fechadas para o almoço. Porém em uma das salas ainda trabalha o prefeito, Thomas Müller, chamado pela impressa local de “Rei de Rorschach” por estar no cargo desde 2003. Seu gabinete tem uma decoração espartana. “Herdei os móveis do meu antecessor”, diz. Ao ser questionado sobre algumas das declarações explosivasLink externo que deu há imprensa na entrevista para um jornal local, ele ri e diz com orgulho que não se arrependeu. “Das quatrocentas mensagens que recebi, só umas três eram críticas. Um eleitor de Berna chegou até a me presentear com uma caixa de vinho”.

swissinfo.ch: Em 2008 entrevistamos o Senhor. O tema era o caçador de tesouros contratado pela prefeitura de Rorschach. Ele encontrou alguma coisa?

Thomas Müller: Nós contratamos na época esse caçador para que descobrisse e comunicasse aos habitantes as belezas de Rorschach. Muita gente já não sabia mais como a nossa cidade é bonita. O projeto foi concluído após cinco anos. Não encontramos ouro (risos), mas sim espaços bonitos, lugares escondidos ou até mesmo monumentos históricos.

“…Se você é um parlamentar e prefeito, sabe como defender os projetos no linguajar político do Parlamento e acaba tendo mais chances de chegar ao dinheiro…”

swissinfo.ch: Sua carreira é típica na Suíça: estudo de direito, prefeito desde 2003, deputado-federal desde 2006, durante oito anos presidente do Clube de Futebol de St. Gallen e ainda vários mandatos em instituições, muitas vezes junto a outras funções. Um político tipicamente suíço?

T.M.: A Suíça funciona através do sistema de milícia. Você está na política, mas exerce ainda sua profissão. Foi o que aconteceu comigo. Ao ser eleito deputado-federalLink externo, continuei trabalhando como prefeito. É uma vantagem para a cidade se você tem uma ligação direta com Berna. Lá o dinheiro é distribuído para os diferentes projetos. Se você é parlamentar e prefeito, sabe como defender seus projetos no linguajar político do Parlamento e acaba tendo mais chances de chegar ao dinheiro.

swissinfo.ch: Sua carreira política começou no Partido Democrata Cristão (CVP, na sigla em alemão), mas em 2011 o senhor mudou para o Partido do Povo Suíço (SVP), da direita conservadora. Por que?

T.M.: Me filiei ao CVPLink externo aos dezessete anos. Mas no final de 2010 decidi sair do partido e me filiei ao SVPLink externo. Foram duas razões. A primeira foi a questão da imigração. No meu partido original faltava a sensibilidade para entender porque os suíços não querem mais que a população cresça a uma base de 80 mil habitantes por ano. A segunda diz respeito às relações entre a Suíça e o mundo. O CVP é um partido clássico de centro, mas que hoje já não tem mais um perfil claro. Os seus membros na época cediam a todas as pressões vindas do exterior, seja através do Alemanha e seu ministro das Finanças, Peer Steinbrück, ou a OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) quando ela atacou o sigilo bancário. Pensei nos meus filhos e netos e disse que não aceitaria mais essa situação. Somos um país soberano!

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swissinfo.ch: Quando o sigilo bancário suíço foi atacado em 2009, o Senhor declarou publicamente que o ministro alemão Peer Steinbrück lembrava “uma geração de alemães que há 60 anos andava pelas ruas com manto de couro, botas e braçadeira”. Cinco anos depois, o ataque veio dos EUA. Prometeu então que boicotaria carros americanos e venderia os Chryslers na garagem de casa. Por que tanta paixão na defesa do sigilo bancário? 

T.M.: O sigilo bancário é um sigilo para os clientes dos bancos, algo que é profundamente enraizado entre os suíços. Se o fisco quer saber quanto dinheiro tenho na conta, não há problema, mas não o mundo. O que essa pressão internacional queria alcançar é a transparência absoluta do cidadão. Isso não para ajudar as pessoas, mas sim porque o Estado quer tirar mais dinheiro do seu bolso. Um desses representantes era o Steinbrück, que chegou até a ameaçar de nos enviar a cavalaria. Foi quando eu então fiz essa declaração no púlpito da Câmara dos Deputados, que provocou muita polêmica na Suíça. Simplesmente achava que o Parlamento deveria dizer ao ministro que existem limites. Já o segundo problema foi com o Estados Unidos, quando na época os democratas atacaram o sigilo bancário. Porém veja: o sigilo bancário mais rígido do mundo é encontrado em alguns estados dos EUA. Foi então que decidi vender meus três veículos Chrysler e, desde então, dirijo só Hyundai.

“…Estou seguro que 99% dos suíços pagam honestamente seus impostos…” 

swissinfo.ch: E o sigilo bancário não existe mais… 

T.M.: Poderíamos ter mantido pelo menos uma parte dele se antes tivéssemos agido com mais habilidade e não cedido o tempo todo. Agora a discussão é sobre o sigilo bancário interno. Iremos abandoná-lo também? Sou claramente contra. Se não é uma questão de crime, então o fisco não tem o direito de olhar na minha conta bancária. O Estado são as pessoas e não a administração. E o cumprimento das obrigações fiscais na Suíça é um dos mais elevados no mundo. Estou seguro que 99% dos suíços pagam honestamente seus impostos. 

swissinfo.ch: No Brasil existe um movimento para criar novos municípios. Já o seu plano era de fundir o seu com mais dois outros. Por que o plano fracassou?

T.M.: Na região da grande Rorschach vivem aproximadamente 45 mil habitantes, porém são seis municípios. É como há cem anos, quando os bairros da cidade de Zurique eram também municípios. Tentamos duas vezes fazer, pelo menos, uma fusão de três municípios – Rorschach, Rorschacherberg e Goldach – e fracassamos devido ao medo financeiro do eleitor. Rorschach é tão grande como Monte Carlo: 1,7 quilômetros quadrados, 100% da área construída com muitos prédios velhos no centro, onde vivem muitas pessoas que dependem da assistência social. São pessoas que nos custam três milhões de francos por ano. Os outros municípios não querem essas despesas. 

swissinfo.ch: O problema é a democracia direta? 

T.M.: Eu considero o sistema de democracia direta o melhor do mundo. Se você é prefeito de uma cidade, precisa apresentar projetos propícios à formação de maiorias. Esse não era o caso da fusão. Acho correto que a última palavra seja dada pelo eleitor. 

swissinfo.ch: Rorschach é uma das cidades com o maior número de dependentes da assistência social (4,3%) ao leste da Suíça. É uma cidade pobre? 

T.M.: Rorschach não é pobre. Se definirmos pobreza com padrões internacionais, então um dependente de assistência social na Suíça seria considerado rico em Portugal ou na Moldávia. A ajuda social na Suíça é muito generosa. A razão para o grande número de dependentes de assistência social em Rorschach se explica pelas casas antigas, de aluguel barato, que temos por aqui. 

swissinfo.ch: E de onde vem essas pessoas que dependem da ajuda oficial?

T.M.: A metade da população de Rorschach é de estrangeiros, mas esse não é o problema. O fato é que recebemos nos últimos dez a quinze anos muitos estrangeiros com um baixo nível de escolarização ou formação profissional. São pessoas que têm dificuldade de encontrar hoje um emprego e acabam tendo de viver da ajuda oficial. 

swissinfo.ch: Os estrangeiros se integram bem em Rorschach?

T.M.: Rorschach é tão internacional como Genebra. Muitos dos estrangeiros aqui já estão na segunda geração. Outros se naturalizaram. Para mim isso é uma riqueza. Já na escola meus filhos tiveram contato com outros idiomas. Porém aqui existem pequenos grupos de estrangeiros que não respeitam as leis suíças. Nós devemos ser duros com eles e reenviá-los aos seus países. 

Homem em um escritório com um livro na mão
No gabinete de prefeito de Rorschach: Thomas Müller lendo o Código Civil Brasileiro, traduzido há pouco para o alemão. swissinfo.ch

swissinfo.ch: Rorschach foi o primeiro município na Suíça a abandonar o acordo de assistência social (Skos), que determina a quantidade de ajuda que uma pessoa deve receber. O Senhor é contra esse tipo de ajuda?

T.M.: Esse sistema do SkosLink externo acabou criando uma mentalidade de reivindicação entre os dependentes de ajuda social. Ele não oferece simplesmente ajuda para as necessidades básicas como alimentação, moradia e saúde. Trata-se na verdade de um catálogo de oferta com de mais de cem páginas, que garante o direito de férias ou mesmo, em casos particulares, até o de ter uma faxineira. Mas não é possível que uma pessoa sem ocupação tenha mais dinheiro no final do mês do que um trabalhador. Essa foi a razão por termos saído do Skos, o que agora é acompanhado por outros municípios. Pelos menos com isso conseguimos lançar um debate nacional.

“..permitimos dentro do Estado de direito que imigrantes muçulmanos nos imponham o seu próprio direito. Isso não seria possível no Brasil…”

swissinfo.ch: Em uma entrevista a um jornal local no outonoLink externo, o Senhor declarou que o “Islã não pertence à Europa” e que os “brasileiros são racistas saudáveis”. Qual a relação?

T.M.: Eu já sou casado há mais de 40 anos com uma brasileira e conheço toda a sua família. Viajo também todos os anos ao país. O que eu gosto nos brasileiros é que eles são claros em dizer o que gostam e o que não gostam. Já aqui nos países liberais da Europa ocidental, permitimos dentro do Estado de direito que imigrantes muçulmanos nos imponham o seu próprio direito. Isso não seria possível no Brasil.

swissinfo.ch: O Brasil sempre foi um país de imigração. O problema não seria a dificuldade da Suíça de integrar estrangeiros?

T.M.: Acho que não. Sempre integramos tradicionalmente outras culturas na Suíça. Rorschach, por exemplo, sempre recebeu muitos trabalhadores italianos. Mas o problema hoje com a imigração muçulmana é que ela tenta impor seus valores morais e religiosos aqui na Suíça ou em outros países da Europa ocidental. Se eles querem viver dessa forma, que o façam em seus países, mas não aqui. Não é possível sermos tão tolerantes e acabarmos aceitando a intolerância através da imigração. Não quero que meus netos andem pelas ruas com um véu na cabeça se, um dia, a maioria dos eleitores disserem que o direito islâmico vale aqui.

swissinfo.ch: O Senhor está casado há 40 anos com uma brasileira. Como a conheceu?

T.M.: Eu a conheci em Liechtenstein durante um congresso para jovens políticos cristãos-democratas. Nós dançamos juntos em um baile de depois, nos casamos em setembro de 1978. Um ano depois eu viajei ao Brasil pela primeira vez, quando visitei os meus sogros em Benedito Novo, próximo a Blumenau, em Santa Catarina. Meu sogro era fazendeiro e conheceu então esse europeu meio frouxo (risos). Ele brincou comigo dizendo que eu era muito educado e fraco para conseguir sobreviver no Brasil.

swissinfo.ch: E quais foram as impressões dessa primeira viagem ao Brasil?

T.M.: Não havia muita diferença entre a vida nas cidades brasileiras e aqui. Já no campo, as condições de vida eram bem simples. Eu quase não podia imaginar que seria assim.

swissinfo.ch: E hoje, quais são as impressões do Brasil?

T.M.: O Brasil mudou muito. Quando viajo por cidades como Navegantes, Itajaí ou Blumenau, vejo que são cidades modernas, mas com muitos problemas de infraestrutura. Já no ponto de vista político, o maior problema é a corrupção, algo que só pode ser resolvido com muito rigor.

swissinfo.ch: Adotar um sistema de democracia direta como na Suíça seria a solução para o Brasil?

T.M.: Não seria. Um sistema com a democracia direta tem de crescer naturalmente. Para que todas as pessoas possam decidir sobre os temas, elas necessitam ter conhecimentos básicos de política, senão tudo fica aleatório. O que sinto falta no Brasil é de um poder regulador. Alguém que não seja corrupto e que possa indicar a direção. Não digo uma ditadura, mas após o impeachment da presidente Dilma, conversei com muitos jovens brasileiros. Alguns defendem o retorno dos militares pelo menos por dez anos, apesar de não terem vivido na época e como se acreditassem que se isso fosse resolver facilmente os problemas do país. Sinto falta é de um poder regulador capaz de combater determinados males. Mas já existem algumas tentativas. Eu acompanho com grande interesse todo o combate à corrupção no Brasil através da Justiça.

“…Na Suíça você necessita, como político, de cooperar. Cada um está sempre na minoria…”

swissinfo.ch: Políticos na Suíça são menos avessos à corrupção? Você nunca sofreu uma tentativa? 

T.M.: Eu estou desde 1984 na política, tanto no nível comunal, cantonal e federal. Em todo esse tempo, nunca recebi uma oferta escusa. Talvez alguém possa dizer que sou muito insignificante. Mas a razão para isso talvez seja o próprio sistema político suíço. Aqui não há pessoas individuais que tomam decisões políticas e que concentrem em si o poder e o dinheiro. Na Suíça você necessita, como político, de cooperar. Cada um está sempre na minoria. Ninguém pode tomar decisões passando por cima de outros, o que faz com que o político suíço acabe sendo pouco interessante para os corruptores.

Biografia

Thomas Müller nasceu em 1º de dezembro de 1952 em Uzwil, cantão de St. Gallen (leste).

Estudou direito na Universidade de Zurique e trabalhou de 1980 a 1984 como escrivão no Tribunal de Rorschach. Em 1984 abriu um escritório de advocacia, no qual atuou até 2003.

De 1985 a 1996 foi membro da assembleia municipal (Câmara Municipal) de Rorschach. Entre 1992 e 2000 foi membro do Legislativo do cantão de St. Gallen. Em 2003 foi eleito prefeito de RorschachLink externo, cargo que exerce até hoje.

Em 2006 foi eleito deputado-federal pelo Partido Cristão-Democrata (CVPLink externo). Em 2011 filiou-se ao Partido do Povo Suíço (SVPLink externo, direita nacionalista).

Entre 1998 e 2003 foi presidente do Clube de Futebol de St. GallenLink externo, fundado em 1879 e um dos clube de futebol mais antigos da Europa. Em 2000 o clube foi campeão suíço pela primeira vez desde 1904.

É casado e tem três filhos.

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