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Jovens talentos suíços mostram sua literatura no Rio de Janeiro

Laurin Buser durante a sua apresentação no Flup.
Laurin Buser durante a sua apresentação no Flup. swissinfo.ch

Dois jovens e talentosos artistas suíços viveram a experiência de participar no Rio de Janeiro de uma das mais bem-sucedidas inciativas de debate e formação literária para jovens de bairros pobres e comunidades carentes realizadas no Brasil: a Festa Literária das Periferias (Flup)Link externo. A escritora Michelle Steinbeck e o poeta e rapper Laurin BuserLink externo fizeram parte da sexta edição do evento, que aconteceu entre os dias 10 e 15 de novembro na favela do Vidigal, na zona sul da cidade.

Evento inspirado na Festa Literária de ParatyLink externo (Flip), mas com preocupações sociais, a Flup foi criada em 2010 e, a cada ano, é precedida por um processo de formação de novos escritores, poetas e roteiristas de audiovisual que dura sete meses: a Flup Pensa. Durante o evento propriamente dito, autores de renome trocam informações e experiências com um público, em sua maioria formado por jovens, ávido por conhecimentos literários e que tem muito a dizer.

Editora e escritora de contos, poesias e peças de teatro e rádio, Michelle Steinbeck faz sucesso na Suíça com seu romance de estreia: “My Father Was a Man on Land and a Whale in the Water”. Na FlupLink externo, a jovem autora suíça, que também é editora-chefe da revista “FrabikzeitungLink externo” em Zurique, apresentou seu trabalho e mediou mesas de discussão sobre os temas prementes para os jovens do Vidigal.

“Aqui no Brasil há muito material humano e social sobre o qual escrever. Nestas duas semanas em que estou aqui já escrevi 15 páginas somente sobre as coisas que vi no Rio. Para mim, pegar um voo de doze horas até o Brasil já foi uma tremenda aventura”, brinca Michelle.

Antes da Flup, ela e Laurin – os dois formam um casal – passaram alguns dias na favela da Babilônia, também, na zona sul do Rio, e a escritora, mostrando perspicácia sobre a realidade da cidade, fala sobre o impacto que tiveram: “Quando chegamos à Babilônia, ainda de dentro do carro eu pude perceber que se tratava de um local onde o Estado não se faz presente de maneira adequada. Eu fiquei impressionada ao ver que a política de pacificação já é coisa do passado. E vi rapazes muito jovens empunhando armas”, diz.

Trabalho com jovens

O contato com os jovens das favelas do Rio foi muito proveitoso para Laurin BuserLink externo e Michelle Steinbeck, já que tanto o poeta e rapper quanto a escritora e editora têm no trabalho realizado junto aos jovens uma de suas atividades na Suíça: “O slam, assim como o hip-hop, funciona muito bem para dialogar. Muitas vezes esquecem que as pessoas do slam, as pessoas do hip-hop, trabalham muito com os jovens, acho que temos um outro nível de conexão”, diz.

“Quando eu vou a uma escola, percebo que passo para os jovens uma visão diferente daquela do professor. Eles compreendem que podem tirar alguma coisa de mim e, para mim, é importante dizer a esses jovens: sim, você também pode escrever, isso é possível, você tem talento para produzir coisas boas. Eu amo o trabalho com os jovens porque vejo que alguma coisa está começando. Isso também é uma grande inspiração para mim”, diz Buser, que em Zurique faz visitas a escolas para apresentar o slam.

Michelle, que realiza um trabalho junto a novos escritores e poetas na Suíça, ressalta o engajamento do jovem carioca: “Comparado à Suíça, aqui no Brasil é uma outra dimensão, é tudo muito mais político, os problemas são diferentes e muito maiores. Pude travar na Flup discussões sobre problemas muito importantes”, diz.

Os momentos vividos no Rio e a participação na Flup, afirma Michelle, certamente se farão presentes em seus futuros projetos: “Eu aprendi muito no Rio, estou gostando muito. A população brasileira em geral, e acho que a carioca em particular, é muito legal e muito prestativa. Sem querer cair em clichês, vi que a vida na comunidade pode ser diferente do que se imagina e que as pessoas gozam de um certo sentimento de liberdade, as pessoas me pareceram mais naturais. Eu adorei essa contradição”.

“Experiência forte”

A sensação é compartilhada por Laurin Buser, que já tem discos e videoclipes publicados e venceu importantes torneios de slam na Suíça e na Alemanha: “É a primeira vez que venho ao Brasil e à América do Sul. Conhecer o Rio está sendo uma experiência muito forte. Na primeira semana eu conheci a comunidade da Babilônia. Foi a primeira vez que estive em uma favela e, para mim, foi marcante a experiência de, a cada dia, ter que cruzar com traficantes armados nas ruas. Foi a primeira coisa que me impressionou no Rio”.

A segunda experiência marcante, diz o suíço, foi a própria Flup: “Após uma semana na Babilônia, veio o festival, que está sendo muito impactante para mim. Eu faço slam há dez anos e, aqui no Rio, a cena é completamente diferente da Europa. É uma cena única porque as pessoas aqui têm realmente a necessidade de dizer alguma coisa, de passar uma mensagem, e o slam possibilita isso”, diz.

Buser participou do Rio Poetry Slam, evento realizado dentro da Flup. Ele afirma que o engajamento dos slammers que conheceu no Vidigal é bem diferente do que costuma ver na Europa: “Na Suíça ou na Alemanha, por exemplo, a cena dos slams também tinha esse caráter contestatório em sua origem, mas agora é muito grande e altamente profissional. Aqui no Rio as pessoas realmente utilizam com garra cada segundo dos três minutos que têm para fazer as rimas. Para mim, isso foi uma grande inspiração que levarei para a Suíça”.

“Ir além”

Criador da Flup ao lado do escritor Júlio Ludemir, o também escritor e poeta Écio Salles conta como a ideia surgiu: “Quando eu e Júlio estávamos na Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu – eu era secretário nessa época – fizemos algumas ações de literatura na cidade. O Júlio coordenava uma ação com jovens jornalistas que se ocupavam de produzir notícias positivas sobre Nova Iguaçu e a Baixada Fluminense. Mais de 400 pessoas participaram desse projeto e a gente percebeu que havia um volume de pessoas, havia um espaço para a literatura. Esses jovens estavam sempre lendo, gostavam de escrever”, diz.

Dois homens, sendo que um deles segura um microfone.
Os escritores Écio Salles (esq.) e Júlio Ludemir (dir.) swissinfo.ch

O potencial literário da periferia carioca era claro: “Quando provocadas a escrever, essas pessoas faziam textos bem bacanas. Mesmo com certa ingenuidade e sem muito domínio das técnicas de narrativa, havia ali uma situação muito favorável à literatura. E, como eu tive a minha própria vida transformada pela literatura, assim como o Júlio, a gente achou que ali poderia ter alguma coisa a mais para a gente fazer nesse campo. Nós achávamos que, com a literatura, poderíamos produzir uma narrativa na cidade capaz de impulsionar as pessoas a ir além do lugar onde elas estavam naquele momento”, conta Salles.

A importância do trabalho de formação prévio à Flup, realizado desde a primeira edição do evento, é ressaltado pelo coordenador da festa literária: “Logo no início, preparamos uma metodologia que consistia em realizar no período de março a setembro uma sucessão de pequenos encontros semanais entre escritores e um grupo de novos autores em potencial que a gente inscrevia previamente e que sabia que a proposta era no final publicar um livro. Deu muito certo: no primeiro ano nós fizemos encontros em 14 favelas, inclusive em São Gonçalo e na Baixada Fluminense e, no final, publicamos um livro com 43 novos autores, alguns dos quais são hoje referência na literatura brasileira”, diz Salles.

Novos talentos

O coordenador da FlupLink externo, Écio Salles, não esconde o orgulho com os talentos já revelados nestes seis anos de festa literária: “Eu poderia citar dezenas de pessoas, mas não posso deixar de ressaltar autores como Jessé Andarilho, que acaba de lançar seu segundo romance; Ana Paula Lisboa, que hoje é colunista do jornal O Globo; Yasmin Tainá, que transformou o conto que ela publicou na Flup em filme e hoje é uma cineasta respeitada; Felipe Boaventura, que hoje é um contista com a carreira bem legal; Henrique Coimbra, que é um jovem gay da Zona Oeste e tem uma visão de periferia bem diferente de tudo, ligada a shoppings e festas e homoafetiva”.

Os novos nomes revelados pela Flup, diz Écio, estão sendo reconhecidos até mesmo pela indústria de cinema: “Há Raquel Oliveira, que foi namorada do Naldo, aquele traficante da Rocinha que ficou famoso no Brasil inteiro a ser filmado dando uma rajada de metralhadora do alto de uma laje. Ele foi morto em uma tocaia e Raquel virou chefe do tráfico no lugar dele. Ela escreveu um romance que já está virando filme. Há também o Rodrigo Santos, que lançou o romance ‘Macumba’, a história de um detetive evangélico que vai investigar crimes ocorridos em terreiros de candomblé e acaba fazendo uma jornada pessoal que não só dissolve seus preconceitos como conta uma história da tradição cultural brasileira pelo lado afro que é muito interessante”

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