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“Queremos trazer o jornalismo cidadão para o cinema”

Cinta Pelejà (esq.) e Cíntia Gil em Locarno. swissinfo.ch

Fora das salas de cinema, o Festival de Cinema de Locarno é espaço para negociações e contatos dos "olheiros" da indústria cinematográfica, dentre eles, Cíntia Gil e Cinta Pelejà, diretoras do DocLisboa.

Em entrevista à swissinfo, as duas falam sobre o importante festival de documentários em Portugal e o espaço que o jornalismo cidadão ganhou nele nos últimos anos.

A portuguesa Cíntia Gil e a espanhola Cinta Pelejà estão correndo esses últimos dias em Locarno. De uma projeção a outra, as duas folheiam o grosso catálogo do festival de cinema realizado às margens do lago Maggiore para não perder nenhum filme. Junto com a colega Susana de Sousa Dias, elas são responsáveis pelo DocLisboa, um dos mais importantes festivais de documentário realizados na Europa.

swissinfo.ch: Para os leitores que não conhecem, o que é o DocLisboa?

Cíntia Gil: O DocLisboa foi criado pela Apordoc, a Associação Portuguesa para o Documentário. Essa associação foi constituída por um grupo de pessoas nos anos 1990, que começaram a fazer filmes e pensar na prática do documentário e que se juntavam para discutir, trocar ideais, criar sinergias e colaboração. O DocLisboa surge no contexto de atividades lançadas pela Apordoc para divulgação e promoção do documentário não apenas português, mas também internacional.

swissinfo.ch: Como vocês definem o documentário português?

Cinta Pelejà: No DocLisboa, no ano passado tivemos muitos documentários autoproduzidos. Esse é um aspecto importante da produção nos últimos anos. Temos também uma característica de ser um documentário muito íntimo, muito pessoal, como no caso do Joaquim Pinto (clicar no link para o artigo “Documentário português aborda questão da vida com HIV”), ou como vemos nos últimos anos como o documentário “Cativeiro”, de André Gil Mata.

C.G.: É preciso olhar para a história do cinema e do cinema novo português: a relação entre o documentário e a ficção sempre foi muito próxima. Talvez você tenha a presença de uma linguagem próxima do documentário mais em alguns autores do que em outros. Por exemplo, talvez mais no António Reis (1927-1991) do que no Manoel de Oliveira (1908-), mesmo que neste também exista. Mesmo assim, você tem na ficção uma relação com a paisagem e com a natureza dos lugares que é profundamente íntima e poética. Assim temos a construção de uma poética a partir da experiência íntima de um realizador em um lugar. E essa experiência pode resultar uma ficção como acontece nos “Os Verdes Anos”, do Paulo Rocha. Mas isso também pode ocorrer como documentário. O documentário português tem essa característica: ele é mais do que a documentação de uma realidade antropológica ou sociológica, ou seja ele é a construção de uma poética a partir de uma experiência íntima.

swissinfo.ch: Como vocês informam na documentação, o DocLisboa integrou a Doc Alliance um projeto de parceria que unem sete festivais europeus de documentário. Como isso surgiu?

C.P.: O DocLisboa foi o sétimo membro a ser incorporado no Doc Alliance. O objetivo é apoiar a distribuição e a visibilidade de determinados filmes, fazendo um circuito entre os diversos festivais europeus. E esse trabalho também ocorre através do seu portal na internet, onde se divulga a programação e também são exibidos filmes.

C.G.: Também tem a ver com o fato de existirem sete festivais que são profundamente diferentes, mas que de alguma maneira compartilhavam de alguma visão comum do documentário, a do documentário enquanto cinema de autor. Isso ocorre em uma altura que o documentário tem também um grande peso das televisões, especialmente em termos de financiamento, com alguns festivais a terem muita importância nesse sentido e a criar uma espécie de mercado. Portanto havia uma série de filmes que não tinham visibilidade. Então decidimos que, ao invés de competirmos uns com os outros, a ideia era unir as forças – mantendo as diferenças – mas conseguir criar uma frente de afirmação do documentário que defendemos, o documentário cinematográfico.

swissinfo.ch: No ano passado o DocLisboa criou a seção “Cinema de urgência”. Qual é o seu objetivo?

C.P.: As seções novas foram criadas pela necessidade de mostrar e contextualizar determinados tipos de filme. Em “Cinema de Urgência” mostramos filmes feitos no contexto de uma necessidade absoluta de serem mostrados imediatamente. Muitas vezes são vídeos divulgados em uma rede social, quando os realizadores querem ter uma prática cívica e os utilizam no cinema para fazer face a uma falta de informação e profundidade que os meios de comunicação têm com determinados assuntos. Por exemplo, no ano passado recebemos e exibimos muitos filmes da Síria e da Espanha. Em grande parte são filmes que provocam debate. Eles levantam também a questão: o que significa fazer cinema político?

swissinfo.ch: No Brasil foi criado um grupo chamado Mídia NINJA, que se caracteriza por exercer o chamado jornalismo de cidadão. Porém eles sofrem a crítica das mídias tradicionais de serem extremamente politizados e engajados em determinadas causas. Vocês veem nesse tipo de documentário também uma forma de arte?

C.G.: O Cinema de Urgência não pretende em primeiro lugar mostrar documentários artísticos. Junto com essa expressão da mídia “ninja”, também há aquela expressão do cidadão-repórter. Nesse sentido acredito que existe uma marca ideológica, ou seja, não há uma presunção de objetividade e neutralidade quando o cidadão vai à rua e filma aquilo que o inquieta. Mas isso também é interessante, pois é também muito discutível quando dizemos que os meios de comunicação são ideologicamente neutros. Todos nós sabemos que existe uma zona cinzenta que são os meios de comunicação. Esses vídeos que os cidadãos ou mesmo coletivos de luta fazem são assumidamente ideológicos, mas ao mesmo tempo são modos de denúncia e luta bastante eficazes e muitos próximos da realidade do cidadão anônimo.

No fundo, a experiência que queríamos fazer com o Cinema de Urgência foi de acolher esses filmes, cuja grande maioria é feita para o computador – onde há uma relação de um para um – e apresentá-los em uma grande sala de cinema. E muitas vezes, colocá-los em uma sala bonita, com 800 lugares, e transformar isso numa experiência coletiva de reflexão.

swissinfo.ch: Mas esses filmes feitos com smartphones ou outros aparelhos modernos não carecem de uma certa qualidade, pois são feitos muitas vezes em meio ao caos? Como eles são preparados para a apresentação em um festival de documentário?

C.P.: Eu também vejo o cinema de urgência como um arquivo. Eu estou a pensar em filmes, por exemplo, que também foram realizados durante na época da ditadura no Chile. Lá você vê algumas imagens que podem ser comparadas às das que estamos apresentando na seção Cinema de urgência. Quando digo que esses filmes podem ser vistos como um arquivo, é porque talvez as pessoas possam pegar todas essas imagens que estão sendo produzidas atualmente e fazer um filme, onde há uma reflexão cinematográfica mais profunda.

swissinfo.ch: O que vocês apresentarão esse ano em Lisboa nessa seção? Serão filmes de grupos ou trabalhos individuais?

C.G.: Há de tudo! Nós vamos mostrar, por exemplo, os trabalhos de um coletivo sírio chamado Abou Naddara Films. Eles são no fundo um coletivo sem limites, pois formam as pessoas e cresce, assim, constantemente através da uma base na internet. Mas também temos filmes de indivíduos e até de pessoas que nunca na sua vida haviam pegado em uma câmera. Eles o fizeram por absoluta necessidade, como vimos no caso de alguns portugueses, para denunciar aquilo que estava acontecendo com eles. N momento das repressões policiais violentíssimas há dois anos, algo que não ocorria desde antes de 25 de abril (n.r.: Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, que encerrou a ditadura do Estado Novo), surgiram imediatamente filmes denunciando isso, com imagens que não apareciam na internet, mas que eram imediatamente retiradas, o que mostra o controle que sofre esse canal também. Assim, o interessante do Cinema de Urgência é que esses filmes ficam não apenas nas salas de cinema, mas também permanecem referenciados no catálogo de um festival. 

swissinfo.ch: Outra seção criada no DocLisboa se chama “Verdes Anos” e está voltada para os estudantes. No contexto da crise em Portugal e em outros países do sul da Europa, como está esse cinema?

C.P.: Essa seção foi criada pela vontade de dar visibilidade aos trabalhos feitos por jovens em formação nas escolas de cinema e vídeo. Queríamos dar uma oportunidade para eles mostrarem seus filmes e entrarem em diálogo com o público ou outros realizadores que venham ao festival. O festival serve assim como uma plataforma para a sua carreira.

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swissinfo.ch: Em sua opinião, como contribuem as novas tecnologias ao trabalho de um cineasta? Elas facilitam a criação e exibição de novos filmes?

C.P.: Também quando estudei na escola de cinema só se faziam filmes em película, e uma vez por ano em vídeo, e mesmo assim de muito má qualidade. Hoje em dia é muito mais simples. Mas não é só uma questão da tecnologia ter facilitado a vida para as pessoas. O fato é que, com essas novas tecnologias, houve também uma perda de pudor, no bom sentido. Ou seja, hoje é possível fazer filmes com poucos meios, até mesmo com um telemóvel e não faz mal desde que se pense para tal. Os estudantes dominam essas tecnologias e podem, assim, experimentar mais. Por outro lado também existe um lado perigoso, que é no fundo o pouco tempo que existe hoje em dia entre a ideia e a execução do filme. Isso, pois há uma perca de um longo período da reflexão que tradicionalmente existia no cinema. Esse momento em que eu tenho a ideia e o momento em que posso fazê-lo, e que obriga um profundo rigor e um profundo estudo de mim mesmo e da minha ideia.

swissinfo.ch: Vocês receberam muitas contribuições de documentários feitos por jovens ou estudantes?

C.G.: Foi surpreendente, mas nós recebemos uma quantidade enorme de filmes feitos por pessoas das escolas de cinema, mas também fora dos cursos.

swissinfo.ch: Com a crise financeira, como está a situação da indústria nacional de cinema e do festival?

C.G.: A situação está péssima. Na verdade, o governo reduziu o apoio não ao DocLisboa, mas sim a Apordoc, ou seja, se até dois anos atrás a Apordoc tinha um apoio substancial para realizar as suas atividades – o DocLisboa é apenas uma delas – no ano passado foi zero. Este ano foi reduzido em cinquenta por cento do que seria o normal. Isso nos obrigou a reestruturar todo o pensamento e a organização financeira da associação e isso teve, obviamente, uma repercussão no festival. Hoje recebemos um certo apoio da iniciativa privada, apesar de que ela também está sofrendo dificuldades.

swissinfo.ch: E como está a situação dos cineastas portugueses?

C.G.: Hoje em Portugal há uma comunidade de pessoas que estruturaram toda a sua vida para trabalhar no cinema como técnicos, argumentistas e realizadores que de repente estão sem nenhum trabalho. Elas não encontram nenhum emprego, pois essa é a sua profissão, uma profissão que está a deixar de existir. Os jovens que podem emigram e deixam de fazer cinema em Portugal. Os mais velhos estão num situação miserável. Existem casos de artistas e técnicos fundamentais, que trabalharam em vários filmes históricos que gostamos de ver no cinema, e que hoje vivem com pensões de 240 euros por mês. Isso é o que está acontecendo nesse momento: o Estado está fazendo definhar, e eu acho que isso é uma estratégia, um ramo fundamental da cultura portuguesa.

DocLisboa é um festival de cinema organizado em Portugal com o objetivo de apresentar documentários. A sua organização está ao cargo da Apordoc, a Associação Portuguesa para o Documentário.

Em 2013, ocorre a 11° edição do festival entre 24 de outubro e 3 de novembro.

Em Janeiro de 2013, o DocLisboa tornou-se o sétimo membro do projeto Doc Alliance, iniciativa que nasce da parceria de outros seis festivais de cinema documental europeus: CPH:DOX Copenhagen (Dinamarca), DOK Leipzig (Alemanha), FID Marseille (França), Jihlava IDFF (República Checa), Planete Doc Film Festival (Polónia) e Visions du Réel Nyon (Suíça).

O festival é dividido em várias seções: competição internacional longas e curtas, competição portuguesa longas e curtas, investigações, riscos, “heart beat”, cinema de urgência, verdes anos, passagens e retrospectivas (dedicada em 2013 ao cineasta francês Alain Cavalier, o foco 1973-2013 no golpe militar no Chile, e a retrospectiva “Moving Stills”, sobre a relação entre documentário e fotografia).
 

Ele é dirigido por um coletivo de três diretoras: Cinta Pelejà, Cíntia Gil e Susana de Sousa Dias

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