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Documentário português aborda questão da vida com HIV

O cineasta Joaquim Pinto com o seu cão. swissinfo.ch

Concorrente ao Leopardo de Ouro, o principal prêmio do Festival Internacional de Cinema de Locarno, o filme "E Agora? Lembra-me" de Joaquim Pinto é o diário intimista de um soropositivo. Porém, longe de tentar dramatizar a enfermidade ou chocar o espectador, o cineasta prefere compartilhar com o público pequenos, mas singelos momentos do cotidiano, seguindo as tradições do clássico documentário português.

Joaquim Pinto vive há vinte anos com o vírus da HIV e da hepatite C. Seu dia-a-dia se assemelha ao de outras pessoas soropositivas em várias partes do mundo, que lutam contra doenças oportunistas e outras deficiências do sistema imunológico através de baterias de medicamentos, dos quais muitos ainda estão em fase de testes ou atacam outros órgãos do corpo. As fases de alegria, e o valor dado a cada minuto de vida, se alternam com os momentos onde a dor e o medo estão presentes. Em muitos momentos não é necessário ter palavras. A câmara focaliza simplesmente o rosto do protagonista e o silêncio parece dizer tudo.

Assim ocorre em “E Agora? Lembra-me”, o último filme do cineasta português, selecionado para a mostra competitiva do 66° Festival Internacional de Cinema de Locarno. Nele, Joaquim Pinto leva o espectador a acompanhar um ano da sua própria vida, em duas horas e quarenta e  cinco minutos de projeção. Não são cenas fáceis de ser digeridas, mas ao mesmo tempo cheias de momentos íntimos, por vezes até poéticos ou bem-humorados.

Para quem conhece documentários portugueses – com um grande histórico de prêmios em festivais internacionais como o “Cinéma du Réel” (França), Mostra de Cinema de São Paulo ou o DocLisboa, não é difícil ver paralelos com outras obras como “48”, de Susana Sousa Dias, ou “Lisboetas” de Sérgio Tréfaut. Trata-se de um cinema autobiográfico, introspectivo e intimista, marcado sempre por uma maior experimentação formal.

Filme em anotações

O próprio Joaquim Pinto define com humildade seu trabalho como um simples “caderno de notícias”. Na coletiva de imprensa em Locarno, ele declara que o filme foi realizado com apenas duas câmeras, com as quais filmava o que considerava relevante para compartilhar as suas reflexões. A sua sinceridade toca, como o momento em que conta estar perdendo aos poucos a memória e precisa espalhar por toda a casa bilhetes para poder lembrar-se das coisas. São os efeitos dos medicamentos que toma para frear o desenvolvimento da AIDS. “Muitas vezes não tinha nem energia para carregar as câmeras”, conta.

As cenas mostram momentos em que Joaquim Pinto recebe tratamentos em hospitais na Espanha e Portugal, quando lembra também da atual crise econômica. Ele acusa as políticas públicas que cortam atualmente o orçamento para a saúde, penalizando uma grande parte da população. Porém, se muitos medicamentos conseguem prolongar a vida de soropositivos, eles também provocam sofrimento. Alguns dos amigos de Pinto questionam-se no documentário se existe justificativa para adiar a morte, um fato dos quais todos os enfermos estão conscientes. Momentos dramáticos em “E Agora? Lembra-me”.

Motivos concretos

Mas a intenção de Joaquim Pinto não é de provocar piedade. Seu principal objetivo é aproximar-se do público, especialmente o que teme até hoje em ouvir o nome da doença. “Nos últimos anos não tem havido filmes que deem uma perspectiva de interior do que é sobreviver com o vírus”, explica.

Outra razão para realizar o documentário está na sua própria história. “O segundo motivo de fazer o filme foi o fato de ter perdido um monte de amigos”, afirma Joaquim. Não apenas alguns deles são lembrados através de fotos ou extratos de antigos filmes em super-8, mas também os que  que ainda o acompanham no calvário de luta contra os vírus.

“Jô”, como Joaquim apresenta, é um deles. Em algumas cenas os dois compartilham suas reações a diferentes tipos de medicamentos. Algumas delas reforçam o otimismo. Outras mostram que os remédios são capazes até de piorar a saúde. “Preciso agora de seis meses para voltar ao meu estado anterior”, lamenta Jô em uma mensagem enviada.

Presente em Locarno, o amigo (ouvir áudio) considera pequeno seu papel, mas homenageia o cineasta português pelo fato deste retratar os doentes. “Falamos muitos de HIV ou doenças prolongadas ou crônicas, mas não temos rostos da população. Mas no fundo, quem está contaminada é a população”, ressalta Jô, completando. “O documentário é tão importante, pois esse projeto dá uma cara a nós, que não somos coitadinhos, mas sim pessoas que são membros da sociedade”.

Uma terapia? O filme pode ter várias interpretações. Porém é o próprio cineasta quem explica como o trabalho de realizá-lo dia-a-dia teve uma influência em sua vida. “Uma coisa que aprendi com esse filme foi de não ter mais medo.”

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Mundo científico

A descoberta talvez tenha sido o motivo que levou Joaquim Pinto e seu parceiro Nuno Leonel a se mudar com seus quatro cães para um sítio em Columbeira. O pequeno vilarejo distante uma hora ao norte de Lisboa, cujo nome vem do latim “Columbeiriu” e que significa um sepulcro subterrâneo entre os romanos, apresenta diversas grutas com esqueletos e vários vestígios romanos.

No local, o cotidiano do cineasta e sua família é trabalhar a terra e compartilhar pensamentos com o povo simples da região. Ele próprio revela aos jornalistas que o documentário seria apresentado à população, que conhece parte da sua vida, dois homens vivendo na mesma casa, mas que não conhecia a questão da doença. “Estou muito curioso para ver como eles vão reagir.”

Entre as plantações e o combate aos incêndios esporádicos nessa região de matas, Joaquim Pinto leva os espectadores a centros de pesquisa. Além de lutar para sobreviver, ele quer compreender o que ocorre com seu corpo. Nos últimos anos ele realizou muitas entrevistas com cientistas, médicos e pacientes para aprofundar seus conhecimentos do combate ao HIV. O material cinematográfico coletado poderia ter sido integrado no “E Agora? Lembra-me”, mas o cineasta prefere outra solução.

Ele decidiu utilizar as informações para ajudar outras pessoas. “Eu gostaria de montar um site na internet para explicar, dentre outros, as histórias das epidemias ou questões até religiosas que discuto bastante com o meu parceiro Nuno”, conta.

Espiritualismo?

Exatamente a questão da alma é que parece dar a força para Joaquim Pinto para ir em frente, mesmo se em muitos dias, como se apresenta no documentário, chega a não ter forças nem para levantar os braços. Por isso um dos momentos mais mágicos de “E Agora? Lembra-me” é quando o cineasta visita a Real Biblioteca de Madrid para admirar e folhear pessoalmente o tratado “Da Pintura Antiga”, realizado pelo humanista e pintor português Francisco de Holanda entre 1548 e 1549.

Considerado uma dos mais importantes figuras do renascimento em Portugal, Francisco de Holanda divulga no seu trabalho o essencial da obra de Miguel Ângelo e do movimento artístico em Roma na segunda metade do século 16. Para Joaquim Pinto, o livro é a chave para a espiritualidade que passou a sentir na sua vida. “O que eu acho muito interessante no livro é que ele tenta conjugar o que era a ideia do início do mundo fundada na Bíblia com os conhecimentos científicos da época”, revela Pinto.

Em uma das cenas finais, o cineasta fala que “quando voltarmos ao pó, a vida respirará de alívio”. Porém ele não o faz em forma de lamento, mas sim ressalta que se trata de um filme de amor, onde agradece a todos os próximos pelos momentos vividos.

Depois de Locarno, o filme de Joaquim Pinto será apresentado no festival “Queer”, em setembro, em Lisboa.

Joaquim Pinto nasceu no Porto em 20 de Junho de 1957.

O cineasta português atuou entre 1979 e 1987 como engenheiro de som em mais de 40 filmes de diferentes realizadores, dentre eles Manoel de Oliveira, Alain Tanner, João Botelho, Antônio Reis e Margarida Cordeiro, Jorge Silva Melo, Werner Schroeter, João César Monteiro, Paulo Rocha, João Canijo e José Nascimento.

Entre 1987 e 1996 produziu diversos filmes como “A Comédia de Deus” (1995, de João César Monteiro).

Em 1988 realizou seu primeira longa-metragem: Uma Pedra No Bolso (1988), seguido um ano depois por “Onde Bate o Sol” (1989). Os dois trabalhos foram selecionados para o Festival Internacional de Cinema de Berlim.

Em 1992 rodou “Das Tripas Coração”, que participou do Festival Internacional de Cinema de Locarno.

Joaquim Pinto também produziu documentários como “Surfavela” (1996) ou “Cidade Velha” (1999).

Junto com Nuno Leonel, ele também tem uma editora de música e literatura.

Concurso internacional: Concorrendo ao Pardo de ouro estão 20 filmes, dos quais 18 em primeira mundial.

Três filmes suíços: “Mary, queen of Scots”, de Thomas Imbach; “Tableau noir”, de Yves Yersin (documentário); “Sangue”, do diretor italiano Pippo Delbono (coprodução RSI).

Piazza Grande: 16 filmes apresenados, dios quais duas coproduções suíças. Jean-Stéphane Bron porta de Locarno ,o documentário “L’expérience Blocher”, enquanto Lionel Baier presenta “Les Grandes Ondes (à l’ouest)”.

Note-se a volta de filme italiano na Piazza: “La variabile umana”, de Bruno Oliviero.

O Pardo de honra este ano vai o diretor alemão  Werner Herzog, e a retrospectiva é dedicada ao cinema de George Cukor (1899-1983).

Tapete vermelho: Christopher Lee, Victoria Abril, Anna Karina, Sergio Castellitto, Otar Iosseliani, Jacqueline Bisset, Faye Dunaway e tantos outros.

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