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Boom dos quadrinhos brasileiros vira magma na Suíça

Quadrinistas brasileiros em Lucerna
Pausa para um cafezinho no meio da montagem da exposição - da esquerda para a direita: Diego Gerlach, Talita Hoffmann, Fabio Zimbres e Rafael Coutinho em Lucerna. Eduardo Simantob

O Festival Fumetto, que acontece até domingo em Lucerna, e a revista zuriquenha Strapazin promovem um projeto inédito de intercâmbio criativo entre autores e autoras suíços e brasileiros, intitulado “Magma”. As obras produzidas numa primeira fase do projeto estão expostas no festival, e também na última edição da Strapazin, publicada em alemão e portuguêsLink externo

Por sugestão de Nik Neves, artista gráfico gaúcho residente em Berlim, Fumetto e Strapazin toparam retomar sua colaboração internacional, cuja última ação se deu em 2015, com a Rússia. O foco desta vez é o Brasil, cuja produção de quadrinhos, assim como a produção latino-americana em geral, é virtualmente desconhecida na Suíça.

Seria forçado dizer que os quatro artistas brasileiros – Talita Hoffmann, Diego Gerlach, Rafael Coutinho e Fabio Zimbres – convidados para essa edição do Fumetto sejam uma amostra representativa da produção nacional de quadrinhos. Afinal, o próprio termo ‘produção nacional de quadrinhos’ não faz mais muito sentido. Durante uma pausa dos trabalhos de montagem da exposição em Lucerna, os artistas contaram à swissinfo.ch sobre o estado das coisas no Brasil.

Página de quadrinho de Diego Gerlach
Diego Gerlach

Anarquia criativa

Em primeiro lugar, o universo dos ‘comix’ já há vários anos tornou-se uma comunidade internacional. Além disso, a cena de quadrinhos no Brasil hoje em dia é bastante diversificada e descentralizada. O tradicional eixo Rio-São Paulo não é o vetor principal, e o acesso a meios de produção independentes revelaram nichos criativos em diversos cantos do país, do Ceará ao interior de São Paulo, e o grande Sul. 

Muitos autores publicam seus gibis ou livros por conta própria, até porque os custos de impressão ainda são razoavelmente acessíveis. A divulgação é feita por meio de mídias sociais e pelas feiras e eventos do gênero, que, segundo Rafael Coutinho, começaram a se proliferar especialmente depois da Rio Comicon de 2010. 

O gaúcho Diego Gerlach destaca que, além da quantidade e variedade, o que chama a atenção é a multidisciplinariedade dos novos autores, não mais presos ao quadrinho em si. “O negócio chegou a um ponto que começou a gerar cruzamentos incestuosos de referências que deram cria a filhotes defeituosos. Todo mundo aqui tem experiência com artes visuais e outros ofícios”, diz ele.

Ilustração de Rafael Coutinho
Rafael Coutinho

De fato, os limites entre os quadrinhos e as artes visuais, gráficas, literatura e até música praticamente implodiram. Talita Hoffmann é o melhor exemplo presente em Lucerna. Para efeito de categorização (com perdão do sacrilégio), sua obra poderia ser considerada como uma evolução da figuração narrativa, uma corrente da arte pop dos anos 1960 e 70, intimamente ligada à experiência transgressora dos underground comics daquela época. 

Talita, tímida, diz que, “tecnicamente eu não sei se estou muito dentro do universo dos quadrinhos, mas eu molho meus pés ali.” Rafael Coutinho conheceu Talita na galeria Choque Cultural, em São Paulo, que desde sua fundação, em 2004, promove a interação entre artistas que vêm da ilustração, da arte de rua, do grafismo e dos quadrinhos, todos buscando novas formas de narrativas visuais. 

Segundo Talita, “naquele momento, 2005, a gente começou a sentir uma entrada da arte de rua, do design e dos quadrinhos no circuito das artes visuais, borrando as linhas entre arte e ilustração, e colocando abaixo diversos preconceitos.” Por isso mesmo, ela se diz bastante confortável no Festival Fumetto, onde essa abordagem é parte fundamental da cena de comix da Suíça de língua alemã

Ilustração da artista ga ucha Talita Hoffmann
Talita Hoffmann não se considera exatamente uma ‘quadrinista’, mas sua obra não pode ser facilmente rotulada. Talita Hoffmann

A erupção de quadrinhos no Brasil

Com tudo isso, a cena atual no Brasil estimula uma competição bastante saudável entre os praticantes, segundo Gerlach, e que começou com as redes sociais. O pontapé inicial da Rio Comicon 2010 foi também quando ele conheceu artistas de todos os matizes, inclusive Rafael Coutinho e seu pai, a cartunista Laerte (referência obrigatória) e seu contemporâneo Angeli, entre outros.

“Foi também a oportunidade de conhecer a geração do Fabio (Zimbres), que tinha passado um hiato muito grande nos anos 1990, quando o quadrinho no Brasil ficou hibernando”, relembra Gerlach. Na época, “todo mundo queria trabalhar pra gringa, fazer portfólio para a Marvel, DC, etc., então houve um vácuo autoral, com raríssimas exceções.” 

A aparência jovial de Zimbres engana: nascido em 1960, sua trajetória pouco tem em comum com as dos colegas, até o ponto de encontro desse mais recente boom da produção nacional – mesmo que ele, particularmente, mal use as redes sociais para divulgar seu trabalho, que tampouco pode ser reduzido a mero ‘quadrinismo’. 

Quadro de Fabio Zimbres realizado especialmente para a exposição no festival Fumetto
Quadro de Fabio Zimbres realizado especialmente para a exposição no festival Fumetto Eduardo Simantob

Com a facilidade de produção autônoma, rearticulação das redes de divulgação, e surgimento de diversos coletivos criativos, o mercado também voltou a aquecer. Grandes editoras, como a Cia. das Letras, entraram no jogo, há hoje em dia cerca de dez editoras de pequeno e médio porte publicando em ritmo regular (e tocadas por editores que, em boa parte, também são autores), e os custos de impressão começaram a subir. Antologias também voltaram a aparecer, e os artistas citam como exemplo a Samba (Brasília), Prego (ES) e Beleléu (RJ), entre outras. 

E sem esquecer da política, claro

Nesse cenário não apenas articulado, mas bastante independente, a política não pode ficar de fora – ainda mais nesses tempos urgentes por que passa o Brasil. Fabio Zimbres lamenta o fim das revistas e zines que se comprava nas bancas de jornais, onde o diálogo e o debate eram menos difusos, como na era da internet, mas mais circunscritos. 

Já Gerlach se assusta com sua própria vidência: na história “Eduardo Cunha é o Bandido da Luz VermelhaLink externo”, de 2014, ele criou um cenário distópico de um Brasil em pleno golpe, e ainda com uma cena de um filme apócrifo, produzido pela Globo Filmes, onde o ex-presidente Lula, encarnado pelo ator Mateus Nachtergaele, era preso e algemado. 
 
Henfil e Pasquim podem descansar tranquilos. Pelo menos no que diz respeito ao cartum político e à crítica de costumes, autores como Bruno Maron, Ricardo Coimbra, André Dahmer e Arnaldo Branco trabalham com penas afiadíssimas. 

Enquanto isso, o projeto Magma segue adiante. A troca de imagens e temas entre os artistas brasileiros e suíços, após o contato pessoal durante o festival em Lucerna, será retomado tendo em vista uma nova exposição, desta vez no Centro Cultural São Paulo (a confirmar), no final do ano. 

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Versão pirata de Tintin, publicada na Holanda na década de 1980.

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