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Indigenista defende parque entre Brasil e Peru

Grupo de índios ianomâmis fotografados em 1978 na região do rio Totobi, Amazonas. Keystone

A região fronteiriça entre os dois países é habitada por várias nações indígenas isoladas. Porém as florestas não os protegem dos riscos da civilização: doenças, extração de madeira, mineração e narcotráfico.

Um dos mais experientes indigenistas brasileiros revela seu sonho de criar um parque para evitar o fim de um mundo quase perdido.

Convidado para vir à Suíça pela Sociedade para Povos Ameaçados (GfbV, na sigla em alemão), José Carlos Meirelles Júnior sente falta do calor em pleno inverno europeu. O funcionário aposentado da Fundação Nacional do Índio (Funai), onde começou a trabalhar em 1970, tem mais de quarenta anos de experiência em lidar com índios isolados. 

Durante os dias em que permaneceu na Europa, o indigenista encontrou jornalistas e ativistas de ONGs para falar dos problemas atuais como a exploração econômica e o seu impacto para o meio ambiente e as populações locais.

swissinfo.ch: Como foi a sua carreira de indigenista? 

José Carlos Meirelles: Eu trabalhei no Acre de 1976 a 1987 com um grupo de índios já contatados, os Jaminaua e os Machineri.  Antes já havia feito contatos com um grupo isolado, os Awá, em 1973, no Maranhão. Depois, em 1987, fui convidado a participar de uma reunião em Brasília para elaborar uma nova proposta de trabalho com índios isolados e que foi aceita depois pela Funai. A partir de então, passei a trabalhar especificadamente com esses povos.

swissinfo.ch: O que significa um povo isolado? 

J.C.M.: Até 1988, a política do Estado brasileiro era a seguinte: a gente brinca dizendo que o índio que não tinha contato não era nem índio ainda. E por quê? Pois ele era desconhecido pelo Estado, que só o reconhecia a partir do momento em que sabia da sua existência. Então primeiro se fazia o contato e depois é que o Estado ia ver a questão de terras. Depois dessa reunião serviu para criarmos uma nova política da Funai para os povos isolados.

swissinfo.ch: E como essa nova política modificou a maneira de lidar com esses povos isolados? 

J.C.M.: Hoje, ao descobrir povos isolados, enviamos uma equipe de especialistas para checar se eles existem. Se isso for confirmado, temos de avaliar o território que eles ocupam. Para isso utilizamos uma metodologia para definir as terras dos povos isolados sem fazer contato com eles. Como isso é feito: mochila nas costas, pé no mato e você anda quatro ou cinco anos na região e recolhe todos os vestígios desses povos, que não são muitos. Depois desse tempo você tem um mapa com as georeferências de qualquer coisa, seja uma embira que foi retirada da mata ou outra coisa.

Então apresentamos os dados à Funai, o antropólogo sistematiza esses dados, faz um relatório e isso é aceito pelo Estado brasileiro como uma peça inicial no processo de demarcação dessa terra. As três reservas indígenas que hoje existem no Acre dos povos isolados surgiram através desse método. E eles nem sabem que a gente demarcou a terra deles. Aliás, quando a gente foi demarcar a terra deles, eles ficaram um pouco bravos, pois tinham umas picadas que passavam perto da aldeia deles e acabaram então colocando fogo na nossa base.

swissinfo.ch: Essa metodologia trouxe melhorias diretas para os índios? 

J.C.M.: Eu acho que isso é um salto de qualidade. Anteriormente, ao contatar um povo com mil e quinhentos indivíduos, por exemplo, as estatísticas diziam o seguinte: após o primeiro ano de contato, dois terços da população estava morta, seja por doenças ou por outras razões. E você matar dois terços de uma população no ano é pior que a Bósnia, é um genocídio. Essa nova política tem a vantagem de você demarcar o território e depois protegê-lo através da instalação de bases nas suas entradas e que, na Amazônia, são os rios. Ao manter os povos isolados, livres de qualquer interferência, já estamos fazendo muito pela sua proteção.

swissinfo.ch: Porém não é difícil impedir que os encontros com garimpeiros, madeireiros ou até traficantes? 

J.C.M.: O que ocorre é que a Amazônia é muito grande e difícil de controlar. Mas de certa forma, em algumas áreas que a gente trabalha, o controle tem sido feito. Porém, recentemente, um grupo de narcotraficantes do Peru invadiu a nossa base e botou todo mundo de lá para correr. Mas na medida do possível a proteção é realizada, como no caso dos povos do rio Envira: de dois em dois anos passamos por cima das aldeias de avião e posso dizer que hoje a população até dobrou. A proteção funciona. A ideia é deixar os caras quietos, protegendo o meio ambiente e o território deles.

swissinfo.ch: Há pouco tempo uma ONG publicou fotos de tribos (clicar no link à direita) não contatadas que percorreram o mundo na mídia. Você as viu? 

J.C.M.: Sim, eu vi. Eu trabalho com esses povos. Eles são conhecidos através de informações disponibilizadas já em 1905. Eles nunca quiseram contatos com brancos. O que a gente fez foi checar as informações e georeferenciar as malocas.

swissinfo.ch: São quantos membros? 

J.C.M.: Nessa região que trabalho não existe apenas um, mas sim três povos isolados.

swissinfo.ch: E como se chamam eles e em que idiomas falam? 

J.C.M.: Eu não sei. Como aquela região está sob influência de um grande grupo linguístico, os povos Pano, que são índios plantadores de milho ou amendoim, existem algumas semelhanças. O roçados dos povos isolados são muito parecidos com os roçados dos Pano. A arquitetura das casas e até as flechas também são muito parecidas com as dos Pano. Então temos quase certeza, mas não total segurança, de que se tratam de povos Panos. Tem três povos Pano distintos – não é o mesmo povo que mora na região. E tem um quarto povo que é caçador e coletor. No Peru eles são chamados de Mascupiro, mas não sei como eles se autodenominam. É um povo caçador e coletor, ou seja, sem agricultura, e que andam entre o Peru e o Brasil. Sazonalmente eles passam na região. 

swissinfo.ch: Na sua experiência de indigenista, por que existem índios que preferem não ter contato com os brancos? Você já teve informações verbais deles? 

J.C.M.: Não, não temos informações, pois não temos contato nenhum. Esse termo utilizado pelo Estado brasileiro – a de povos isolados – é muito ruim. Ele dá a ideia que o isolado é o cara que nunca viu o branco. Mas não é isso! Esses povos conhecem a gente há muito tempo. Já fazem mais de cem anos que eles são mortos pelo seringueiro ou o caçador. Eles até usam algumas coisas da gente.

swissinfo.ch: Nas fotos exibidas alguns deles aparecem com ferramentas de metal… 

J.C.M.: Sim, um facão. São objetos que eles roubam há muito tempo nos entornos. Eles roubam panelas, machados e facões. A panela era de barro, o facão de pau e o machado de pedra. Depois eles descobriram que chegou um povo que tem facão de metal, panela que cai no chão e não quebra e um terçado que corta: eles não estão roubando nada que não conhecem. Eu gosto de comparar perguntando: quem escreve hoje em dia com máquina de escrever da Remington? Os índios não são diferentes: tecnologia é bom e todo mundo gosta.

swissinfo.ch: Quais são os riscos vividos hoje em dia pelos povos isolados, especialmente na área que você trabalha? 

J.C.M.: O Acre é um estado que tem uma política conservacionista reconhecida mundialmente, a de defender a floresta em pé. As grandes madeireiras brasileiras ainda estão no norte de Mato Grosso. O que está ocorrendo na região – e como esses índios vivem na região de fronteira com o Peru – são várias coisas. Com a crise internacional na Europa e EUA, o ouro triplicou de valor. A Amazônia está vivendo mais uma corrida ao ouro. No lado peruano, principalmente na calha do rio Madeira, devem ter hoje aproximadamente uns oitenta mil garimpeiros. O peixe do rio Madeira está todo contaminado com mercúrio.

Os outros problemas são a exploração ilegal de madeira, o narcotráfico, a exploração do petróleo e o plano de integração da América Latina, o IIRSA, que incluía, dentre outros, a construção da rodovia Transoceânica. Nessa região é o que eu vi nesses últimos quarenta anos na região da Amazônia: toda a vez que se faz uma grande obra de infraestrutura na Amazônia, o povo, índios e não índios, ao invés de serem beneficiados, acabam se tornando vítimas. Um exemplo clássico: a questão da terra.

swissinfo.ch: Qual seria a sua proposta para proteger esses povos não contatados no Acre? 

J.C.M.: Do lado do estado do Acre existe uma grande área na fronteira que são áreas de preservação e terras indígenas. No lado peruano existe outro tanto ou talvez mais. Eu tenho um sonho recorrente: por que os governos brasileiro e o peruano não sentam para juntar essa grande quantidade de terra, que hoje está na faixa de 15 a 20 milhões de hectares, para fazer um grande parque binacional. Além disso, seria do interesse do governo brasileiro de realizar esse projeto, pois todas as águas que entram na região nascem lá no Peru: o rio Madeira, o rio Juruá e o rio Purus. Seria um projeto para preservar as cabeceiras dos três maiores tributários da margem direita do rio Solimões.

José Carlos Meirelles entrou na Fundação Nacional do Índio em 1970, quando foi aprovado em concurso público de técnico indigenista, após ter cursado, sem concluir, engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Natural de São Paulo, Meirelles cresceu em Santa Rita do Passa Quatro e em Ribeirão Preto. Seu primeiro trabalho como indigenista foi a chefia do posto indígena Alto Turiassu, no Maranhão, dos Urubu Kaapor. Foi nessa região que ele fez os primeiros contatos com os Awa Guajá, em 1972.

Aposentado, ele hoje trabalha para a Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (SEPI), no Acre.

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