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Manuscrito assinado por Calvino retorna à Genebra

O documento inédito foi assinado pelo próprio Calvino. musée international de la réforme

O Museu Internacional da Reforma, em Genebra, acaba de recuperar um manuscrito autografado por João Calvino. O raro documento, datado de 1545, estará finalmente em exibição ao público após ter desaparecido por mais de 150 anos.

Em excelente estado de conservação, a carta mostra o severo teólogo e reformado sob um ângulo mais humano. Para o jovem museu, o achado é mais do que uma preciosidade.

Colocado há pouco tempo em exposição sob proteção de uma vitrine, protegido contra a exposição direta de luz, em uma das doze salas do Museu Internacional da Reforma (MIR, na sigla em francês), o manuscrito datado de 23 de janeiro de 1545 é a “única carta conhecida de João Calvino sobre o suicídio”, explica Isabelle Graesslé, diretora da instituição.

Nela, o teólogo conta que havia sido chamado à véspera por um certo Jean Vachat, um cidadão que havia perfurado duas vezes o seu ventre com uma faca.

O suicídio, um crime triplo

Ora, na paisagem religiosa e ética da época, o suicídio era uma questão grave. Atentar contra sua própria vida era um crime triplo: contra o indivíduo, contra a sociedade e contra Deus.

O ato exige então um procedimento da justiça penal. Este começa com a entrega da queixa ou da constatação do delito, como indica o dossiê realizado pelos Arquivos do Estado de Genebra sobre a “Carta de Calvino”.

Apesar de todos os esforços feitos pelo barbeiro (cirurgião), Jean Vachat morre no mesmo dia, ao meio-dia, não sem ter sido persuadido por Calvino a fazer a penitência. Vacha se executa. Ele suplica ao pastor, reconhece e confessa seu erro, revela o documento, que também detalha o fato do suicida estar calmo e ponderado.

Sem sepultura cristã

No dia seguinte, Calvino e os outros intervenientes no caso – um segundo pastor e dois cirurgiões – entregam, conforme os costumes da época, seus relatórios ao tenente da polícia.

Através da autópsia do corpo, os investigadores chegam à conclusão que Jean Vachat poderia ter sobrevivido aos ferimentos se ele já não estivesse enfraquecido pela asma, da qual sofria e era origem do seu gesto desesperado.

Apesar desses elementos, o tenente considerou o caso “extremamente escandaloso”. Ele permanece insensível aos pedidos de Calvino e ordena que o corpo do suicida seja enterrado sob o cadafalso, sem sepultura cristã.

Se o Reformador tratou da questão do suicida de um ponto de vista teológico, sua carta apresenta-o “confrontado à realidade dos sofrimentos físicos, sofrimentos que terminam se tornando morais à medida que a pessoa tem impressão de ter sido abandonado por Deus”, analisa Isabelle Graesslé. “O relatório revela um lado humano de Calvino. Ele mostra que o mais severo dos teólogos não era aquilo que imaginávamos”.

Roubo nos arquivos de Genebra

Essa nova faceta da personalidade do célebre Reformador poderia ter permanecido desconhecida para sempre. Isso, pois a carta de Calvino havia sido roubada dos Arquivos do Estado de Genebra possivelmente na primeira metade do século XIX, assim como o dossiê completo do caso Vachat.

O autor do crime, uma pessoa chamada James Galiffe, funcionário auxiliar nos arquivos, havia criado uma pequena coleção de peças não catalogadas. Seus herdeiros devolveram as preciosidades aos arquivos apenas em 1915. O único objeto que faltava era o documento assinado por Calvino, que provavelmente havia sido vendido ou dado a um colecionador particular antes dessa data.

Leilões em Paris e Londres

Ele só retornou à tona em 2003, quando foi leiloado na famosa casa Sotheby’s em Paris. A reaparição do raro documento provocou consternação na cidade de Calvino, onde os Arquivos do Estado protestaram com firmeza, mas sem ter sucesso em fazer valer seus direitos.

De fato, o direito suíço não permite “a reivindicação de tais bens roubados do Estado há tanto tempo” e o cantão não “tem o direito de recuperá-lo às custas do contribuinte para salvar seu patrimônio”, explica a historiadora Catherine Santschi.

A carta terminou sendo comprada por um colecionador, que morreu em 2005. Seus descendentes decidiram então de revendê-la. Ela foi posta em leilão em julho de 2007, na Christie’s de Londres, onde passou para as mãos do seu novo proprietário pela modéstia soma de 70 mil libras. Por sorte, o comprador foi o grupo de mecenas que apoiou a construção do Museu Internacional da Reforma, em Genebra.

swissinfo, Abigail Zoppetti

O Museu Internacional da Reforma (MIR, na sigla em francês) foi aberto em abril de 2005.

Ele está localizado na Maison Mallet, um casarão construído no início do século XVIII, a dois passos da catedral de Saint-Pierre. Neste local, os cidadãos de Genebra votaram adoção da Reforma em 1536.

Suas doze salas retraçam de forma atrativa a história do protestantismo, da sua origem aos dias de hoje, graças a peças únicas como a primeira Bíblia em francês, datada de 1535.

Uma impressora da época foi reconstruída para lembrar o papel importante da invenção para a propagação do movimento religioso criado pelo religioso alemão Martinho Lutero, em 1517.

O MIR recebeu o Prêmio dos Museus de 2007, do Conselho da Europa, pela sua perspectiva internacional e por propagar a tolerância religiosa.

O museu recebe 25 mil visitantes por ano, sendo que um terço vem do exterior.

Ele faz parte do Espaço Saint-Pierre, que inclui a catedral e o sítio arqueológico, todos abertos ao público.

O museu está aberto de quarta-feira ao domingo, de 10 às 17 horas.

Genebra adotou a Reforma em 21 de maio de 1536, sob impulso de Guillaume Farel. Dois meses mais tarde, o teólogo João Calvino chegou à cidade para apoiar o movimento.

Nascido em 1509 em Noyon, ao norte da França, João Calvino se converteu ao protestantismo em 1533. No ano seguinte, ele se refugiou na Basiléia.

Farel e Calvin sofreram resistência e terminaram sendo expulsos de Genebra em 1538. Calvino partiu para Estrasburgo. Ele retornou apenas em 1541 à Genebra, onde permanecerá até a sua morte em 1564, aos cinqüenta e cinco anos.

A partir de 1550, Genebra se tornou refúgio para protestantes perseguidos em toda a Europa. Em dez anos, o número de habitantes cresceu de 12 a 20 mil.

Se Genebra, a chamada “Roma do Protestantismo” ou ainda “a Cidade de Calvino”, é um dos berços da Reforma, o cantão contava no último censo federal da população (2000) apenas 16% de protestantes, contra 40% de católicos.

Um folheto oferecido pelo Museu Internacional da Reforma propõe a visita a vários locais em Genebra relacionados à história do Protestantismo.

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