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Os tempos de guerra na Suíça vividos por Gunda Bay

Capa do livro de Gunda Bay, na versão em português. swissinfo.ch

Empreendedora e dinâmica, a suíça Gunda Bay, 83 anos, conta em "Uma Vida através do Século" sua experiência durante a Segunda Guerra, em particular seu trabalho com os refugiados.

O livro autobiográfico traz histórias alegres e trágicas e esclarece melhor a vida à época. A autora viveu 44 anos no Brasil, onde foi pioneira na assistência a excepcionais.

Gunda Bay – mesmo em uma idade da qual poucos se orgulham – impressiona pela sua presença altiva e por sua força serena, ligeiramente diminuída por uma enfermidade. Mas, conserva postura garbosa e ar acolhedor, reveladores de uma pessoa íntegra, simples, direta e que adora um bom papo…

Sua obra – uma brochura de 150 páginas, apresentada recentemente em Berna – que dá prá ler de uma só sentada, revela detalhes de sua origem, de sua infância, suas primeiras provações, o ingresso na vida profissional na Suíça e as dificuldades enfrentadas em um país neutro, afetado pela Segunda Grande Guerra, que, com as nações vizinhas envolvidas no conflito, se tornara uma ilha de paz.

Revela também sua ida para o Brasil, 60 anos atrás, e suas diferentes atividades na área social em que ingressa paulatinamente.

Uma mulher hiper-ativa

No início, em terras brasileiras, mesmo com dois filhos pequenos para cuidar, Gunda não pára, atingida por uma espécie de síndrome de “hiperatividade aguda”, resultante da vontade de “fazer inúmeros trabalhos ao mesmo tempo”, o que considera “uma das características mais marcantes” de sua vida profissional.

Gunda Bay orgulha-se de ter participado, na década de 50, da fundação da primeira APAE (Associação de Pais e Amigos de Excepcionais), em São Paulo, e da formação de profissionais, “raros na época”.

Sinal de sua sensibilidade por aqueles que eram então chamados de retardados mentais, ela insistia na necessidade da sociabilização das crianças, contrariando os pais, mais preocupados com a alfabetização.

Gunda faz questão de realçar que seus métodos pouco ortodoxos de tratar essas crianças deram resultados positivos surpreendentes.

Adesão aos ‘soroptimistas’

A autora escreve que desde 1958 passou a integrar o grupo Soroptimist International – “uma espécie de Rotary para mulheres profissionais” – o que lhe permitiu viajar pelo mundo inteiro, sempre no campo de sua escolha, a área social, o que certamente contribuiu para sua grande abertura de espírito.

É, no entanto, o que escreve sobre seu trabalho com refugiados, quando ela estava na flor da idade, que nos pareceu mais interessante na sua obra.

Como conta em seu livro, os suíços geralmente previdentes prepararam-se para a guerra, não apenas “mobilizando tropas para defender as fronteiras”.

Privações

A propósito, a Suíça viveu o medo de ser invadida pela Alemanha nazista, apesar de ter mantido relações comerciais com o regime de Hitler. Durante o conflito, a Suíça fechou a porta a muitos refugiados, embora consciente de que estivessem praticamente condenados à morte.

O livro de Gunda Bay não aborda este aspecto político, mas não deixa de lançar algumas farpas. A obra lembra, sim, que a Suíça acolheu milhares de refugiados. Estes levaram uma vida dura, fosse rico ou fosse pobre, burguês ou camponês, sem distinção, mas não passaram fome.

Logo que chegavam eram encaminhados a campos militares onde se separavam os homens das mulheres, os aptos dos inaptos ao trabalho.

Os homens capazes tinham, então, como incumbência, fazer edificações e construir estradas ou realizar outros trabalhos de interesse geral, de manhã à noite, tendo que levantar cedo “mesmo no inverno rigoroso”.

“Esforço de guerra”

As mulheres, também submetidas aos rigores do tempo, confeccionavam roupas e agasalhos para os trabalhadores, mas deviam cuidar do campo de refugiados e de seus filhos. Elas, como os homens, pagavam desta maneira pela ajuda recebida. Afinal, enfatiza a autora, todos deviam participar do famoso “esforço de guerra”.

Nos acampamentos (os Arbeitslager e Familienlager) “as camas podiam ser até de palha e a comida fornecida na quantidade mínima necessária”.

Os alimentos eram, de fato, racionados – não apenas para os refugiados como também para os suíços. Funcionava o sistema de tickets (Mahlzeitencoupons). Felizmente havia batatas à vontade e verduras em quantidade suficiente porque, precavidos, os suíços as plantaram até em campos de futebol e jardins públicos.

A Suíça garantiu, então, meritoriamente, a sobrevivência às dezenas de milhares de refugiados que acolheu. E nem teria sido preciso que eles passassem por necessidades, pois “dinheiro para tanto havia”, recorda Gunda Bay.

Duas faces da neutralidade

Por outro lado, em rápidas críticas, a autora escreve, por exemplo, que a a neutralidade suíça, era muito bonita na teoria e menos rósea na prática, pois na época a Suíça transformou-se “em excelente abrigo para espiões, principalmente alemães, e cresceram consideravelmente os preconceitos raciais, políticos e religiosos…”

Enfatiza, porém, o interesse da neutralidade, pois uma invasão teria sido catastrófica, aportando injustiças, crueldades, ruínas. A invasão, alfineta Gunda, implicaria igualmente a perda de “fortunas acumuladas e guardadas nas caixas-fortes de seus inexpugnáveis bancos”.

A autora aponta também os aspectos positivos do estatuto da Suíça: A neutralidade era a de um território aberto “onde os refugiados de todos os lados pudessem encontrar paz, possibilidade de fugir da violência (…) e recursos para sobreviver”.

O jeitinho

Embora consciente das necessidades da estrita observância de regras e disciplina, seu senso prático falou mais alto e dava um jeito para adaptar as normas às circunstâncias. Um exemplo, que constituia uma transgressão – aliás punida – foi fazer com que as mães tivessem perto de si os bebês quando trabalhassem, contribuindo assim para que aquelas mulheres tivessem pelo menos “uma vida menos infeliz”.

Praticou também contravenção a fim de que os judeus pudessem respeitar suas tradições religiosas.

Terminada a guerra, a percepção de falsidades relativas à famigerada neutralidade bem como a imparcialidade suíças revoltaram Gunda Bay, “a ponto de desejar ardentemente sair do país”.

Quando seu marido, apátrida, conseguiu emigrar para o Brasil, onde obteria um passaporte, ela não hesitou em acompanhá-lo, até porque seu espírito “clamava alto por coisas novas”. E, aparentemente, ela não se arrependeu da mudança.

swissinfo, J.Gabriel Barbosa

“Uma Vida através do Século”, Gunda Bay, Editora Vertente,Brasil http://www.vertente.com.br

Nascida em Degerloch (Stuttgart) em 1924, Gunda Bay é filha de um arquiteto e militar de tradicional família burguesa de Berna e de uma holandesa, musicista e cantora. Seu avô materno, Pieter Jelle Troelstra, é personalidade conhecida, tendo fundado o Partido Social Democrata nos Países Baixos, em 1894. O nome Gunda foi escolhido por Rudolf Steiner, o pai da antroposofia, amigo do pai dela.

Gunda Bay mora na Suíça (em Beatenberg) dos 5 aos 10 anos. Em 1934, quando tinha dez anos portanto, a família volta para Stuttgart. Aos 16 anos segue o curso de Auxiliar de Enfermagem Pediátrica, concluído dois anos depois. Aos 18 anos, inexperiente, sente necessidade de “ir à luta”. Coloca em prática seus conhecimentos quando, em intercâmbio para moças, vai morar na região francesa da Suíça com uma família de intelectuais, onde aprende “até os requintes da etiqueta e culinárias francesas”.

Como sua própria família estava envolvida em ajuda aos refugiados, foi naturalmente que Gunda se dedicou a esse trabalho no início de sua vida profissional. Em campo de refugiados acrescentou o iídiche aos idiomas que conhece: alemão, holandês, francês e inglês.

Para acompanhar o marido, emigra, em 1946, para o Brasil, onde o começo foi difícil, mas Gunda, sempre cheia de iniciativas, dá a volta por cima: trabalha com crianças, ensina bridge, pinta quadros ou cria colônias de férias, acabando por firmar-se em atividades do setor social, tendo sido importante sua participação na melhora das condições das crianças excepcionais (deficientes).

Aos 66 anos, com saúde abalada, opta pela volta à Suíça. Mora desde 1990 no Burgerspital de Berna,instituição especializada para idosos. E está contente com sua sorte.

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