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Pilatus, as turbulências do “mini-bombardeiro suíço”

O PC7-12, uma das versões do PC-7

Lançado em dezembro, interessante livro de um jovem universitário suíço retrata toda a polêmica relativa ao rumoroso caso do avião Pilatus PC-7.

Com a obra – uma memória de licenciatura – emerge na Suíça uma das polêmicas mais marcantes dos últimos trinta anos.

Pilatus é um avião civil (um ‘turbo-trainer’), dotado de hélices, destinado a treinos. Pelo menos apresenta-se como tal. O senão é que, já na sua concepção, os construtores previram possibilidade de facilmente transformar em eficaz arma de guerra esse aparelho, leve e maleável que pode concorrer com aviões de propulsão a jato.

Não bastasse isso, há três décadas que, contra ventos e marés, o governo suíço tem sempre defendido esse modelo de avião – futuro concorrente do Tucano brasileiro – apesar de denúncias, revelações, escândalos e pressões de vários lados, resultantes do uso do PC-7 para fins militares, mesmo contra civis.

(Note-se que o PC-9 é um modelo aperfeiçoado desse aparelho já de tecnologia avançada e por isso mesmo muito cobiçado).

O livro – intitulado Affaire Pilatus, les milieux engagés et la Suisse officielle face aux exportations d’armes 1978-1985*** – destaca, de fato, um verdadeiro empenho do governo suíço, – com respaldo do Parlamento – em favorecer a exportação do aparelho, ‘paramentado’ de roupas civis.

O B-52 dos pobres

O “caso Pilatus” remonta a novembro de 1978, quando o jornalista, Ariel Herbez, revela em sua revista Tout Va Bien Hebdo que a Suíça iria fornecer aviões à Birmânia, Iraque, Bolívia e Marrocos.

Através da revista inglesa Air International Herbez, um apaixonado por aviação, ficou sabendo que os aparelhos PC-7 podem ser utilizados para fins militares, pois seis dispositivos nas asas de que são dotados facilitam o transporte de bombas ou de lança-foguetes.

O jornalista, que descreve o PC-7 como “mini-bombardeiro suíço ou B-52 dos pobres, volta à carga algumas vezes, constatando que em função da demanda, as transformações poderiam fazer do Pilatus “um excelente aparelho leve de apoio tático”.

Aliás não deu outra. Seu uso como arma eficiente pode ser comprovado em muitos países. E decorridos trinta anos, em janeiro de 2008, affair ganhava novamente as manchetes com notícias de seu uso em Darfur, no Sudão, para bombardear acampamento de rebeldes.

Cenário invariável

Nesse espaço de tempo, nas diferentes ocasiões em que o assunto emerge na imprensa, o cenário em Berna é o mesmo: as autoridades federais reagem, prometem investigar a questão, mas acabam não tomando as providências necessárias, limitando-se a declarar que o aparelho não é um engenho de guerra.

Na seqüência do primeiro escândalo, o ministro da Defesa (G-A.Chevallaz) afirma, em 1981, perante o Parlamento, que qualquer avião ou carro pode se adaptado para fins militares. “Pode-se até imaginar carrinhos de bebês carregados de dinamite, por exemplo. Mas a gente pararia de exportar carrinhos de bebê?”, indaga cinicamente o ministro Chevallaz.

Na ocasião, é amplamente rejeitada uma proposta socialista destinada a moralizar a questão. E o circo (com perdão da palavra) vai continuar por muitos anos, pois o governo sempre tenta ‘tapar o sol com peneira’ diante de aspirações pacíficas, de reações terceiro-mundistas e diplomáticas, movimentos de caráter político ou novas denúncias da imprensa suíça.

Se em 1980, por exemplo, faltam provas da utilzação do PC-7 no golpe de estado boliviano. No mesmo ano, vários depoimentos confirmam seu emprego para fins militares na Guatemala. E note-se que a utilização anterior desse avião na Birmânia, Bolívia e México já fora mais que simples suspeita.

Uma política de equilibristas

Entretanto, a questão, complexa, continua a se internacionalizar. O fornecimento de doze PC-7 a um regime repressivo na Guatemala em 1979 e 1980 vai, por exemplo, irritar a Grã-Bretanha que negocia a concessão de independência de Belize (efetivada em 1981). Os britânicos alegam que o dito fornecimento aumenta o perigo de desequilíbrio na região centro-americana.

Se a argumentação do governo suíço não muda, a cobrança britânica tem o mérito de fazer a Suíça levar mais a sério a “dimensão política” das exportações do aparelho.

A questão já se complicara depois do contrato assinado, em 1979, para a venda de 52 aparelhos a Bagdá. Em setembro de 1980, quando se inicia a entrega dos aparelhos, estoura a guerra Irã-Iraque, transformando a área em uma zona quente.

Se a imprensa denuncia a operação, o Iraque quer continuidade da entrega, mas o Irã protesta. A diplomacia suíça pisa sobre ovos pelo fato de representar os interesses norte-americanos em Teerã. No entanto, o ministério suíço das Relações Exteriores, com panos quentes, consegue mais uma vez privilegiar os interesses do exportador do Pilatus.

“Quanto aos arranhões na credibilidade da política de neutralidade, isso parece nunca ter sido uma preocupação para o Departamento Federal das Relações Exteriores”, escreve J-M Pellaux. As exportações do ‘Turbo Trainer’ podem continuar. E se, na realidade, as autoridades se conscientizam do problema, “fazem vistas grossas para não prejudicar os interesses da firma (situada) em Stans (cantão de Nidwald)”, realça o autor.

Outras grandes potências entram em campo

As coisas se agravam um pouco mais com os subterfúgios usados para satisfazer também aos interesses iranianos na aquisição do aparelho, apesar de ameaça de boicote árabe, encabeçado pelo Iraque. Nesse meio tempo, para piorar a situação, também a Arábia Saudita manifesta interesse pelo PC-7.

Mas a denúncia na imprensa da venda de aviões ao Irã, em 1983 e 1984, terá repercussão não apenas na Suíça como também no exterior. E a Suíça vai, então, enfrentar um osso duro de roer, os Estados Unidos, que advertem sobre as conseqüências políticas da transação.

É quando também entra em campo também a China, descontente com negociação para a venda do aparelho para outro interessado, Taiwã..

No âmbito do governo suíço não é simples conciliar os interesses da área da defesa e da diplomacia, pois “uma política crível” não se harmoniza com a venda de aviões a regiões envolvidas em conflitos armados.

Dimensão política em destaque

As coisas só começam a mudar, em meados de 1984, com a comprovada denúncia pela mídia da existência de um prospecto da empresa Pilatus, dando dicas aos compradores sobre como os armamentos podem ser instalados no PC-7.

O governo tarda a reagir a essa e a outras denúncias. Prefere deixar a poeira baixar, apelando inicialmente para as conseqüências socio-econômicas desastrosas resultantes de eventual proibição das exportações do avião. Tanto mais que empresas como a Embraer já são fortes concorrentes da firma Pilatus.

Note-se, de passagem, que em 1984, os egípcios optam por 120 Tucanos brasileiros…

A esta altura, a esfera governamental ao menos se conscientizou mais da “dimensão política de que se reveste a venda de armas a uma região em guerra”, no caso, o Oriente Médio.

Mas há tergiversação no governo. O novo ministro da Defesa (J-P. Delamuraz), por exemplo, acha desnecessário “submeter o PC-7 à legislação sobre material de bélico” (de 1972), porque, de conformidade com a Constituição, o governo federal dispõe de base suficiente “para intervir se a neutralidade estiver em questão.”

Segundo comunicado governamental, “essas exportações (do Pilatus) não prejudicam a Suíça “a ponto do país ter que proibi-las.”

Business is business?

Desta vez, a reação da imprensa, na dinâmica pacifista, é mais forte e a partir desse ano 1984 as autoridades suíças se mostram menos inflexíveis.

Na época não faltam, porém, parlamentares para denunciar o perigo de uma ameaça à independência do exército no tocante a armamentos bélicos, à indústria aeronáutica suíça e à própria segurança nacional, caso se submetesse o PC-7 à lei sobre material de guerra

A polêmica ressurge nos anos seguintes. Em 1988, um coronel suíço aposentado (Ulrich Imobersteg) confirmou que o Iraque utilizou o PC-7 para bombardear um vilarejo do Curdistão iraniano.

Nos anos 90, a venda de 60 PC-7 a uma África do Sul recém-saída do apartheid, novamente provoca rebuliço e pressões da ONU, levando finalmente o governo suíço a exigir a “desmilitarização” dos aviões Pilatus: a supressão dos dispositivos nas asas para transporte de bombas e foguetes.

Só em 1997, novo regulamento proíbe a Pilatus de exportar os aparelhos com engates nas asas “para países atingidos por embargo da ONU ou por medidas internacionais de controle de exportações de que participam os principais parceiros comerciais da Suíça.”

“São agora duas versões do avião Pilatus – com ou sem possibilidade de armamento – que são construídas”, lembra Jean-Marie Pellaux.

Atitude injustificável, mas explicável

Se, durante anos, a atitude governamental foi dificilmente justificável, ela se explica por alguns fatores, expostos pelo autor de L’Affaire Pilatus.

No período da guerra fria, “o princípio da neutralidade armada foi a base da política estratégica da Suíça”, visando a tornar o país capaz de se defender por conta própria. E, naturalmente, o conceito de “dissuasão armada” fez a cama dos fabricantes de armas.

O elemento militar tem igualmente seu peso, pois o exército – cliente privilegiado – é equipado em grande parte pelo fabricante de armas Pilatus. Para a aquisição de armas é comum uma colaboração entre militares e fabricantes de armamentos.

Outro elemento levado em conta é que o exército neste país é um fator importante de coesão social. “Durante muito tempo, lembra Jean-Marie Pellaux, ter um grau militar era condição sine qua non para alcançar certas funções ou postos-chave no setore privado e na função pública”.

A este propósito, pode parecer piada, mas é muito ilustrativo o componente militar do governo suíço no fim dos anos 1970. Pellaux destaca que, na época, compõem o executivo suíço, integrado por 7 membros, “um brigadeiro EMG (Kurt Furgler), dois coronéis (Fritz Honegger e Hans Hürlimann) e três majores (Rudolf Gnägi, Georges-André Chevallaz e Ernst Brugger).”

A atitude de condescendência em relação aos construtores de armas tem ainda uma dimensão econômica, até porque esses meios exercem papel importante no Parlamento. Alguns parlamentares são, aliás, empresários de certo peso.

Dimensão simbólica do PC-7

No livro em foco, o autor diz ter procurado uma necessária distância para “se livrar do ritmo ditado pelas revelações midiáticas e dar um significado ao que parece uma simples série de repercussões.”

Historiando o caso, Pellaux, que se limita ao mencionado período de sete anos (porque são os mais expressivos e pelo fato de os arquivos federais mais recentes serem inacessíveis), realça “a dimensão simbólica” das exportações do Pilatus fabricado em Stans, cantão de Nidwald.

“Para uns, símbolo de uma Suíça oportunista e cínica. Para outros, símbolo de uma Suíça que cria meios de se defender e, por conseguinte, símbolo da resistência aos ataques antimilitaristas. Ou, ainda, símbolo das proezas tecnológicas de que é capaz a indústria helvética.”

Falando-nos pessoalmente, Jean-Marie Pellaux lembra a importância de cada símbolo para os diferentes protagonistas do caso: os pacifistas, a indústria de armamentos, as autoridades e também para o público.

Se realça a “dimensão oportunista” da política estrangeira da Suíça nesse período é por achar que o caso Pilatus “é bastante representativo do comportamento do país no cenário internacional, em particular na sua política econômica exterior.”

Indagado se outros países não se comportam de maneira semelhante em situações similares, o autor concorda. Numerosos países participam desse comércio florescente: a França, a neutra Suécia… A Suíça não é uma exceção. O problema é que “a Suíça defende certas imagens no cenário internacional: a de um país neutro, que procura promover os direitos humanos, um país humanitário. Ora isto contradiz os diferentes valores defendidos.”

swissinfo, J.Gabriel Barbosa

***O Caso Pilatus, os meios engajados e a Suíça oficial frente às exportações de armas (1878-1985)

Jean-Marie Pellaux, 28 anos, que escreveu O Caso Pilatus, uma memória de licenciatura em História, aborda em detalhe o affair no período que vai de 1978 a 1985. Esboça também a evolução do caso até hoje.

Pellaud realizou seus estudos secundários e superiores em Friburgo. Seu livro, publicado em dezembro de 2008, é um trabalho de conclusão de curso encerrado em 2007 que incluiu no currículo História Contemporânea, Ciências Políticas da Europa Oriental e Central e, ainda, Sociologia da Comunicação e da Mídia.

O caso Pilatus surge em 1978 sob denúncia jornalística de que o avião Pilatus pode ser transformado em arma de guerra. Com intermitências, a questão freqüenta a atualidade. Em janeiro de 2008, por exemplo, quando se denunciou a utilização do aparelho para bombardear rebeldes no Sudão.

No plano político, a última “peripécia” foi no início de dezembro do mesmo ano quando uma iniciativa parlamentar do partido ecologista suíço, destinada a proibir a exportação do avião para zonas de conflito, foi derrotada na Câmara por 116 votos contra 64.

Isso vem confirmar mais uma vez – como mostra o livro em questão – que o Pilatus sempre encontrou um árduo defensor em meios governamentais, políticos e industriais, o que permitiu manter uma ambiguidade quanto às características do avião nas últimas décadas.

Alguns exemplos:

– Nos anos 90 quando o anúncio de venda 60 PC-7 à África do Sul, submetida o embargo da ONU devido ao aparthed, provoca rebuliço, o governo suíço, que sempre fez corpo mole, apenas exige uma “desmilitarização” do aparelho. São vendidos 60 exemplares ao país.

– Conseqüência da polêmica em torno dessa transação, em agosto de 1993 o governo suíço manifesta intenção de submeter o PC-7 e o modelo mais recente, o PC-9, à lei vigente sobre material de guerra. Mas diante de pressão da empresa Pilatus, permite a venda de sete PC-7 à Nigéria e de vinte PC-9 à Coréia do Sul.

– Em dezembro do mesmo ano, o governo estima que apenas os aparelhos com dispositivos de fixação deveriam ficar submetidos à lei sobre exportação de material de guerra. Meios políticos e industriais desaprovam e o projeto não passa no Parlamento.

Resultado: os aparelhos ficam submetidos “à lei sobre controle de bens útilisáveis para fins civils e militares”, ainda em vigor.

Por ocasião da última vez que o caso ressurgiu, em 2008, o governo reagiu prometeru endurecer as condições de exportação. Mas tendo em conta a prática corrente, os fabricantes dos aparelhos PC-7 e PC-9 podem dormir tranqüilos…

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