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Lei modelo para a restituição de dinheiro dos potentados

O ex-presidente egípcio Hosni Mubarak, deposto em fevereiro de 2011, tinha 700 milhões de francos em bancos suíços AFP

Depois de ter servido como refugio predileto para o dinheiro de numerosos déspotas, a Suíça quer agora regulamentar o bloqueio e a restituição dos fundos através de uma lei considerada pioneira no âmbito internacional. Mesmo se a nova norma não resolve todos os problemas, como os que surgiram depois da Primavera Árabe.

“Em 2011, a Suíça foi o primeiro país a bloquear os fundos de Ben Ali e de Mubarak, depois que foram destituídos na Tunísia e no Egito. Porém, ao invés de elogios, o que ocorreu foram críticas pelo fato que seus fundos ainda estavam na Suíça”, observa Rebecca Garcia, porta-voz da Associação Suíça dos Banqueiros (ASB).

Apesar dos esforços feitos nos anos 1980 pelo governo suíço para bloquear e restituir os “fundos dos potentados” aos países roubados, na opinião pública internacional permanece uma percepção bastante negativa, deixada sobretudo pela longa lista de déspotas que mantinham dinheiro nos bancos suíços. Logo depois da Primavera Árabe, por exemplo, surgiram cerca de 1 bilhão de francos depositados nos últimos dez anos na Suíça por potentados do Egito, Líbia, Tunísia e Síria.

O governo suíço está consciente do problema. Em maio passado, ele apresentou um projeto de lei “sobre o bloqueio e a restituição de valores patrimoniais de origem ilícita de pessoas politicamente expostas”, que visa reforçar o dispositivo atual. O texto, submetido em meados de setembro a consulta pelos partidos políticos e organizações interessadas, representa em vários pontos um modelo a nível internacional, como constaram especialistas do Banco Mundial.

Inversão da prova

A nova lei deve ampliar, primeiro, a possibilidade de bloquear contas preventivamente para evitar fuga. Até agora, o bloqueio é previsto somente se o país interessado fizer o pedido de assistência judiciária ou se há instabilidade total das instituições do Estado, o que impediria a um país de apresentar tal pedido.

“Em muitos casos, como no Egito, não havia instabilidade total das instituições estatais, mas não havia possibilidade de colaboração através de um procedimento regular de assistência judiciária. As pessoas no poder mudaram rapidamente e não havia com quem falar”, explica Mark Herkenrath, especialista de finanças internacionais na Aliança Sul, que reúne algumas das principais Ongs suíças.

Para bloquear os haveres do antigos potentados árabes, o governo teve de recorrer em várias ocasiões a um procedimento de urgência baseado na Constituição Federal, mas somente em casos excepcionais.

Outro ponto importante: o projeto de lei prevê a inversão do fardo da prova. A Suíça não esperaria mais que os países interessados, como o Egito e a Tunísia, provassem que o dinheiro de Mubarak ou Ben Ali provinham de atividade ilícita. A partir de agora, são os déspotas que devem provar que seus haveres são lícitos.

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Cronologia: Fundos de potentados na Suíça

Círculo vicioso

Com base nessa nova norma proposta pelo governo, no futuro a Suíça vai colaborar mais ativamente nas investigações dos países fraudados. Poderá, em particular, fornecer informações sobre contas bancárias, antes mesmo de receber um pedido de assistência judiciária. “Até agora, há um circulo vicioso: sem pedido de assistência judiciária, os países interessados não tinham acesso a essas informações; sem essas informações, não podem fazer um pedido de assistência judiciária”, explica Mark Herkenrath.

Apesar de apoiar o projeto de lei, a ASB faz ressalvas nesse ponto. “Essas informações devem ser fornecidas somente se o país destinatário oferece garantia democrática e dispõe de uma estrutura legal. Do contrário, há o risco desses dados serem usados arbitrariamente e pode até ameaçar a vida da pessoa”, afirma

Rebecca Garcia.

A nova lei prevê ainda de modo explícito que o dinheiro restituído seja empregado para melhorar a vida da população e reforçar o Estado de direito do país de proveniência. O governo suíço quer evitar que os recursos voltem novamente para o circuito da corrupção e do crime organizado.

Segundo estimativa da Organização pela Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), por ano cerca de 850 bilhões de dólares são transferidos ilicitamente dos países em desenvolvimento para os paraísos fiscais.

Essa soma supera claramente as contribuições de governos, organizações internacionais e organizações não-governamentais ao desenvolvimento nos países pobres, de aproximadamente 130 bilhões de dólares por ano.

Conforme estimativa do Banco Mundial, cada ano de 20 a 40 bilhões de dólares saem dos países em desenvolvimento como apropriação indébita, corrupção e abuso de poder por parte de dirigentes e funcionários públicos.

Criticas dos partidos

Depois da fase de consultas, o projeto de lei será submetido ao Parlamento no ano que vem, mas já suscita críticas dos partidos de centro e de direita. “A Suíça não precisa de uma nova lei, pois já somos mais avançados do que outros países. Aliás, já fazemos até demais, como se vê no caso do Egito: bloqueamos o dinheiro de Mubarak, mas ainda não o restituímos”, sustenta Luzi Stamm, deputado federal pelo Partido do Povo Suíço (SVP, na sigla em alemão).

Para a esquerda, a lei representam ao contrário um grande passo adiante, mas ainda não o suficiente. A nova norma regulamenta em detalhe o bloqueio e a restituição, mas não resolve o problema da aceitação de dinheiro sujo pelos bancos suíços. Os haveres dos ditadores são quase sempre fruto da corrupção, apropriação indébita ou abuso de poder, sublinha do Partido Socialista (PS). “Não foi a destituição de Mubarak que tornou ilícitos os 700 milhões de francos suíços que ele havia depositado na Suíça.”

Porém, para o governo não é possível bloquear o dinheiro dos potentados ainda no poder. Primeiro, os dirigentes políticos gozam geralmente do estatuto de imunidade e a Suíça deve oferecer garantia direito a todos os países. “A decisão de bloquear contas pode dar resultado somente se depois for apresentado um pedido de assistência judiciária para a restituição. Mas geralmente isso não é possível antes de uma mudança de poder” afirma Pierre-Alain Eltschinger, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores.  

Obrigação de diligência

““É dever do banco proceder claramente no âmbito da obrigação de diligência em suas relações com o cliente. Isso é ainda mais necessário para as pessoas politicamente expostas”, acrescenta Eltschinger.

A obrigação de diligência nem sempre é suficientemente respeitada, na opinião de Mark Herkenrath. “A impressão é que os bancos se contentam de um mínimo do que é previsto na lei e que a autoridade de controle dos bancos se acomoda do que os bancos fazem, sem exigir o máximo.”

Essas críticas são refutadas pela ASB. “Devemos assinalar casos suspeitos devido a lei de lavagem de dinheiro. Porém, não cabe ao banco decidir se um dirigente político está abusando do poder. Ainda mais que muitos chefes de Estado caem em desgraça só depois de destituídos. Mubarak e Gaddafi eram abraçados e beijados por dirigentes europeus poucas semanas antes de perderem o poder”, sublinha

Rebecca Garcia.

Adaptação: Claudinê Gonçalves

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