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Comércio de escravos graças à Suíça? Essa artista da Argóvia pesquisou no Brasil, apesar das oposições

Bordado da artista Denise Bertschi mostram brasão do consulado suíço na Bahia
Os bordados produzidos pela artista suíça Denise Bertschi mostram traços da história do colonialismo suíço. Na foto, o brasão do consulado da Suíça na Bahia. swissinfo.ch

A tese foi considerada durante muito tempo impossível: a Suíça não tem nada a ver com escravos! Nos últimos anos pesquisadores trouxeram luz à escuridão, dentre eles, a artista suíça Denise Bertschi.

Durou muito tempo – e duraria ainda mais – revisar historicamente o papel da Suíça no tráfico de escravos. O papel dos empresários suíços, de famílias renomadas de empreendedores, banqueiros, diplomatas, comerciantes de têxteis, oficiais e donos de plantações.

Desde o início de 2000, no entanto, os indícios se acumulam. Não há apenas vestígios, mas cada vez mais evidências: sim, os suíços estavam envolvidos. Eles resistiram ainda mais ironicamente do que outros à proibição da escravatura (decidida em 1815 no Congresso de Viena). Até 1888, quando o Brasil foi o último país a assinar o acordo.

Até agora existia no país este sentimento particular: quando Strömli, um capitão suíço, aparece na novela “Noivado em São Domingo” (1811), de Heinrich von Kleist, ao lado de um companheiro corajoso chamado Gustav von Ried, ambos correspondiam a figuras bastante populares de emigrantes, especialmente da maneira como Kleist os retratou, ainda mais em contraste com o personagem Congo Hoango, descrito como um “negro terrível”.

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Helvécia, um vilarejo “suíço” da cor do café

Este conteúdo foi publicado em Alguém com a vista cansada precisa olhar duas vezes para encontrar a Helvécia sobre um mapa rodoviário do estado da Bahia. De fato, esse vilarejo é tão pequeno, que só aparece com letras minúsculas. Perdido no meio de um oceano de eucaliptos, longe das vias de comunicação, Helvécia é conhecido na região como o “povoado dos…

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Mas se os leitores abrissem livros de história sobre a mesma época, iriam se surpreender. Entre outras coisas, ao descobrir que a reintrodução da escravidão no Haiti por Napoleão contou com o apoio de uma milícia suíça de 600 homens. Suíços, prestando serviços a um tirano, no Haiti?

Forte envolvimento à soldo de poderosos

Nos trópicos os suíços também ganharam uma sólida reputação de combatentes vigorosos. Sempre à soldo de poderosos, ou seja, contra os escravos.

Louis Henri Fourgenoud, um coronel genebrino, foi particularmente célebre. Ele ajudou a esmagar revoltas de escravos no Suriname e na Guiana. Com seus subordinados dizimou aldeias inteiras. Os bons moços Ried e Strömli na obra de Kleist poderiam, portanto, estar prestando bons serviços para colocar novamente as correntes nos pescoços dos escravos. 

O mesmo vale para os suíços em Cuba, nos estados sulistas do EUA, e também no Brasil: eles sempre se misturavam nos negócios (ver o box no final do artigo). Claro, como parceiros de pouca importância. Mas mesmo assim com virtudes consideradas até hoje tipicamente suíças: com o máximo possível de discrição, muitas vezes agindo indiretamente através de financiamentos, jamais assumindo papéis de liderança, gozando de redes bem “globalizadas”, e sempre ligados às pessoas mais poderosas.

Imperatriz graças às boas relações 

Um exemplo é Johann Martin Flach, um suíço originário de Schaffhausen. No Brasil, na colônia agrícola suíço-alemã Leopoldina, ele se chamava João Martinho Flach. Sua propriedade manteve o nome de Helvécia, hoje uma aldeia de mil almas no estado da Bahia. Cerca de noventa por cento das pessoas são negras. Flach possuía em 1848 mais de uma centena de escravos. Ele ganhou a lucrativa plantação de café graças às relações com Maria Leopoldina, que foi a partir de 1817 imperatriz do Brasil por conta de seu casamento com o príncipe da coroa portuguesa Dom Pedro.

O que existe ainda daqueles tempos na Helvécia atual? O que as pessoas conhecem sobre o destino de seus antepassados, os escravos sequestrados da África? Depois de pesquisar em arquivos aqui e na Bahia, Denise Bertschi ficou profundamente interessada por essas questões. E viajou para a aldeia remota.

Denise Bertschi nasceu em 1983 em Aarau. Essa artista têxtil e produtora de vídeo aborda vários aspectos da neutralidade suíça. Quanto vale a política de neutralidade? Quão frágil e hipócrita ela se revela em certos casos?

Ao tratar da escravidão muitas pessoas preferem silenciar-se. Ou jogam o assunto embaixo do tapete na esperança que ninguém descubra. Pensando nisso, Denise Bertschi dispôs uma mesa no Museu Johann JacobsLink externo em Zurique e espalhou sobre ela um lençol branco. Quem olha mais de perto encontrará em suas extremidades bordados de St. Gallen retratando vários documentos da fase mais intensa do colonialismo suíço, como por exemplo: emblemas do consulado suíço em Leopoldina ou inventários de heranças deixadas pelos proprietários das plantações.

Tecidos em troca de seres humanos

Bordar essas lembranças no tecido é alusivo. Por um lado, o Brasil foi um dos primeiros clientes das novas máquinas perfuradoras. Ainda hoje bordados de St. Gallen são encontrados nos trajes festivos utilizados em cerimônias da religião afro-brasileira do Candomblé.

Por outro lado, negociantes suíços muitas vezes trocaram tecidos por seres humanos. Especialmente os chamados Indiennes, tecidos impressos com motivos orientais e indianos, eram uma moeda de câmbio real no comércio de escravos. Tecidos que foram fabricados predominantemente, e em alta qualidade, na Suíça ou em tecelagens suíças nos países vizinhos. A demanda era quase inesgotável, e, ironicamente, também solicitadas pelas casas reais africanas. As empresas suíças atendiam entre oitenta e noventa por cento da demanda desses tecidos durante o apogeu do comércio de escravos.

Denise Bertschi com os bordados
Denise Bertschi com os bordados que preparou para a exposição no Museu Johann-Jacobs em Zurique. swissinfo.ch

No piso inferior do museu há uma instalação de vídeo de Denise Bertschi, onde ela aborda a situação atual de Helvécia por meio de entrevistas com seus habitantes. Várias tentativas foram feitas antes que ela pudesse visitar com eles o lugar onde os ossos dos ex-escravos e seus descendentes se encontravam. O caminho tinha de ser muitas vezes aberto literalmente com facão.

Agonia e remorso

Mesmo que a memória desse tempo ainda pareça estar viva em Helvécia hoje, é evidente que ninguém queira se lembrar disso. Por motivos diferentes dos brancos: para os habitantes de Helvécia é o sofrimento. Para os brancos, o remorso.

Na exposição no museu Johann Jacobs também são exibidos documentos e obras do Brasil. Entre eles mordaças de ferro, para sufocar os escravos desobedientes. A casa no bairro zuriquenho de Seefeld (antigo Museu do Café), uma fundação da família Jacobs, foi reaberta em 2013, e dedica-se à exploração científica e artística de temas ligados às rotas de comércio e cruzamentos culturais ao longo da história. 

Pioneiros econômicos suíços de renome, banqueiros e teólogos participaram de negócios com escravos

Demorou muito tempo – e ainda dura – revelar o papel dos suíços como negociadores de escravos. Por dois séculos (aproximadamente entre 1680 e 1880), os suíços envolveram-se profundamente no tráfico de escravos e nas atividades ligadas à escravidão. Dezenas de famílias e empresas comerciais suíças devem uma parcela considerável da sua fortuna a esse negócio. Algum tempo atrás, a revista “Bilanz” listou uma série de nomes que já eram conhecidos até então.

Christophe Bourcard (1766-1815), um dos quatro filhos de Christoph Burckhardt-Merian, comerciante da Basileia. De acordo com a “Bilanz”, Bourcard sozinho teria enviado cerca de 7.400 escravos da África para o Caribe entre 1783 e 1792. 1100 morreram em uma tentativa de cruzamento do Atlântico. Quando correu o risco de falir por causa de outro naufrágio semelhante, Bourcard suicidou-se. Ou David de Pury (1709-1786), filantropo de Neuchâtel, um bastião suíço do tráfico de escravos. O banqueiro da corte portuguesa manteve relações com proprietários de escravos no Brasil. Seu pai fundou a colônia “Purrysburg” no estado da Carolina do Sul, nos EUA.

Pierre-Alexandre du Peyrou (1729-1794), que poderia ser chamado um bilionário na época, também era ativo a partir de Neuchâtel. Toda a sua fortuna veio das plantações de escravos no Suriname. Du Peyrou, amigo de Rousseau e Voltaire, apoiou os humanistas e a Revolução Francesa. Direitos humanos e negros como mercadoria – paradoxo. Ou completo eurocentrismo?

E um outro paradoxo: 31% da empresa de comércio escravocrata Companhia das Índias pertenciam a suíços, antes da eclosão da Revolução Francesa. Dentre eles, o professor de teologia de Zurique Leonard Meister, o comerciante de seda Andreas Gossweiler, Johann Ulrich Geilinger e Jacob Sulzer, de Winterthur. O cantão de Berna foi, de 1719 a 1734, um dos acionistas da empresa britânica de comércio de escravos “South Sea Company” junto com os escritores Jonathan Swift e Daniel Defoe, sendo que este último ao menos libertou o negro “Sexta-Feira” – mas só no papel.

A “Bilanz” também especulou a respeito do suposto envolvimento ativo de Heinrich Escher no tráfico de escravos. Pesquisas recentes acabaram por comprovar a suspeita. Em julho, a revista “Das Magazin”, encarte do jornal “Tages-Anzeiger”, publicou uma longa matéria relatando a descoberta, feita pelo historiador alemão Michael Zeuske em Havana, de uma declaração espanhola de impostos datada de 1822. A lista confirma os escravos da família Escher em Cuba: 82 escravos de campo e cinco domésticos. Heinrich Escher foi o pai de Alfred Escher, pioneiro industrial de Zurique e fundador do Schweizerische Kreditanstalt (o banco que daria origem ao Credit Suisse, o segundo maior banco suíço).

*O artigo foi publicado originalmenteLink externo no jornal Aargauer Zeitung em 17.9.2017 e cedido à tradução para swissinfo.ch

Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos

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