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Novas histórias de uma antiga migração

Grupo reunido para foto
Valesanos reunidos para torcer pela Suíça em jogo da Copa do Mundo no Brasil. cortesia ASVB

Possivelmente o episódio de migração mais conhecido da história suíço-brasileira seja a fundação da cidade de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em 1819. Esse, porém, não é o único laço humano entre os dois países. Um juiz e escritor de origens helvéticas vem documentando importantes movimentos migratórios rumo ao sul, para rememorar episódios por vezes esquecidos na narrativa das duas nações.

Um machado, um facão, uma pá, um podão e um pacote de pregos. Essas poucas ferramentas foi tudo o que os imigrantes suíços receberam para construir vida nova nas florestas virgens do sul do Brasil. O ano era de 1855 e o mês um chuvoso novembro, quando 32 pioneiros desembarcaram em Porto Alegre. Três famílias e nove solteiros vindos dos cantões de Vaud, Friburgo e Berna se aventuraram a encarar um futuro incerto no Rio Grande do Sul.

Eles compunham a primeira leva dos 18 mil emigrantes suíços que o conde Felice de Montravel pretendia fazer assentar no seu empreendimento; a recém-formada colônia de Santa Maria da Soledade, região que hoje é o município de Carlos Barbosa. O fluxo migratório suíço nunca chegou a cumprir a ambiciosa meta, mas as centenas de famílias que desde então rumaram ao sul tiveram um impacto decisivamente positivo no desenvolvimento da região.  

Grupo reunido para tirar foto
Visita ao Governador José Ivo Sartori para apresentar os projetos da ASVB, com o apoio do Cônsul Honorário da Suíça, Gernot Haeberlin. cortesia ASVB

As vozes e recordações dos deslocamentos desencadeados por Montravel ainda são pouco conhecidas entre brasileiros e suíços, muito embora constituam um importante laço entre os dois países. Esses acontecimentos da segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20 começaram a ser rememorados com maior clareza somente nas últimas décadas, graças às pesquisas de um juiz e autor gaúcho de origens helvéticas.      

A retomada da história

“Tudo começou em 1991, quando fomos contatados pelo cantão de Valais para participar das celebrações dos 700 anos da Confederação Helvética”, recorda à Swissinfo.com o autor Adonis Valdir Fauth. “De lá para cá nos organizamos em associações e nos redescobrimos como suíços, retomado as raízes da nossa história”, diz. 

O reforço dos laços tem sido nutrido com eventos e estudos. Juntos, os suíço-gaúchos celebram anualmente o primeiro de agosto e organizam confraternizações. Fauth pertence à Associação Suíço-Valesana, que congrega os descendentes desse cantão. Fluente em francês, incentiva os rebentos a manter o legado do idioma. “Organizamos aulas particulares entre parentes e a minha filha estudou em Lausanne”, conta com orgulho.

Oriundo da família Sauthier, ele documenta há três décadas as desventuras daqueles que escreveram o capítulo dos pampas na história da “Quinta Suíça”. Em seus livros não apenas o contexto, mas também as curiosidades ficam registradas. 

Em novembro último ele publicou o primeiro tomo de dois volumes dedicados a celebrar os helvético-gaúchos. “O segundo livro deverá vir no próximo ano e focará principalmente nos valesanos”, promete.

A Quinta Suíça nos Pampas

Fauth registra que entre 1824 e 1870 a imigração no Rio Grande do Sul fora maciçamente de alemães, compondo mais de 93% dos recém-chegados. No período seguinte, de 1875 a 1889, o fluxo passou a ser predominantemente de italianos. O biênio com maior entrada de imigrantes, entretanto, foi 1890-1891, quando chegaram 40.224 colonos. 

Nesse contexto, os suíços aportaram em uma província em plena ebulição migratória e se integraram facilmente. “Nossos antepassados se enturmaram de pronto com os italianos, alemães e locais”, explica o autor. De certa forma essa assimilação suíça contribuiu para que o registro histórico do movimento helvético acabasse parcialmente eclipsado pelos tantos registros das imigrações alemã e italiana. 

Por outro lado, a proximidade geográfica e cultural do sul do Brasil com a Argentina e do Uruguai favoreceu que os suíços mantivessem contato entre si. Os “primos da américa” hoje se veem com frequência. “Só na Argentina são 23 associações de suíços e nós participamos dos encontros deles”, conta Fauth.

Nas 373 páginas de Imigrantes suíços: Rio Grande do Sul: Século 19 há muito o que se descobrir sobre os cerca de 22, 2 mil suíços que se lançaram ao Brasil nos idos de 1800 a 1970. As famílias pioneiras que chegaram ao sul em 1855 incluíam sobrenomes como Carrard, Chassot, Chapuis, Jonner, Moutet, Moncin e Marquis. 

Já especificamente os valesanos desembarcaram no Rio Grande Sul vinte anos depois, em levas distintas ocorridas em 1875 e 1876. Conforme o registro de partida, a primeira caravana era integrada por 14 famílias com 76 pessoas e um solteiro. Entre os registros constam sobrenomes como Rard, Lazard, Vallet, Bondan, Bruchez, Sauthier, Thomas, Mermoud, Joris, Reuse, Denicol e Cottet. 

Muito embora o número de viajantes do biênio 1875 e 1876 não esteja bem esclarecido, registros de saída obtidos na Suíça estimam que pelo menos 216 valesanos viajaram com o vapor Rivadavia. Seriam provavelmente 36 famílias e cerca de 12 solteiros. Posteriormente uma parte dos descendentes dessas famílias deslocou-se dentro do Brasil, dispersando-se em direção a outras partes do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.

Aventura valesana rumo ao incerto

A travessia do Atlântico em 1875 por si só já foi um exercício de sobrevivência e choque cultural. A bordo do Rivadavia havia muitos doentes com escorbuto. A moléstia que era chamada de “mal do mar” causava a morte por deficiência de vitamina C. A dieta dos navegantes era pobre em frutas cítricas, mas incluía pão, vinho, feijão, arroz, carne e farinha de mandioca. Os suíços, que não conheciam essa espécie de farinha, pensaram que fosse queijo ralado ao vê-la pela primeira vez.

 Noemi Sauthier relata que o avô Louis Théodomir já com idos 90 anos ainda lembrava o dia que desembarcara em solo tupiniquim. “Ofereceram laranjas aos valesanos e aquela foi a primeira vez que eles viram a fruta”. O imigrante Louis jamais teria esquecido o sabor de vida daquela primeira laranja. 

A longa jornada era apenas o prenúncio dos grandes desafios que ainda estavam por vir. Devido à febre amarela em terra, os valesanos foram deslocados para a Barra do Piraí onde cumpriram quarentena antes de seguirem viagem ao sul. 

Foto histórica de uma família
Em 1923, José e Ernesta M. Gedoz e duas filhas, Idalina e Nilza. cortesia ASVB 

Durante a espera, os suíços foram abordados por grandes senhores de terra brasileiros, que desejavam contratá-los como operários. Temerosos pela sua liberdade, não aceitaram a oferta. Um episódio contribuiu para a desconfiança. O menino suíço Maurício Reuse, de 6 anos, foi raptado e levado à casa grande de um rico proprietário. A criança só foi devolvida à família depois que outro imigrante, Joseph Antoine Sauthier, interferiu energicamente.

Uma vez assentados, os suíços não receberam nenhuma assistência das companhias migratórias que os levaram até o novo mundo. Menos apoio ainda veio do império brasileiro. Estradas de acesso e linha férrea só foram construídas com trinta anos de atraso.

Apesar de receberem poucas ferramentas ao chegar, os suíços já haviam trazido no espírito o que mais precisaram para prosperar: o senso de comunidade. Unus pro omnibus, omnes pro uno, ou “Um por todos, todos por um”, como se diz coloquialmente. “Entre nós nunca foi um problema faltar alguma coisa. Sempre que houve necessidade, houve mobilização. Precisa de escola? Montamos a escola. Precisa de hospital? Montamos hospital. A gente se cotiza, cada um faz a sua parte e solidariamente resolvemos”, resume Fauth. 

Muitas famílias de diversos cantões tomaram o rumo do Sul e ajudaram a construir a prosperidade agrícola meridional por meio do cultivo de pequenas propriedades e organização cooperativa. As gerações que se seguiram avançaram em conhecimento e filhos de humildes lavradores tornaram-se líderes, doutores e senhores do próprio destino, trilhando uma narrativa que merece ser rememorada. 

 “É simples assim: se tu não contares a história, o sulco se fechará sobre o esquecimento e tudo estará perdido”, resume Lineo Chemello, entusiasta da comunidade suíça no Rio Grande do Sul.  

Inúmeras famílias suíças prosperaram na região sul do Brasil. Alguns casos de destaque:

Masson – Filho de um jardineiro suíço que emigrara inicialmente ao Rio de Janeiro, Leopoldo Masson veio para Porto Alegre em 1871 abrindo uma lojinha de relógios. A partir de 1884, em sociedade com a família Geyer, investiu em um ponto comercial no centro da cidade, mais precisamente na antiga Rua da Praia, transformando a loja Pendula Mysteriosa em Casas Masson. A relojoaria e joalheria tornou-se um empreendimento comercial de extraordinário sucesso no Século 20. 

Luchsinger – Hugo Alexandre Luchsinger nascido em 27.8.1875 em Zurique casou-se com Lida Melina Von Bendemann e serviu como cônsul da Suíça no Rio Grande do Sul. Era sócio na empresa Luchsinger, Madoerin e Cia. Ltda., que atuava na produção de fertilizantes e que veio a se tornar a grande empresa Adubos Trevo. O casal teve dois filhos, um deles atuou como diplomata também e residiu em Vevey.

Wirz – Nascido em 25.02.1882 no cantão de Lucerna, o engenheiro Hans Wirz e a esposa Maria Elisabeth da Argóvia chegaram em Porto Alegre em 1909. Em 1922 ele adquiriu a metalúrgica de Germano Göllner, em Estrela-RS, formando sociedade com Luís Inácio Müssnich. Juntos eles criaram a industrial Turbinas Hidráulicas H. Wirz & Cia, que adquiriu fama internacional. 

Erpen – O agricultor Johannes Joseph Erpen chegou em 1876/77 com o vapor Kepler e semeou familiares no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Entre os descendentes há uma linhagem de destaque no mundo jurídico. Theodoro Júlio Erpen, filho de Pedro Erpen, assumiu o cartório civil de Tapera em 1925. Ele foi responsável pelos registros por 41 anos, até 1966. Um dos filhos, Décio Antônio Erpen destacou-se como brilhante desembargador. “Modéstia à parte construímos uma tradição”, brincou Dr. Décio em entrevista à Swissinfo.com. Seu filho Jefferson Erpen mantém vivo o legado do sobrenome atuando como advogado em escritório de destaque na capital gaúcha. 

Gedoz – Família original do Valais, teve em José F.Gedoz um de seus mais importantes exponentes. Filho de Felix Benjamin Gedoz e Sofia Sauthier Gedoz, o fazendeiro e produtor de leite casou-se com Ernesta A. Maffassioli e teve sete filhos na primeira metade do século XX. José é lembrado por ser um dos 32 pioneiros que junto com membros da família Sauthier colocaram em prática o espírito suíço de solidariedade, fundando em 1912 a cooperativa Santa Clara, que é uma das maiores produtoras de laticínios do país. (Fonte: Imigrantes suíços no Rio Grande do Sul no século 19)

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