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Genebra recebe a imortal Ana Maria Machado

Retrato de Ana Maria Machado
A simplicidade da "imortal" (como são chamados os membros da Academia Brasileira de Letras) Ana Maria Machado esconde uma trajetória riquíssima - sem contar o fato de ter sido pupila de Roland Barthes. Gonçalo Diniz

Convidada pelo Salão do Livro e da Imprensa de Genebra, que começa amanhã, a escritora Ana Maria Machado conversou com swissinfo.ch sobre o ofício das letras e sua experiência de vida como exilada durante a ditadura militar. 

Ana Maria Machado vem ao Salão do livro e da imprensa de Genebra a convite da Helvetia Éditions – editora helvético-brasileira. Machado é uma das escritoras brasileiras mais traduzidas no mundo e já lançou mais de 100 obras. Integra, desde 2003, a Academia Brasileira de Letras, que presidiu de 2011 a 2013.

Machado recebeu inúmeros prêmios nacionais e internacionais, incluindo três Jabutis e vários outros no país e no exterior, entre eles o  Machado de Assis  (mais importante prêmio nacional para conjunto da obra, em 2001). Foi agraciada com o Prêmio Hans Christian Andersen, internacional (Conjunto da obra infantil, 2000), considerado o mais importante na categoria infantil – por isso mesmo é conhecido como o ‘Pequeno Nobel’. Recebeu menções no APPLE (Association Pour la Promotion du Livre pour Enfants, Instituto Jean Piaget, Génève), e no FÉE (Fondation Espace Enfants, Suíça).

Durante a ditadura militar (1964-85), a autora chegou a ser presa e precisou deixar o país em 1970, passando seu exílio em Paris e na Inglaterra. Além de trabalhar como jornalista e professora na Sorbonne, viveu como imigrante. A autora falou com a swissinfo.ch sobre sua experiência de mãe no exterior, como levou a cultura brasileira para os seus filhos e como superou a saudade do Brasil.

swissinfo.ch: A senhora tem seus livros vendidos em vários países. Já se surpreendeu andando pelas ruas aqui na Europa ou na Suíça ao ver algumas de suas obras expostas? Imagino que deva ser uma emoção enorme…

Ana Maria Machado:  Já sim, e é muito emocionante, sempre. Posso citar ao menos dois episódios que me tocaram muito. Uma vez, em Sevilha, diante de uma livraria que expunha meus livros na vitrine, vi uma menininha chegar saltitante com os pais e mostrar o meu A Velhinha Maluquete em castelhano: “Veja, mãe, esse é o livro que eu lhe disse que gostei tanto…”

Outra vez, em Estocolmo, entrei numa loja de brinquedos procurando um presente para levar para meu neto. Vi que tinham uma estante com alguns livros lindos e comecei a folhear. A dona da loja se aproximou e começou a falar sobre eles, eu elogiei. Ela disse que eram poucos, trabalhava apenas com alguns títulos, muito selecionados pela qualidade do texto e da ilustração. Só tinha uma exceção, em que a ilustração não era atraente mas o texto era tão maravilhoso que valia pelo dobro, um dos melhores livros infantis que já lera. E me mostrou a edição sueca de meu «História meio ao contrário », que eu nem tinha visto estar ali. Meu coração disparou. Quando me identifiquei como a autora, ela nem quis acreditar, de tão emocionada. Também comovida com a coincidência, lhe mostrei meu passaporte. Ela me pediu para autografar uns exemplares  e  deu um desconto no presente que eu estava comprando.

Capa de livro
Exemplo modesto: “Bisa Bia, Bisa Bel” rendeu vários prêmios, inclusive o Jabuti (1983), e foi traduzido na França, Espanha, México, Alemanha e Suécia. Liliana T. Baeckert

swissinfo.ch: Como a Senhora vê o futuro do livro na era da internet, principalmente com relação às crianças? E um desafio ainda maior: como fazer essas crianças migrantes que falam o português como língua de herança se interessarem mais pela literatura brasileira?

Acho que os livros informativos serão aos poucos substituídos ou complementados de modo muito forte pelos recursos digitais. 

Mas as pessoas têm outro tipo de relação com os livros de histórias, e com a literatura em geral. Aí o contato individual com o livro é único, afetivo. E a literatura infantil brasileira é de tão boa qualidade, com tanta originalidade e graça, que tem plenas condições de continuar sobrevivendo mesmo em condições adversas. A dificuldade toda está no acesso aos livros quando se está no exterior – daí a importância de empréstimos, de bibliotecas (mesmo pequenas), e de pedir aos parentes que de vez em quando enviem novidades.

swissinfo.ch: A Senhora precisou deixar o Brasil em 1970 e criou, em parte, seus filhos fora do Brasil. O que a Senhora diria às mães brasileiras que querem trazer essa referência cultural aos seus filhos quando no exterior? Dicas sobre como incentivar a leitura infantil na língua portuguesa?

Para ser exata, o Rodrigo tinha três anos quando saímos. Pedro já nasceu na França. Eu falava português com eles em casa, contava histórias e cantava toda noite antes de dormir, inventava jogos com palavras…

Hoje há uma ajuda muito boa que pode vir pela internet. Existe um movimento que se chama Português como Língua de Herança, uma rede internacional de trocas e suporte, com relatos de experiências, material de apoio e muita troca útil. Procurem entrar em contato.

Quando eu estava na França, no meu primeiro ano de exílio, morava lá também a Nara Leão. Tivemos bebês mais ou menos na mesma época, a menina dela nasceu alguns meses depois do meu Pedro, meu segundo filho. E nós cantávamos muito para as crianças. Ela buscava na memória canções diferentes, com referências a animais, para que eles pudessem gostar e aprender. Tinham expressões como gafanhoto deu na minha horta ou cococó, o galo tem saudades da galinha carijó. O Rodrigo, o meu mais velho, até cantava para a Isabel, a filha da Nara ainda neném, pelo telefone para ela parar de chorar.

swissinfo.ch: A Senhora sentia saudades do Brasil, se sentia às vezes deslocada, como foi essa vivência?

É claro que sentia muitas saudades,Link externo me senti deslocada e fui vítima de preconceito muitas vezes. Mas não tinha muito tempo de ficar  me lamentando – precisava trabalhar, e muito, e estava fazendo uma tese que exigia muito de meu tempo.  Meu orientador, Roland Barthes, era muito exigente. Então o jeito era seguir em frente, mesmo que de vez em quando chorasse um pouquinho quando batia uma tristeza muito grande.

Não havia internet, então escrevíamos muitas cartas.  E nos apoiávamos nos amigos brasileiros: de vez em quando uma feijoada, uma festinha caipira… Hoje é mais fácil: dois de meus filhos moram no exterior e a toda hora nos mandamos mensagens e fotos ou nos falamos por skype…

swissinfo.ch: Quais livros a senhora pretende trazer para o Salão de Genebra? 

Para adultos: Tropical Sol da Liberdade, Infâmia, A Audácia dessa Mulher, Canteiros de Saturno – em português ; a editora francesa deve enviar as versões francesas de Aos Quatro Ventos, O Mar Nunca Transborda e Um Mapa Todo Seu (este, com o título francês de Cap vers la Liberté);

Para crianças: Bisa Bia, Bia Bel (que também virá em francês), Raul da Ferrugem Azul, O segredo da Oncinha, A Velhinha Maluquete, Jabuti Sabido e Macaco Metido, A Jararaca, a Perereca e a Tiririca; Camilão, o Comilão, Histórias à brasileira, Mas que festa! Meu lançamento mais recente foi o romance Um Mapa Todo Seu.

swissinfo.ch – Como a Senhora descobriu essa aptidão de escrever livros infantojuvenis?

Eu era jornalista, gostava de escrever e estava preparando minha tese de doutoramento em linguística que seria depois meu primeiro livro publicado, para adultos (Recado do Nome : leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens).

Fui procurada pela editora Abril, de São Paulo, que ia lançar uma revista infantil, Recreio, e estava em busca de autores inéditos. Meus alunos na Faculdade de Letras tinham me recomendado, dizendo que minhas aulas eram divertidas e interessantes. Diante do convite, experimentei.

Gostei muito do desafio de tentar criar algo de qualidade literária com um registro de linguagem aparentemente limitado – coloquial, brasileiro, familiar. E como escrevia coisas muito sofisticadas em minhas outras funções, como crítica literária, fiquei fascinada pela possibilidade de explorar esse novo território do idioma. Adorei. Como parece que os leitores também gostaram muito (em pouco tempo a revista vendia 250.000 exemplares por semana nas bancas de jornais), segui em frente e fui desenvolvendo essa atividade.

Crianças lendo livros no chão durante o Salão do Livro de Genebra
A programação e oferta de títulos para crianças e adolescentes é um dos principais chamarizes do Salão do Livro de Genebra. Keystone / Martial Trezzini

swissinfo.ch: Como ficou resolvida a polêmica em torno do seu livro “O menino que espiava pra dentro”, que alguns pais acusam de fazer apologia ao suicídio? A senhora credita essas interpretações ao momento estranho em que estamos vivendo no Brasil?

O livro é de 1983, houve uma questão de má interpretação. É tão absurdo que nem foi adiante – apesar de redes sociais multiplicando esse ridículo. Muito barulho, muito ataque, muito ódio, muita bobagem… Chegaram a entrar com um processo mas o juiz mandou arquivar. Não sei a que atribuir. Talvez seja apenas um caso de pouca intimidade com leitura.

swissinfo.ch: A senhora já veio à Suíça?

Estive aí pela primeira vez há quase 50 anos e guardei uma ótima lembrança. Depois, quando voltei em data mais recente, foi também para um Salão do Livro, hospedei-me ao lado, chovia muito e não consegui sair de lá. Conheço razoavelmente bem outras cidades suíças, mas não Genebra. Assim, prefiro aproveitar o tempo livre e passear um pouco.

Informação sobre o Salão do Livro:

O Salão do livro acontece entre os dias 1 a 5 de maio. A escritora estará no stand da Helvetia Éditions nos dias 3 e 4 de maio (sexta e sábado). A Editora terá mais de 20 autores brasileiros e portugueses no espaço – confira a programaçãoLink externo.


 

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