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“A UEFA não pode escapar da justiça civil suíça”

O presidente do FC Sion, Christian Constantin, no centro do conflito com a UEFA e a FIFA Keystone

A Europa Liga começou quinta-feira (15) sem o FC Sion, um dos clubes mais conhecidos fora da Suíça, excluído por não respeito de uma interdição de contratar jogadores.

No entanto, um tribunal civil suíço havia contestado essa decisão e isso pode expor a UEFA a uma situação delicada, na opinião de um especialista em direito do esporte.

O imbróglio jurídico que opõe há varias semanas o FC Sion às instâncias do futebol mundial teve esta semana um episódio rocambolesco. Terça-feira de manhã, o Tribunal Civil do cantão de Vaud (oeste) ordenou à UEFA (União Europeia de Futebol), de admitir o FC Sion como participante da Europa Liga 2011-2012. O clube suíço tinha sido excluído por ter escalado seis jogadores não registrados no jogo de repescagem contra o Celtic Glasgow.

No mesmo dia, um pouco mais tarde, a Comissão de Recursos da UEFA, decidiu em favor do Celtic Glasgow, precisando que o clube suíço tinha a possibilidade de recorrer, no prazo de dez dias, ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS).  Porém,  é tarde demais. Qualquer que seja a decisão do TAS, o FC Sion não poderá mais reintegrar a Europa Liga este ano.

Por trás desse caso complexo, que começou com a contratação do goleiro egípcio Essam el-Hadary em 2008, julgada ilegal pela FIFA,  estão em jogo questões mais importantes que uma simples querela de egos entre o presidente e mecenas do FC Sion, Christian Constantin, e o presidente da UEFA, Michel Platini.

Primeiro, há interesses financeiros evidentes porque o FC Sion perde 5 milhões de francos suíços com a desclassificação. Tem também o aspecto jurídico da autonomia do esporte e suas instâncias, como explica, na entrevista a seguir,  Piermarco Zen-Ruffinen, professeor na Universidade de Neuchâtel.

swissinfo.ch: Como o senhor interpreta o conflito que opõe o FC Sion às instâncias dirigentes do futebol mundial?

Piermarco Zen-Ruffinen: Vemos o enfrentamento entre duas ordens jurídicas: estatal de um lado, e direito privado, de outro. O esporte não é o único setor em que as jurisdições privadas existem. Basta pensar nas igrejas e no mundo trabalhista. Mas, em última análise, o direito privado associativo deve ser conforme ao direito estatal e não ser superior a este. 

swissinfo.ch: A UEFA não pode, portanto, escapar impune a uma decisão da justiça civil?

P.Z-R.:  Não. Como você e eu, a UEFA está submetida à justiça civil. Mas é preciso que esta tenha meios de fazer aplicar suas decisões. Em direito penal, se você se recusa a executar uma decisão, são previstas sanções. É a mesma coisa em direito administrativo: se você constrói de maneira ilegal e recusa-se a demolir a casa, a autoridade vai demolir e você é quem vai pagar as despesas. Em matéria civil, é mais complicado porque a autoridade não dispõe de tantas medidas executórias. Uma simples multa não é realmente dissuasiva. A UEFA não corre muito risco no imediato. O que o FC Sion pode fazer é exigir indenização e, a meu ver, a UEFA só pode perder. Mas esse julgamento ocorreria em mais de dois anos, no mínimo, enquanto o litígio é pela Copa da Europa que começa esta semana. 

swissinfo.ch: Se o FC Sion se obstina, a justiça poderia pronunciar um veredicto que faça jurisprudência, como no caso Bosman?

P.Z-R.:  Se a UEFA perde esse processo, será uma deflagração.  No caso do jogador Bosman, só foi examinada a livre circulação de pessoas na Europa. A justiça considerou que o preço do passe no fim do contrato prejudicada a livre circulação de trabalhadores. Nesse caso do FC Sion, a UEFA poderia ser condenada por abuso de posição dominante. E ninguém sabe atualmente quais seriam as consequências de uma decisão dessas. 

swissinfo.ch: O FC Sion pode esperar chegar ao fim do processo e ganhar a causa?

P.Z-R.: O FC Sion tem chance, mas isso dependerá da competência das pessoas que defendam seus interesses e da coragem dos juízes que serão encarregados do caso. Isso pode terminar como o “caso Charleroi”, nome do time belga que recorreu na justiça para obter indenizações quando seus jogadores voltavam machucados da seleção nacional.  Quando a FIFA começou a sentir o perigo, resolveu o problema assinando uma convenção com os clubes envolvidos. Pode ocorrer o acordo financeiro desse tipo entre a UEFA e o FC Sion. 

swissinfo.ch: É normal que o FC Sion recorra à justiça civil, quando existem tribunais arbitrais do esporte?

P.Z-R.: Eu sou a favor da justiça arbitral para o esporte, contanto que ela proporcione as mesmas garantias da justiça ordinária.  Esse não é o caso.  O jogador francês Jean-Marc Bosman jamais teria tido ganho a causa na justiça arbitral. No caso do FC Sion, vemos uma mascarada de justiça. Como Michel Platini pode afirmar que o tribunal disciplinar interno e a corte de recurso da UEFA são totalmente independentes? O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) também não é, porque vários árbitros são ligados a federações. 

swissinfo.ch: Então a ingerência dos tribunais civis no esporte é necessária?

P.Z-R.: É, porque ela obriga a justiça arbitral a evoluir para ter mais transparência, independência e imparcialidade.  A justiça civil contribui  para melhorar o sistema. É indispensável. Os Estados Unidos viveram uma evolução similar 30 anos atrás. Vários julgamentos da Corte Suprema ou de outros tribunais civis forçaram a justiça arbitral a mudar. 

swissinfo.ch: A UEFA tem sua sede na Suíça, como o FC Sion. Isso tem alguma influência nesse caso?

P.Z-R.: Nos estatutos da FIFA e da UEFA é mencionado que, salvo regulamentação contrária, o direito suíço é aplicado.  Ora, a Constituição suíça dá garantias procedurais e a justiça arbitral não pode escapar. Quando as grandes federações estão descontentes, elas ameaçam deixar a Suíça. Eu acho que a UEFA também vai fazer isso se esse caso for levado à Corte europeia.

O conflito entre o FC Sion e as instâncias do futebol mundial (FIFA e UEFA) começou em fevereiro de 2008, com a contratação pelo Sion do goleiro  Essam el-Hadary, grande estrela do futebol egípcio. Julgando a contratação ilegal, a FIFA condenou o jogador a quatro meses de suspensão e o Sion a duas temporadas sem contratar jogadores.

O FC Sion recorreu, alegando vício processual. Mas o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) não acatou o recurso. Em janeiro de 2011, o Tribunal Federal, mais alta instância judiciária suíça, confirmou a decisão do TAS. O FC Sion cumpre um primeiro período (janeiro de 2011) de não contratação e considera ter acumulado suficientemente os dias de suspensão correspondentes a dois períodos de contratação.

A FIFA e a UEFA têm outra interpretação e pressionam a Liga Suíça de Futebol para que ela suspenda os seis novos jogadores contratados no verão 2011. O tribunal civil de Martigny decide em favor dos seis novos jogadores. A FIFA e a UEFA ameaçam com sanções o clube e a seleção suíça.

Dia 26 de agosto, o FC Sion elimina o Celtic Glasgow e se classifica para a fase de chaves da Europa Liga. Os escoceses apresentam um protesto na UEFA e, dia 3 de setembro, a UEFA exclui o FC Sion da competição. Dia 9 de setembro, a justiça do cantão do Valais (sudoeste), cuja  capital é Sion, daí o nome do clube, rejeita o recurso do FC Sion contra a exclusão da UEFA.

O caso reaparece em 13 de setembro, quando o Tribunal Cantonal de Vaud (oeste) dá ganho de causa ao FC Sion.  Por que Vaud? Porque a UEFA está sediada nesse cantão. O tribunal exige que a UEFA reintegre o FC Sion na competição, enquanto aguarda o julgamento mais aprofundado do caso. No mesmo dia, a UEFA rejeita o apelo do FC Sion, ignorando a ordem da justiça.

Christian Constantin, presidente do FC Sion não desiste. Ela já deu queixa penal contra a UEFA por “insubordinação à autoridade” e uma ordem de pagamento para compensar as perdas. Ele também escreveu cartas à ministra suíça da Justiça, Eveline Widmer-Schlumpf e aos governos de Zurique e Vaud para pedir a abolição dos privilégios fiscais da FIFA e da UEFA.

“Temos regras claras e regulamentos que os clubes conhecem antes de participar de nossas competições. Não podemos aceitar que um clube tente por todos os meios possíveis de impor sua vontade aos outros. Dois comitês disciplinares independentes (da justiça esportiva em primeira instância e em recurso) decidiram e demos aplicar as decisões”, explicou Michel Platini, presidente da UEFA.

Adaptação: Claudinê Gonçalves

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