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“Cinema gera discussão e transformação”

Walter Salles está participando pela primeira vez do festival em Friburgo. swissinfo.ch

Provocar discussão e transformar a sociedade. Walter Salles, estima que é esta ainda uma missão do cinema, visto hoje mais como instrumento de compreensão do mundo.

O diretor de filmes como “Terra Estrangeira” e “Central do Brasil” dá uma entrevista exclusiva à swissinfo durante a 22a. edição do Festival Internacional de Filmes de Friburgo (FIFF).

O cineasta brasileiro, vencedor do urso de ouro do Festival de Berlim, em 1998, com ‘Central do Brasil’ veio ao Festival Internacional de Filmes de Friburgo, a convite da direção do FIFF, para um debate sobre o “road movie” (cinema de estrada), em relação com “Diários de uma Motocicleta”, incluído na programação deste ano.

Na seguinte entrevista, ele aborda também a função do evento friburguense, a maior visibilidade do cinema brasileiro, destacando o valor do documentário do país – “que vive um momento único” – além de lembrar a importância do Cinema Novo.

Que importância você atribui a este Festival de Filmes de Friburgo?

Walter Salles : O Festival de Friburgo está voltado para as cinematografias estrangeiras. É organizado pelo crítico e jornalista de cinema, Edouard Waintrop, que cobriu o cinema latino-americano durante anos para o jornal francês, Libération, e que é uma pessoa com um olhar extremamente agudo sobre o cinema e sobre a nossa própria realidade. Quando recebi o convite, isso me motivou a vir, primeiro por uma questão de amizade com o Edouard, e segundo, porque é um festival que abre janelas. E qual é a função de um festival de cinema? É de mostrar que mesmo morando em latitudes tão diferentes, as pessoas não são tão distantes. O Festival de cinema permite um melhor conhecimento daquele que parece tão diferente de nós, mas que no fundo não o é.

Em todo o caso, com oito filmes brasileiros participando, o Festival de Friburgo é uma boa vitrine…

W.S.: Acho importante participar de festivais em latitudes diferentes. Festivais que lançam filmes, como é o caso de Berlim, Veneza ou San Sebastián. Ou festivais que dão repercussão a filmes que já passaram em outros festivais, como é o caso de Friburgo. Mas como este, existem poucos festivais, especializados no que eles chamam de “cinematografias do Sul”, ou seja, com olhar endereçado em boa parte para o cinema latino-americano. Não é por acaso que você tem oito filmes brasileiros aqui. E o Edouard Waintrop que dirige, a partir deste ano de 2008, o Festival me contou que a afluência de público nos filmes brasileiros é maior que para a maioria dos outros longas-metragens que estão sendo projetados aqui em Friburgo. Existe, então, um real interesse, um interesse tanto pelo Brasil, pela cultura brasileira, quanto pela cinematografia que se origina nesse país.

Você tem impressão que se vêem mais filmes brasileiros na Europa atualmente?

W.S.: Olha, desde a retomada que se seguiu ao caos do desgoverno Collor, os filmes brasileiros têm conseguido ecoar dentro do Brasil, o que me parece mais importante, e, em seguida, têm conseguido ‘viajar’ e repercutir em diferentes festivais no mundo. Não acho que estejamos vivendo um movimento tão extraordinário quanto o dos anos sessenta, que é certamente o momento em que o cinema brasileiro ganhou a maior força e maior repercussão. Mas não deixa de ser um movimento interessante. Um momento de transição. Acho que o cinema documental brasileiro é hoje um dos melhores. E talvez haja uma explicação para isso. É que a realidade é tão avassaladora no Brasil, as coisas mudam com uma rapidez tão grande que se torna cada vez mais difícil capturar essa realidade na ficção. É mais fácil trabalhar na urgência do documentário e propor alguma coisa que reaja imediatamente ao que acontece na rua no Brasil.

Uma outra explicação não seria que existem poucos recursos financeiros para a ficção e o documentário exige menos recursos?

W.S.: Em parte sim, mas acho que existe uma outra explicação: a liberdade do documentarista é sempre maior, até pelo fato de ele estar trabalhando com uma equipe reduzida e um orçamento infinitamente menor que o orçamento de um longa-metragem. Finalmente, a própria linguagem documental permite uma reinvenção constante daquilo que está sendo narrado. Então, há várias razões para que o documentário brasileiro esteja vivendo um momento bastante único. Na fição você tem quatro ou cinco ótimos filmes por ano – o que, aliás, é muito significativo numa produção de 50 a 60 filmes por ano – mas eu espero que esta situação melhore no futuro próximo.

O problema do documentário vem, aparentemente, do pouco interesse em distribuir esse tipo de filme, não?

W.S.: Olha, eu contestaria esta afirmação, até pelo fato de vários documentários brasileiros terem se aproximado de oitenta e cem mil espectadores. Um caso bastante especial é o de ‘Altamira’ (ndr: Documentário sobre os povos indígenas e as hidrelétricas do Xingu, em defesa do desenvolvimento sustentável na Amazônia), de Marcos Prado que chegou, salvo engano a 70-80 mil espectadores. É filmado em preto e branco sobre um tema que era bastante complexo como ponto de partida. Você vê, então, que há um interesse.

João (Moreira Salles), meu irmão que é documentarista, fez um longa documental chamado ‘Santiago’, em preto e branco, que, à primeira vista, não parecia ser um filme que pudesse dialogar com um público extenso, foi ganhando festivais, a crítica foi extremamente positiva – e o boca-a-boca também funcionou – e aí, merecidamente, ultrapassou os cinqüenta mil espectadores. Vê-se, então, que há vários casos de documentários que encontram público no Brasil como em outras latitudes.

Qual sua apreciação sobre filmes brasileiros que participam deste Festival Internacional de Friburgo, como ‘Falsa Loura’, ‘Hérculos 56’, ‘Homem do Ano’…

W.S.: Olha, o ‘Carlão’ Reichenbach (ndr: que assina ‘Falsa Loura’) é um dos mais importantes autores brasileiros. Ele tem um olhar incotestavelmente agudo, único, sobre a realidade que nos cerca. O filme de José Henrique Fonseca (ndr: ‘O Homem do Ano’) está imbuído de uma inquietação, de uma urgência que faz dele um dos filmes mais interessantes da última década. E, finalmente, ‘Hércules 56’ (ndr: de Sílvio Da-Rin, sobre a captura do embaixador norte-americano no Brasil) faz parte dessa relação com o passado que acaba ajudando a entender quem somos e de onde viemos. Então, são filmes muito diferentes, mas que acabam se completando e propondo para um público estrangeiro uma imagem possível do Brasil.

Justamente em relação aos anos 60, como você vê a tentativa de utilizar a câmara como uma arma de transformação do mundo. Uma utopia enterrada?

W.S.: Os grandes movimentos cinematográficos são sempre aqueles em que os filmes são feitos no momento de transformação radical das culturas que estão sendo mostrados na tela grande. Como você fala dos anos sessenta, você se refere ao ‘Cinema Novo’ que faz parte de um movimento amplo em que surge no Brasil, pela primeira vez, uma possibilidade de o país se definir por si próprio através de uma nova arquitetura, representada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, uma nova música, uma nova poesia, um novo teatro e… o Cinema Novo. Então, pela primera vez, existe uma impressão de que uma cultura criada por nós mesmos pode se tornar dominante.

Essa impressão, esse desejo são quebrados duas vezes. Primeiro, em 1964, e em 1968, que é o golpe dentro do golpe. E a todo esse movimento de criatividade do final dos anos 50 e início dos anos 60, se seguem o exílio forçado dos anos 60 e, para utilizar um título de filme do Gláuber, ‘as cabeças cortadas’. Na verdade, cortados foram os destinos desses criadores que não puderam se exprimir ao longo do tempo.

Mesmo assim, no caso do Cinema Novo, Nélson Pereira dos Santos, Gláuber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Carlos Diegues, Luiz Sérgio Person, para citar apenas alguns, dentro de um movimento que é muito mais amplo, nos deixaram um legado cinematográfico extraordinariamente rico. É um movimento que, sem sombra de dúvida, pode ser comparado ao Neo-realismo Italiano, à ‘Nouvelle Vague’ francesa, ao Cinema Independente dos Estados Unidos (aquele que foi feito contra a guerra do Vietnã). Existe ali essa geração – que empunha a câmara – e que tem uma missão: mudar o mundo, transformar o mundo, usar o cinema como transformação do mundo.

Talvez hoje se entenda o cinema como instrumento de compreensão do mundo, mas há cinematografias que ainda conseguem juntar esses dois desejos numa coisa só. Essa utopia está morta? Não sei dizer se está morta ou não. Mas prefiro pensar que não. Prefiro pensar que o cinema ainda tem a capacidade de não só gerar discussão como também de gerar transformação.

swissinfo, J.Gabriel Barbosa

Diretor, roteirista e produtor, Walter Salles foi um dos cineastas brasileiros responsáveis pela retomada do cinema nacional. Conseguiu também projeção internacional após receber duas indicações ao Oscar por seu filme “Central do Brasil”, em 1998.

Walter Salles cursou Economia na Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro. Em seguida mudou-se para os Estados Unidos, onde fez mestrado em Comunicação Audiovisual na Universidade da Califórnia.

Entre 1983 e 1993, no Brasil, realizou uma série de entrevistas para a televisão, além de especiais e documentários. Realizou também dois documentários sobre o escultor Franz Krajcberg.

Junto com o irmão, João Moreira Salles, fundou, em 1987 a produtora Videofilmes. Entre 1989 e 1991 esteve à frente da produção do filme “A Grande Arte”, baseado no livro de Rubem Fonseca.

Em 1995, em co-direção com a cenógrafa Daniela Thomas, Walter Salles lançou “Terra Estrangeira”, com boa aceitação da crítica e do público. O lançamento de “Central do Brasil”, em 1998, ajudou a mudar a visão que o grande público tinha do cinema nacional. O filme se tornou um recordista de prêmios recebidos, e foi aplaudido nos festivais de Cannes, Berlim e Havana. No mesmo ano, o média-metragem “O Primeiro Dia”, foi premiado no Brasil.

fonte: UOL

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