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“O Brasil não precisa pedir licença para tomar iniciativas”

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim. MRE

Ele recebeu do presidente Lula a tarefa de coordenar as relações internacionais e colocar o Brasil em uma nova posição no contexto global.

Em entrevista exclusiva à swissinfo.ch, em Brasília, o chanceler Celso Amorim fala de livre-comércio, das relações com a Suíça, dos paraísos fiscais, do acordo com o Irã, entre outros temas. Nesta primeira parte, Amorim fala da Suíça e do Brasil. Na segunda parte, publicada sábado (04/9), o tema é o Brasil e o Mundo.

Ele acaba de bater o recorde de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, o maior mito da diplomacia brasileira. Quando terminar o governo Lula, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, será o chanceler que mais tempo esteve à frente do Itamaraty.

Ao receber swissinfo.ch na sua imponente sala de trabalho em Brasília, ele respondeu a todas as questões ligadas ao relacionamento entre a Suíça e o Brasil, lembrando também do apreço que tem pela cidade de Calvino, onde serviu por duas ocasiões. Ao final da entrevista, mostrou ao repórter o novelo de lã que colheu com as próprias mãos juntamente com o presidente do Mali. Em sua opinião, é o símbolo de um novo foco das prioridades do Brasil no mundo.

swissinfo.ch: Há pouco o ministro suíço do Interior, Didier Burkhalter, e uma delegação de 15 representantes da ciência helvética estiveram no Brasil. A viagem se deu no âmbito da priorização da cooperação científica com o país, uma priorização que existe também no contexto econômico. Como o senhor vê esse novo interesse?

Celso Amorim: Em primeiro lugar, temos uma parceria estratégica com a União Europeia, que ilustra o grande interesse europeu em relação ao Brasil. Para falar mais especificadamente da Suíça, onde fui embaixador em Genebra por duas vezes, acabei desenvolvendo vínculos com ela. Também participo regularmente do Fórum em Davos. Eu tive muito prazer de receber aqui a chanceler Micheline Calmy-Rey, a ministra da Economia Doris Leuthard e também de visitá-las na Suíça. Eu percebo que é uma decorrência natural da performance da economia brasileira, das ações que nós desenvolvemos no mundo e também de uma visão independente das relações internacionais. Eu tive, por exemplo, boas conversas com Micheline Calmy-Rey sobre o Irã, e isso muito antes do acordo que fizemos há pouco com a Turquia. Com a Doris Leuthard, minha colega nas negociações comerciais, nós tivemos sempre uma boa interação.

swissinfo.ch: Talvez uma forma simbólica de reconhecimento dessa importância teria sido a entrega do prêmio de Estadista Global no Fórum Econômico Mundial (WEF) em janeiro, não?

C.A.: É claro que Lula é uma pessoa muito especial. O presidente – acho que podemos dizer isso sem a preocupação de parecer querer estar adulando, até porque já estamos no final do mandato do presidente. Isso é indiscutível e é reconhecido por todos. É uma figura como muito poucas entre as lideranças mundiais. Mas é evidente que isso reflete o Brasil. Afinal, se você tem um líder excepcional, mas o país não corresponde ou não responde a essas lideranças, então as coisas não acontecem. No caso do presidente, ele foi um líder muito importante no sentido da recuperação econômica, da manutenção da estabilidade, quando as pessoas não acreditavam que isso fosse acontecer. Foi também um líder que deu uma ênfase muito grande à eliminação da desigualdade. Claro que isso não ocorre de um dia para outro, mas o que ocorreu no Brasil nesses anos é notável e foi reconhecido por todo mundo.

Além disso, Lula teve uma atuação internacional desassombrada. Ele é um presidente que acha que o Brasil não deve ficar pedindo licença a A ou B para tomar iniciativas. Graças a isso, hoje alargamos nossas relações de uma maneira notável. Acho que os outros países percebem isso. O Brasil tem hoje obviamente uma relação privilegiada com a própria América do Sul, América Latina e Caribe, mas tem também com a África, com os países árabes, no contexto de BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) ou no contexto de IBAS (Índia, Brasil e África do Sul). Ao mesmo tempo mantivemos com a Europa um bom relacionamento. Tudo isso explica essa projeção que o presidente tem.

O prêmio de Davos torna isso mais interessante, pois foi a primeira vez que ele foi atribuído. E também pelo fato dele ter sido dado a um líder operário que, quando disputava as eleições, despertava temores no mundo empresarial. Agora, ao final do governo, ele recebe uma honraria de estadista global da maior organização que, se não é exclusivamente empresarial, pelo menos é onde os empresários tem voz: Davos (WEF).

swissinfo.ch: Em um debate organizado recentemente pela Câmara de Comércio Latino-Americana da Suíça, empresários presentes reclamaram frente aos representantes do governo helvético da dificuldade de entrar no mercado Brasileiro devido a falta de um acordo de livre comércio. Só a Suíça tem 22 acordos bilaterais de livre-comércio fora da União Europeia, dos quais com quatro com países latino-americanos. Quando a situação vai melhorar?

C.A.: Temos um acordo muito bom com a Suíça, que tem funcionado, mas que não é de livre-comércio. É um acordo de cooperação econômica e comercial. Inclusive, ele permitiu que houvesse essa comissão mista e que já se reuniu algumas vezes. Ela tem produzido resultados, permitindo, por exemplo, resolver problemas que surgem nas relações. Agora, com relação a um acordo de livre-comércio, teria de ser com o Mercosul, Isso, pois somos uma união aduaneira. Não temos nenhuma restrição a isso. Acho que o fato de estarmos em um processo de negociação com a União Europeia vai mostrar qual o tipo de negociação que podemos ter com a Suíça e com os países do EFTA (Associação Europeia de Livre Comercio).

Evidentemente existem, à primeira vista, pontos de resistência de um lado e do outro. Em alguns produtos manufaturados seguramente haverá ainda alguma dificuldade nos países do Mercosul. Como, da mesma maneira, na área agrícola haverá dificuldades da parte da Suíça – não sei se com outros países do EFTA, mas certamente no caso da Suíça. Mas não vejo que isso seja um impedimento. Você tem de negociar e chegar a acordos mutuamente vantajosos.

swissinfo.ch: Mas existe o interesse da Suíça de acelerar um acordo com o Mercosul?

C.A.: Acho que há. A questão é que esses acordos são mais complexos devido às diferenças que mencionei. Por outro lado negociamos rapidamente um acordo com Israel e também com o Egito. Agora no caso da União Europeia e da Suíça, como também os países da EFTA, existe essa dicotomia que apontei: o grande interesse que demonstram esses países pela maior abertura na área de manufaturas, onde consideramos que já fizemos até uma liberalização bastante grande, e o nosso grande interesse na agricultura. Um não exclui o outro, mas o fato de estarmos agora envolvidos nessas negociações com a União Europeia pode também nos indicar um bom caminho para acelerar. Mas tudo depende das iniciativas. Nem sempre é o Mercosul que toma as iniciativas. Acho que se houver uma iniciativa forte da parte do EFTA, nós iremos corresponder.

swissinfo.ch: Como o senhor responde à preocupação de muitas empresas suíças, sobretudo as farmacêuticas, em relação ao respeito das patentes?

C.A.: O Brasil não é contra as patentes. O Brasil é contra o abuso das patentes para que sejam cobrados preços que não correspondem mais à necessidade de recuperar o investimento feito e que também não correspondem à possibilidade e capacidade dos países.

swissinfo.ch: Então o Brasil mantém sua posição de interpretar livremente o respeito aos direitos intelectuais?

C.A.: Haverá sempre divergências e para isso temos a OMC (n.r.: Organização Mundial do Comércio) em Genebra. Mas tivemos uma boa negociação para que houvesse um investimento no Brasil de uma empresa suíça (n.r.: Novartis constrói em Goiana, Grande Recife (PE), sua primeira fábrica de vacinas na América Latina) e que deu certo. Esses investimentos são bem-vindos. O Brasil não prega que não se respeitem as patentes, mas há situações, como foi no caso da AIDS, como pode haver outras, em que a adoção de medicamentos genéricos é fundamental. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo onde a curva de doentes com AIDS diminuiu consideravelmente. E isso foi graças aos medicamentos genéricos, pois é um programa 100% financiado pelo governo e o governo jamais teria dinheiro para fazer isso, se tivesse de pagar os preços dos remédios. Em muitos casos houve negociação, inclusive com empresas suíças, e se chegou a um preço considerado razoável, tanto assim que a empresa manteve as vendas ao governo brasileiro. Eu acho que essas diferenças de perspectivas são normais. Agora, nos não vamos renunciar à primazia de poder tratar dos nossos doentes havendo formas de fazê-lo.

swissinfo.ch: Falando de um conflito direto entre os dois países, como ficou a questão da inclusão da Suíça em uma lista “negra” da paraísos fiscais da Receita Federal no Brasil?

C.A.: Mas eu entendo que isso foi resolvido.

swissinfo.ch: Mas a inclusão foi apenas suspensa…

C.A.: Sim, ela foi suspensa. Mas o problema no momento não existe. Acho que é uma questão da forma de tratar do problema. Você sabe, em todos os países do mundo as receitas são muito zelosas das suas atribuições – equivalente ao IRS (n.r.: Internal Revenue Service – autoridade fiscal americana). Mas acho que iremos encontrar uma solução justamente baseando não tanto em países, mas em atividades. E aquelas atividades que gozam de um favorecimento fiscal, elas naturalmente têm que ser objeto de uma compensação no país, até mesmo para não criar uma competição desleal. Mas a Suíça não está aparecendo em nenhuma lista de países que sejam paraíso fiscal. Isso foi objeto de conversas minhas com a presidente Doris Leuthard e com a ministra de Relações Exteriores (n.r.: Micheline Calmy-Rey). Em menos de uma semana tínhamos resolvido o problema.

swissinfo.ch: Mas muitas empresas suíças no Brasil manifestam em debates fechados uma certa insegurança…

C.A.: Eu não creio. Não posso falar pela Receita Federal, mas acho que, como me foi dito, a Suíça está preenchendo os critérios da OCDE e é normal, portanto, que não figure na lista.

swissinfo.ch: A Suíça gostaria de participar do G-20, sobretudo na procurar de soluções para impedir uma nova crise financeira. O Brasil apoiaria o país nessas aspirações?

C.A.: Eu diria que a Suíça já tem uma presença grande nos órgãos financeiros internacionais. Inclusive muitos dos quais ficam na Suíça. Na Basileia temos a União dos Bancos Centrais (n.r.: Banco de Compensações Internacionais). Temos o comitê de políticas financeiras. Eu devo dizer francamente que já acho a Europa sobre-representada. Não temos nada contra a Suíça. Se ela se inserir por lá sem que isso desequilibre ainda mais o G-20 num sentido contra os países em desenvolvimento, então tudo bem. Mas isso é um problema que tem de ser resolvido na Europa. Sei que vocês não são parte da União Europeia, mas tem de ser discutido lá. Porque você tem naturalmente os representantes dos que já eram do G-8 – você tem a França, a Itália, o Reino Unido, você ainda tem a Espanha que é sempre convidada, você tem o representante do país que está presidindo a União Europeia, você tem o presidente da Comissão Europeia. Quando vai ver por lá, você só tem quase que europeu. Mas isso também não pode: o mundo mudou!

Acho que se encontrássemos uma fórmula de representação coletiva de vários países, talvez houvesse uma solução. Mas eu não quero dar uma solução agora, pois acho que essa é uma questão complexa. A Suíça obviamente é um país que tem uma contribuição a dar, mas haverá formas prováveis de fazê-lo.

Alexander Thoele, Brasília, swissinfo.ch

Para ler a segunda parte da entrevista, clique no primeiro link à direita

Nascido em Santos, São Paulo, em 3 de junho de 1942.

Casado com Ana Maria Amorim, tem quatro filhos (Vicente, Anita, João e Pedro)

Ministro das Relações Exteriores (2003-presente)

Ministro das Relações Exteriores (1993-1995)

Postos no exterior:

Genebra, Representante Permanente do Brasil junto à Organização das Nações Unidas e à Organização Mundial do
Comércio, 1999-2001

Nova York, Representante Permanente do Brasil junto à Organização das Nações Unidas, 1995-1999

Genebra, Representante Permanente do Brasil junto à Organização das Nações Unidas e demais Organismos
Internacionais; Chefe Negociador da Rodada Uruguai, 1991-1993; Embaixador junto à Conferência sobre Desarmamento
(Presidente da Conferência, janeiro, 1993)

Haia, Chefe-Adjunto, Embaixada do Brasil, 1982-1985

Washington, Organização dos Estados Americanos (OEA), 1973-1974

Londres, Embaixada do Brasil, 1968-1971

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