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“O FMI não vem ajudar, vem tirar lucros”

Fernando Solanas: - "Há que se criar a união sul-americana, inseparável do Mercosul". J.Gabriel Barbosa

O documentário, “Memoria del Saqueo” Fernando E. Solanas, um dos mais respeitados cineastas latino-americanos – e cuja obra foi recompensada com um urso honorário em Berlim – abriu este ano o Festival Internacional de Filmes de Friburgo.

swissinfo entrevista o diretor argentino durante o 9o Festival Internacional de Filmes de Friburgo.

No filme, o diretor argentino de 68 anos – que é casado com a artista brasileira Ângela Correia – traça as turbulências políticas e sociais na Argentina nas últimas décadas e o saqueio em regra dos bens país, em particular no período Menem. A película denuncia uma corrupção generalizada que envolveu até sindicatos e deixou a Argentina exangue e ainda faminta uma vasta camada da população.

Que acha deste Festival?

Este festival abre espaço para os filmes do “terceiro mundo” – África, Ásia, América Latina. É, então, para nós de enorme importância. Permite que cheguem ao centro da Europa imagens e temas que sem o festival nunca chegariam. Acho que o evento representa uma interessante maneira de realizar um legítimo intercâmbio cultural. Ao mesmo tempo, o cinema que chega é de grande valor, tornando-se um presente para o público suíço que pode ver filmes dificilmente acessíveis.

Então “um outro cinema é possível?”, para parodiar uma fórmula conhecida?

Evidentemente. E, note-se, que alguns filmes aqui projetados são distribuídos na Suíça. Assim o trabalho do diretor artístico, Martial Knaebel, que percorre o mundo procurando filmes, é um trabalho que valorizamos muito.

Acha que com este festival se pode mudar a maneira de os europeus verem os países emergentes?

Bom, pelo menos contribui para isso. Até porque, contrariamente ao que se pensa no exterior, o jornalismo na Suíça é um jornalismo mais aberto e tem menos esquemas (representação simplificada) que em outros países. As vezes se pensa que na França as pessoas são mais abertas. Mas não é verdade, A França tem esquemas. Aqui o jornalismo escuta… É um país aberto. E ouso dizer que há mais publicações sobre a América Latina na imprensa suíça que na imprensa francesa. Para compreender o outro, é preciso ter informações e imagens da problemática dele…

Seu documentário, “Memoria del Saqueo”, que abriu o festival, é uma denúncia em regra da espoliação dos bens públicos por pessoas que justamente deviam cuidar desses bens. Gostaria de saber que modelo de desenvolvimento o senhor propõe?

Antes de mais nada, vale dizer que os mecanismos de saque na Argentina se aplicam a países da América Latina de modo geral e ocorrem também em outros países em desenvolvimento. É uma corrupção sistemática. Não é que chegue um governante e abra grosseiramente os cofres públicos e leve o dinheiro.

Participam especialistas em contabilidade, banqueiros e meios de comunicação que ludibriam o povo. Participam também legisladores, políticos, grandes empresários. Trata-se de uma corrupção sistemática que, além do mais, é protegida pelos supremos tribunais de justiça. É o que chamo de “mafiocracia”.

Essa corrupção agride: quando quer fazer alguém calar, mata. E disfarça os assassinatos em falsos suicídios. É o que denuncia minha película. Não é algo peculiar à Argentina. Dá-se no Brasil, no Paraguai, Peru ou na Venezuela. Que aconteceu com Carlos Andrés Perez, um presidente tão renomado que foi presidente da Segunda Internacional Socialista? Que aconteceu no México de Salinas de Gortári? Foram acusados até de assassinato!

E fora da América Latina, como se explica a quebra fraudulenta de um dos cinco maiores grupos do mundo, Enron? Isso se faz com a cumplicidade das instituições, dos organismos governamentais que devem controlar essas empresas. Como é possível a quebra de Parmalat? Faz-se com a cumplicidade de uma parte do governo.

Meu filme denuncia ao mesmo tempo que na rota do narcodólar e no esvaziamento financeiros de nossos países estão comprometidos os principais bancos do mundo. É uma farsa o combate do narcotráfico pelos Estados Unidos, pois são os principais bancos daquele país que participam desse tráfico. Participam o Morgan Bank, o Credit Suisse e Dresdnerbank…

Sabe quantos bilhões de dólares por ano movimenta o narcotráfico?
700 bilhões!!!

O senhor ainda não respondeu que modelo propõe!?

Este modelo em vigor foi levado adiante para beneficiar os bancos e as grandes empresas. Com inflação zero, os bancos nos cobravam juros usurários de 4,5% por mês, mais de 50% por ano. Conseguiam por mês lucros que precisariam um ano para conseguir em outras partes do mundo.

No filme, o senhor não mostra indulgência alguma com o FMI!

O FMI é comandado pelos Estados Unidos e a União Européia. Ele representa os bancos e as grandes empresas. Em suma, roubaram-nos até os ossos, deixando-nos uma enorme pobreza e, por ano, nos deixaram mais vitimas que o terrorismo do Estado, da ditadura. Na Argentina, em conseqüência da desnutrição e de doenças curáveis morrem por ano 35 mil pessoas. É um verdadeiro genocídio. É um genocídio dos planos econômicos. Por isso, no filme se diz que os planos do FMI produzem crimes de “lesa-humanidade” em tempos de paz e de democracia.

Acha que uma colaboração do presidente argentino Nestor Kirchner e do presidente Lula podem mudar esse modelo?

Kirchner e Lula estão trabalhando juntos. Puseram-se de acordo em negociar conjuntamente a dívida com o FMI. Os dois falam em atender à dívida interna: a dívida da fome, a dívida da pobreza. Deve-se impor barreiras ao FMI que atua com mentalidade de banqueiro. Não vem ajudar, vem tirar lucros. Sempre nos cobrou juros usurários. Impôs reforma de muitas leis. Exigiu que acabássemos com boa parte da legislação que protegia o trabalho. É muito grave.

O senhor parece dizer que a dívida é impagável. De todas maneiras, com o pagamento dos juros sobra muito pouco para programas sociais. Que fazer?

O presidente Kirchner estabeleceu algo importante, indicando que se comprometia a pagar até 3% do superávit fiscal porque necessitava atender à divida interna. E está em conflito com o FMI. No ano passado, Argentina cresceu 8% por cento.

O caso de Lula é mais conflitante. Aceitou pagar 4.5%, mas o Brasil teve crescimento zero. É grave. Acho que neste ano os dois presidente vão coordenar suas políticas e o Brasil negociará outro acordo.

O senhor vê então uma saída?

Acho que sim. Argentina e Brasil unidos com o resto de países da América Latina são um continente que pode aspirar a uma plena autonomia e aplicar suas próprias políticas. O Fundo Monetário não é imprescindível. Isso é um mito. Há que se criar a união sul-americana, inseparável do Mercosul.

E a ALCA, A Área de Livre Comércio das Américas?

A ALCA é um projeto dos Estados Unidos. É a expansão da economia norte-americana na América do Sul. Não acho que seja implantada. Claro que haverá tentativas… O que se fortalecerá, creio, é o Mercosul. A Argentina e o Brasil são os motores do grupo sub-20. Um grupo que critica os subsídios agrícolas norte-americano e europeu.

swissinfo, J.Gabriel Barbosa, em Friburgo

Fernando “Pino” Solanas nasceu em Buenos Aires, em fevereiro de 1936. Projetou-se com “La Hora de los Hornos”, em 1967, sobre a evolução política e social na Argentina.
Na película, reescrevendo a história, ele denuncia mecanismos de dependência, incitando à revolta. Segundo o diretor artístico do festival de Friburgo, Martial Knaebel, esse filme mítico “marcou a história do documentário mundial”.

Memoria del Saqueo “de certa maneira dá continuidade a seu primeiro filme”, segundo o próprio cineasta, explicando os motivos da pior crise sofrida pela Argentina e apontando como responsáveis uma dívida astronômica, privatizações indiscriminadas e uma corrupção generalizada, em particular no período do governo Menem (culminando no governo de la Rua).

O cineasta de certa maneira acerta as contas com o ex-presidente que denunciou como corrupto. Durante a presidência de Menem Solanas foi vítima de um atentado, recebendo seis tiros nas pernas.

Fernando Solanas foi deputado por uma legislatura e não pára de escrever e de atuar na política como militante de esquerda. Sua filmografia inclui ainda: O Olhar dos Outros (1980), Tangos – o Exílio de Gardel (1985), A Viagem (1992), A Nuvem (1998).

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