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‘Projeto Impiedoso’: como o Catar espionou o mundo do futebol na Suíça

Infantino und Emir
O Presidente da FIFA Gianni Infantino (à esquerda) com o Emir Sheikh Tamim bin Hamad al-Thani do Catar no palco do Centro de Exposições e Convenções de Doha em 1º de abril de 2022. Keystone

O Catar orquestrou uma operação de inteligência em larga escala e de longa data contra funcionários da FIFA com a ajuda de ex-agentes da CIA. A Suíça foi um importante palco de operações. Os mais altos escalões do governo do Catar estavam envolvidos.

Uma rede de espionagem que operava nas sombras. Agentes de inteligência que planejavam influenciar eventos mundiais através de uma operação secreta. Hackers que roubavam informações controversas. E um cliente obscuro que financiou todo o projeto com centenas de milhões de dólares.

Esta é a história de uma operação secreta global.

Uma investigação feita pela equipe investigativa da emissora suíça SRF, “SRF Investigativ”, mostra os detalhes de como o Estado do Catar espionou funcionários do futebol mundial. E como críticos da próxima Copa do Mundo, mesmo fora da FIFA, também viraram alvo.

O objetivo final desses esforços era evitar que o Catar perdesse a Copa do Mundo devido às grandes críticas feitas após a FIFA conceder o torneio ao país autoritário em 2010.

A magnitude das atividades de espionagem é considerável. Uma única suboperação envolveu a implantação de pelo menos 66 agentes ao longo de nove anos. O orçamento foi de 387 milhões de dólares. E as atividades se estenderam por cinco continentes.

Os mais altos escalões do governo do Catar estavam envolvidos nas atividades de espionagem, inclusive o atual chefe de Estado, o emir do Catar.

Os documentos mostram que o país desértico queria garantir que não houvesse nenhuma mudança de posicionamento dentro da FIFA, nenhuma nova amizade e nenhuma aliança potencialmente perigosa. Era preciso vigiar tudo que pudesse ameaçar a realização da Copa do Mundo de 2022 no Catar. O objetivo era obter controle absoluto. Ou “penetração mundial” [worldwide penetration], como é chamada num documento da operação de espionagem.

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Para fazer isso, o Catar contratou uma empresa privada americana: a Global Risk Advisors (GRA). A equipe da empresa consiste em ex-membros de agências de inteligência dos EUA; seu fundador é o ex-agente da CIA Kevin Chalker.

A Suíça foi um local-chave na operação. O espião chefe e seus clientes do Catar se encontravam em Zurique. E foi no país helvético que eles espionaram várias pessoas. Assim, crimes foram supostamente cometidos na Suíça por ordens do Catar.

Chalker nega todas as acusações. O Estado do Catar não respondeu às perguntas. Pouco tempo após a SRF entrar em contato, o emir do Catar fez um discurso no qual reclamou de uma “campanha” contra seu país.

A investigação da SRF descobriu que as vítimas estavam à mercê dos agentes que as espionavam. Suas contas de e-mail, computadores, telefones, amigos e até mesmo familiares tornaram-se alvo dos agentes-sombra do Catar.

A operação visava mais do que apenas obter informação. A investigação conclui que havia uma mão invisível tentando influenciar as políticas da FIFA durante os últimos dez anos. Os espiões afirmam ter penetrado no mais alto órgão executivo da FIFA, o Comitê Executivo da FIFA.

Esta é a história do ‘Projeto Impiedoso’ [Project Merciless].

A história é ambientada em um submundo. Os espiões são invisíveis. Suas atividades, porém, têm consequências na vida real. Em lugares reais.

Em 5 de janeiro de 2012, é realizado um ataque cibernético contra um cidadão suíço.

Um ex-assessor do presidente da FIFA Sepp Blatter recebe e-mails estranhos. Seus remetentes parecem querer que ele abra os anexos das mensagens de qualquer forma. Eles tentam de novo e de novo.

Se ele tivesse clicado nos arquivos, um software teria sido instalado secretamente em seu computador.  Sem que ele percebesse, o software copiaria todos os dados em seu disco rígido e os enviaria para os hackers.

O homem sentado em frente ao computador é Peter Hargitay. Oficialmente, ele atua como assessor, mas, dentro da FIFA, ele é considerado um marqueteiro, um poderoso influenciador de poder nos bastidores. Ele tinha sido próximo do então onipotente presidente Sepp Blatter. Mais tarde, tornou-se consultor da Federação de Futebol da Austrália e de seu presidente, o bilionário Frank Lowy. Hargitay tinha o objetivo de ajudar a Austrália a sediar a Copa do Mundo de 2022 e, portanto, trabalhou em estreita colaboração com Lowy.

O computador de Hargitay, sem dúvidas, continha informações valiosas. Um tesouro para qualquer um que quisesse ter uma boa compreensão dos acontecimentos mais importantes da FIFA.

Quem poderia querer tais informações tão desesperadamente a ponto de arriscar ser processado?

Empresa indiana

Hargitay é um cidadão suíço; sua empresa tinha um escritório em Zurique na época. Ele prestou queixa, e o ataque ao ex-funcionário da FIFA tornou-se um caso para as autoridades suíças.

As evidências rapidamente apontaram para a infraestrutura de uma empresa de TI sediada na Índia, a Appin Security. A SRF obteve registros do processo criminal de Zurique. Os hackers parecem ter sido descuidados em seu trabalho. O servidor que usaram para o ataque contém muitas provas indicando o envolvimento da Appin.

A Appin é uma empresa obscura. Na época, ela era controlada por um empresário indiano. Oficialmente, a Appin oferecia apenas serviços legais, inclusive a proteção contra ataques de hackers.

Um representante legal do empresário disse à SRF que seu cliente era “um empresário internacional de sucesso com uma boa reputação. Ele nunca foi questionado por autoridades policiais ou jurídicas em nenhum país. Ele obviamente nega qualquer conexão com qualquer atividade ilegal”.

No entanto, ataques que carregavam a impressão digital da Appin começaram a chamar atenção ao redor do mundo. Eles aparentemente não seguiam nenhum padrão, como se a empresa indiana estivesse atacando de forma aleatória.

De acordo com a investigação realizada pela SRF e relatos da mídia internacional, um modelo de negócios relativamente novo está por trás do método: uma empresa cobra para atacar alvos e fornecer as informações para o cliente. É o que se chama de “hacker de aluguel”.

O ataque ao ex-membro da FIFA, Peter Hargitay, foi apenas um trabalho encomendado.

Mas quem é o cliente?

Documentos mostram que Peter Hargitay era o alvo de uma rede secreta de espionagem que trabalhava para o governo do Catar. Um planejamento altamente confidencial da Global Risk Advisors revela o que supostamente aconteceu no caso de hacking e mostra que cidadãos suíços aparentemente foram atacados em nome do governo do Catar.

Os documentos revelam um plano para uma campanha global de difamação, uma manipulação cínica da base de poder da FIFA. A proposta apresentada no documento era coletar informações incriminatórias sobre os membros do círculo íntimo do alto escalão da FIFA, Hargitay e Lowy, e repassá-las ao FBI.

O documento se intitula “Projeto Mecanismo de Relógio: Conceito de Operações” [Project Clockwork: Concept of Operations] e é datado de dezembro de 2011 – apenas um mês antes de Peter Hargitay receber os primeiros e-mails com vírus.

Project Clockwork
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O verdadeiro alvo era Lowy, não Hargitay, como mostram os documentos. Lowy estava trabalhando muito próximo a Hargitay na candidatura da Austrália para sediar a Copa do Mundo. O motivo das investidas dos espiões contra Lowy parece óbvio: o australiano era um oponente rancoroso à realização da Copa do Mundo no Catar, e ele havia dito publicamente que o país desértico poderia perder o torneio.

Sob o título “O que devemos alcançar”, o documento de planejamento atesta: “Plano de 9 meses para neutralizar o papel e a influência de […] Frank Lowy”. Ele também menciona que Lowy era um alvo difícil. Sua riqueza e suas conexões lhe deram acesso a meios consideráveis de contraespionagem. O risco para os funcionários da Global Risk Advisors, caso algo desse errado, era considerado alto. O documento também especifica que “o prazo exige um ataque com força bruta”. Além disso, o documento apresenta uma foto de Peter Hargitay.

Na seção intitulada “Caminhando na corda bamba”, os agentes explicam como pretendiam neutralizar Lowy e Hargitay. Eles aparentemente tinham conhecimento interno de uma investigação das autoridades policiais americanas, e planejavam usar essa investigação para seus próprios fins.

O documento alega conexões entre Hargitay, Lowy e a candidatura russa para sediar a Copa do Mundo de 2018, e diz: “Podemos ajudar a conectar os pontos?”, seguido de: “Fornecer provas de apoio às autoridades policiais relevantes”.

Uma investigação do FBI teria destruído mundialmente a reputação tanto de Lowy quanto de Hargitay. Eles teriam sido efetivamente “neutralizados”.

De acordo com documentos, o Catar aprovou o “Projeto Mecanismo de Relógio”. E um mês após a elaboração do documento de planejamento, o computador de Hargitay foi invadido. Não é anormal que o ataque tenha sido feito por outra empresa. A investigação da SRF mostra que a Global Risk Advisors recorre frequentemente a serviços terceirizados para realizar operações. Essa abordagem torna difícil atribuir o ataque à empresa de Chalker. E identificar o Catar como cliente é ainda mais difícil. Em um documento, a empresa prometeu explicitamente fornecer “bodes expiatórios” para desviar as suspeitas.

Chalker havia identificado Hargitay como um alvo importante muito antes do ataque cibernético contra ele. Ele havia dito isso aos seus associados na época. Chalker tinha até mesmo um pseudônimo para Hargitay: “Flecha Quebrada”.

A ponta de um enorme iceberg

O plano para comprometer Lowy e Hargitay, no entanto, representa apenas a ponta de um enorme iceberg. Nos anos após 2010, quando se decidiu que o Catar sediaria a Copa do Mundo, houve uma operação inimaginável de espionagem e manipulação não detectada nos bastidores da FIFA.

A SRF obteve uma série de documentos que descrevem a operação. Os repórteres receberam as informações de várias fontes que tinham acesso autorizado aos documentos.

O cérebro por trás das atividades de espionagem é Kevin Chalker, um antigo membro da Agência Central de Inteligência (CIA), o serviço de inteligência estrangeira dos EUA.

Chalker – de cabelos e barba castanhos – havia trabalhado para a CIA por pelo menos cinco anos. E ele não trabalhava como analista em algum escritório, ele atuava como “agente de operações”, ou seja, numa área do serviço de inteligência que realiza atividades infiltradas. Um verdadeiro espião.

Chalker deixou a CIA há vários anos. Posteriormente, ele primeiro negociou para trabalhar na Diligence, uma empresa privada de inteligência britânica. Mas ele acabou fundando sua própria empresa, a Global Risk Advisors. Sua equipe é formada principalmente por ex-membros dos serviços de inteligência dos EUA. Em dado momento, a Global Risk Advisors passou a trabalhar para o Catar.

Um advogado de Chalker negou todas as alegações quando contatado pela SRF: “A Global Risk Advisors e o Sr. Chalker não sabem nada sobre esses supostos novos hacks ou sobre a outra má-conduta sugerida em sua investigação, e certamente não participaram deles de forma alguma.” Além disso, afirmou: “Você alega ter documentos da GRA para embasar algumas das falsas acusações. Na medida em que você realmente tem quaisquer documentos, como jornalista, você deveria contestar a autenticidade deles.”

A SRF empregou uma série de medidas para verificar a autenticidade dos documentos. Chalker não ofereceu nenhum comentário sobre questões específicas relativas à natureza do papel que ele desempenhou no Catar.

Former FIFA President Sepp Blatter
O presidente da FIFA, Joseph S. Blatter, anuncia que o Catar sediará a Copa do Mundo de futebol de 2022, no dia 2 de dezembro de 2010. Keystone / Walter Bieri

A investigação da SRF mostra que inicialmente, antes da atribuição da Copa do Mundo ao Catar em dezembro de 2010, Chalker espionou as várias candidaturas. Mas, com as críticas feitas em relação à corrupção e às violações dos direitos humanos no Catar depois que a Copa do Mundo foi concedida, o objetivo mudou. Agora, a tarefa era impedir a FIFA, a todo custo, de tirar a Copa do Mundo do Catar.

Chalker e sua empresa desenvolveram o plano que não deixaria nada ao acaso.

O “Projeto Mecanismo de Relógio” e as ações contra Lowy e Hargitay eram apenas parte desse plano.

A parte seguinte era o “Projeto Impiedoso”. A sua descrição revela o quão elaborado seria o serviço de inteligência e o quão ambicioso era o projeto.

“O Catar deve adquirir inteligência preditiva para obter consciência informativa total”, diz o documento. O plano era conhecer antecipadamente os planos e intenções de vários alvos, inclusive os de “elementos críticos dentro da FIFA”, do “Presidente da FIFA Sepp Blatter” e dos “membros-chave da FIFA ExCo – atuais e futuros”. A abreviação significa “Comitê Executivo da FIFA”.

“O objetivo final é atingir a penetração mundial”, especifica o documento. A Global Risk Advisors pretendeu não perder nada. Nenhuma mudança nos planos, nenhuma mudança de posição dentro da FIFA. O objetivo era obter controle absoluto.

Especialistas em TI e especialistas em “coleta técnica” deveriam ser destacados para o projeto.

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De acordo com documentos internos da empresa, o “Projeto Impiedoso” foi aprovado pelo Catar, com um orçamento de 387 milhões de dólares.

Esta foi apenas a opção “baixa” entre as três apresentadas. Mas aparentemente, causou um impacto. Um documento diz: “A maior conquista até hoje do Projeto Impiedoso […] veio de operações de penetração bem sucedidas visando os críticos dentro da organização da FIFA”.

Outro documento descreve as atividades da seguinte forma: “[O projeto] foi concebido para esconder o papel do Catar nas operações, enquanto utiliza tecnologia e inteligência humana para […] manipular o sentimento público”.

Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de Chalker, constatou a reportagem “SRF Investigativ”. De acordo com documentos revisados pela SRF, o então herdeiro ao trono e atual Emir Tamim bin Hamad Al-Thani ordenou pessoalmente a obtenção de registros telefônicos e SMS detalhados de vários membros do Comitê Executivo da FIFA antes da concessão da Copa do Mundo.

Como exatamente o Emir foi envolvido depois que a Copa do Mundo foi concedida ao Catar ainda não está claro. A operação ainda tinha um nome de código para ele – “Apex” – anos depois.

Claramente, porém, Chalker e o Catar estavam mais do que prontos para assumir riscos, e não se intimidaram em visar figuras proeminentes. Um documento obtido pela SRF indica que Michael Garcia, o principal investigador do Comitê de Ética da FIFA, pode ter se tornado um alvo para as operações. O documento intitulado “Perfil do alvo” contém várias páginas descrevendo Michael Garcia.

De acordo com a agência de notícias Associated Press, o FBI vem investigando Chalker há vários meses. Além de potenciais violações da lei na área de lobby e exportação de tecnologia sensível, os promotores estão se concentrando nas atividades de vigilância da Chalker em nome do Catar. A Associated Press já publicou reportagens sobre as operações da Chalker para o país do deserto em conexão com a copa do mundo no ano passado.

Nem a embaixada do Catar em Berna nem o Escritório de Comunicações do Governo em Doha responderam a vários pedidos de informação da SRF. Logo após as solicitações, o Emir fez um discurso na Assembleia Consultiva do Catar, uma espécie de parlamento sem poder, no qual mencionou que o Catar havia se tornado vítima de uma “campanha sem precedentes” após o país ter sido escolhido como anfitrião da Copa do Mundo. Ele disse: “Logo se tornou claro para nós que a campanha continua, se expande e inclui fabricas e padrões duplos, até atingir uma quantidade de ferocidade que fez muitos se perguntarem, infelizmente, sobre as verdadeiras razões e motivos por trás desta campanha”.

Operação de vigilância na Suíça

A investigação da SRF mostra que a Suíça foi fundamental para a operação de inteligência do Catar.

De acordo com a investigação, Chalker, a pedido do Catar, viajou para Zurique com o objetivo de grampear os quartos de hotel dos membros do Comitê Executivo e dos jornalistas.

Um documento inclui fotos obviamente tiradas em segredo como parte de uma operação de vigilância. Elas foram tiradas no hotel Baur au Lac, em Zurique, e mostram indivíduos ligados à reunião da FIFA com funcionários e jornalistas.

A surveillance photo of a FIFA event at the Baur-au-Lac Hotel in Zurich
Uma foto de espionagem de um evento da FIFA no Hotel Baur-au-Lac em Zurique. SRF

Os agentes aparentemente se sentiam à vontade na Suíça. De acordo com a investigação, Chalker encontrou seus clientes do Catar em Zurique para discutir as operações. Pelo menos um membro da Global Risk Advisors teve sua base permanente na Suíça após o Catar ter sido escolhido como o anfitrião da Copa do Mundo de 2022.

Isso é um problema. É proibido espionar em nome de um terceiro país em solo suíço. Tais atividades podem ser indiciadas como espionagem.

Entretanto, Chalker encontrou um de seus contatos mais próximos, um alto funcionário do Catar chamado Ali Al-Thawadi, em Zurique. Seu nome de código era “Shepherd”. Ele é o chefe de pessoal do atual irmão do Emir, Mohammed bin Hamad bin Khalifa Al Thani, também conhecido como MBH.

Além disso, dois jovens tinham laços estreitos com Chalker na operação de espionagem em nome do Catar: Ahmad Nimeh, oficialmente um consultor para a oferta do Catar, e um catariano chamado Ahmed Rashad. Ambos os homens têm conexões com uma misteriosa empresa sediada em Doha, chamada Bluefort Public Relations. Nimeh estava ligado às chamadas “operações negras” relacionadas com a Copa do Mundo pelo jornal britânico The Sunday Times em 2018. Nimeh é genro de Patrick Theros, o ex-embaixador dos EUA no Catar. Outro parceiro próximo de Nimeh, Nikos Kourkoulakos, estava oficialmente trabalhando para a candidatura à Copa do Mundo do Catar.

De acordo com o registro de empresas, o colega de Nimeh, Ahmad Rashad, é o acionista majoritário da Bluefort Public Relations.

A investigação da SRF descobriu que uma das principais pessoas para a Copa do Mundo, Hassan Al Thawadi, supervisionou a operação de espionagem em nome do Catar. Ele foi o CEO da oferta bem sucedida da Copa do Mundo e é o atual secretário geral do Comitê Supremo, um órgão que organiza a Copa do Mundo no Catar.

A FIFA aparentemente permaneceu em grande parte alheia à operação de espionagem. O ex-presidente da organização, Sepp Blatter, disse em uma entrevista à SRF: “Que havia um caso de espionagem organizada na FIFA, o que me surpreendeu. E isso é alarmante”. Vários documentos mostram que Blatter era de grande interesse para os espiões. Eles mencionam, por exemplo, que os “planos e intenções” de Blatter deveriam ser conhecidos com antecedência.

Chalker e a Global Risk Advisors estão atualmente enfrentando um processo civil em conexão com atividades similares alegadas. A ação foi movida pelo aliado do ex-presidente americano Donald Trump, Elliott Broidy. Dados privados de Broidy foram divulgados aos jornais em 2018, e ele está acusando Chalker e sua empresa de um ataque de hacking em nome do Catar. Chalker nega todas as acusações. A ação judicial ainda está pendente.

Câncer do futebol mundial

Havia uma figura no futebol mundial que parecia suficientemente importante para os espiões do Catar que lhe dedicavam um projeto inteiro: “Projeto Riverbed”. O nome de código foi usado para o representante do futebol alemão Theo Zwanziger.

De acordo com documentos obtidos pela SRF, o Catar investiu 10 milhões de dólares na espionagem e influência de Zwanziger. A Associated Press informou o mesmo número nesta primavera.

Zwanziger havia servido como presidente da DFB, a Federação Alemã de Futebol, até 2012. E como membro do Comitê Executivo da FIFA até 2015 e, portanto, um funcionário do futebol extremamente influente, associando-se a figuras poderosas na política mundial, ele era uma voz crítica e provocadora contra o Catar. Em certo momento, ele chamou o Catar de “câncer do futebol mundial”.

O Catar queria acabar com isso. Segundo documentos, foi construída uma rede em torno de Zwanziger, formada por pessoas que deveriam influenciá-lo em benefício do Catar.

A fim de neutralizar Zwanziger, os espiões se baseavam em métodos de inteligência, como os documentos especificam.

Eles mencionam as “operações negras”. Também na mira deles estava a “Família Riverbed” – ou seja, a família de Zwanziger. Os agentes da Global Risk Advisors aparentemente construíram relacionamentos com indivíduos que eram próximos ao Zwanziger. Eles criaram uma rede de “ativos, fontes e contatos” que estavam ativos nos cinco continentes, trabalhando para influenciar Zwanziger.

Zwanziger deveria ser apresentado persistentemente com uma mensagem: “A Copa do Mundo de 2022 no Catar é boa para o mundo”.

A fim de salvar a Copa do Mundo, o Catar queria críticos silenciosos. Os esforços da operação não falharam completamente em ter um efeito sobre Zwanziger. Ele foi alinhado dentro da FIFA, como ele diz hoje. Ele liderou um grupo de trabalho que pressionou por mais direitos humanos e menos críticas ao Catar. Em uma entrevista à SRF, ele disse: “Houve uma série de pessoas que me guiaram nessa direção. É claro que isso era do interesse do Catar para provocar precisamente esta mudança de pensamento”.

Mas os esforços não tiveram o efeito pretendido em seus pontos de vista, segundo Zwanziger. Na entrevista, ele disse: “O que eles subestimaram, entretanto, é que eu não desisti de minha opinião no processo. Essa copa foi – como eu disse uma vez – um câncer do futebol mundial. De lá vieram muitas correntes que prejudicaram o futebol mundial. Eu ainda tenho essa opinião hoje”.

No que diz respeito à operação de espionagem contra ele, Zwanziger pensa que a FIFA foi obrigada a agir. Ele disse: “Isto é um escândalo. Deveria ser assumido por aqueles que estão no comando. O presidente da FIFA, Infantino, seria o primeiro. Mas ele não fará isso, é claro, porque ele é um vassalo do Catar”. 

A FIFA e Gianni Infantino se recusaram a comentar.

Sindicatos na mira

A Confederação Sindical Internacional (ITUC) apresentou outro problema para o Catar. Durante anos, a federação sindical, que inclui 200 milhões de membros, havia levantado repetidamente questões com relação à Copa do Mundo no Catar. E trabalhou para garantir que o sofrimento dos trabalhadores do Catar fosse levado à atenção do mundo e comovesse as pessoas.

O sindicato tornou-se vítima de um ataque cibernético no final de 2015. Alguém havia copiado a conta de e-mail da então porta-voz da mídia para o secretário geral. E os e-mails logo apareceram – em uma versão alterada, segundo o sindicato – na mídia.

O ataque trouxe as impressões digitais da Global Risk Advisors. A SRF obteve um documento, no qual a Global Risk Advisors identifica o sindicato como um problema igualmente grave para o Catar como a FIFA ou o Conselho de Cooperação do Golfo – um importante grupo de países em nível diplomático.

Os espiões também elaboraram uma rede detalhada de relacionamentos de pessoas que trabalham para o sindicato e de que forma estavam ligados à FIFA. Este documento menciona a porta-voz da mídia, que foi hackeada.

Atenção do FBI

Embora nunca tenha jogado uma partida de futebol profissional em sua vida, Sunil Gulati é uma das figuras mais importantes do futebol americano. Ele começou carregando as toalhas para os membros da equipe nacional júnior, antes de avançar para o cargo de presidente da Federação de Futebol dos Estados Unidos. Durante décadas, ele foi o indivíduo mais influente no futebol norte-americano. Fotos tiradas naqueles dias o mostram com Barack Obama, Bill Clinton, ou Joe Biden.

No auge de seu poder, Gulati foi espionado, seu computador foi invadido, aparentemente sem ser notado. As evidências do ataque a Gulati parecem a princípio pouco expressivas: uma pasta digital comum

No entanto, a pasta contém aproximadamente 800 arquivos, todos eles roubados do computador de Gulati. O hacker parece ter copiado todos os arquivos em PDF, Word, PowerPoint e Excel naquele computador. E essas cópias encontraram seu caminho para a SRF.

Os arquivos incluem documentos confidenciais, tais como o contrato de trabalho do então treinador nacional dos EUA Bob Bradley, bem como cartas de e para Gulati e outros funcionários da FIFA. O hack não poupou a vida privada de Gulati. Há um livro de fotos nos arquivos, por exemplo, documentando os anos de infância de Gulati, e há dados de saúde.

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A minuta do contrato com o novo técnico nacional americano Bob Bradley contém todos os detalhes de emprego. SRF

Gulati foi um concorrente direto do Catar dois anos antes, durante o processo de licitação da Copa do Mundo. Ele foi presidente da licitação americana para a Copa do Mundo de 2022, durante a qual a Global Risk Advisors se interessou por ele e preparou um dossiê pessoal de várias páginas sobre ele.

Os metadados mostram que os últimos arquivos de Gulati foram editados na primavera de 2012. O hack, portanto, presumivelmente ocorreu apenas semanas após o ataque a Hargitay. Membros da FIFA falaram para considerar Gulati como um crítico do Catar. 

Não há dúvida de que alguém cuja identidade ainda não está clara queria saber o que estava no computador de Gulati. E que eles não estavam relutantes em lançar um ataque cibernético contra um cidadão americano, embora o FBI processe estritamente os crimes cibernéticos.

A passividade das autoridades suíças

Os agentes espionaram o mundo do futebol em nome do Catar durante dez anos. A SRF descobriu que o Ministério Público de Zurique sabia de uma suposta atividade da rede de espionagem desde o início. Eles estavam cientes do hack no computador de Peter Hargitay desde 2012 – quando os agentes lançaram suas operações pela primeira vez. E era óbvio que o caso Hargitay era um grande negócio.

Entretanto, nada aconteceu em relação às investigações do Ministério Público. Os promotores omitiram ações de investigação óbvias. O exemplo mais marcante disto diz respeito ao CEO da empresa indiana Appin Security, que havia sido considerado suspeito no caso. O promotor perguntou inicialmente ao CEO se ele estaria disposto a responder perguntas a respeito do caso. Um advogado informou ao promotor que o empresário estaria disposto a fazer isto por escrito. Mas então o promotor simplesmente não enviou nenhuma pergunta. Ainda não está claro o porquê.

Eventualmente, o Ministério Público encerrou o caso oito anos depois por falta de vias de investigação adequadas. O Ministério Público de Zurique disse em uma declaração à SRF que, por razões legais, eles não podiam comentar sobre suas próprias atividades no processo. Um porta-voz escreveu que haviam sido feitos esforços abrangentes para a investigação arquivada que havia sido realizada dentro das disposições legais. O porta-voz disse ainda: “Não houve exercício de influência sobre nenhum membro do Ministério Público”.

O ex-diretor executivo vive hoje na Suíça. No outono de 2020, logo após o encerramento da investigação, ele comprou uma vila impressionante. Segundo o cartório de registro de imóveis, ele pagou CHF13,5 milhões à filha de um oligarca ucraniano na transação. Ele agora se apresenta como um renomado investidor e teve sua foto tirada para a edição em francês da revista suíça Bilanz.

O que ele teria testemunhado se tivesse sido convidado a fazer em 2013? Teria a história tomado outro rumo? Será que os espiões do Catar teriam redobrado seus esforços por medo de serem expostos? Não haveria resposta a tais perguntas.

O pontapé inicial da Copa foi dado em Doha. Milhões de pessoas estão agora de olho no Catar. Mas talvez elas não vejam as coisas da maneira que o Emir sempre desejou. Se a Copa do Mundo de 2022 vier a ser uma celebração do futebol, ela está manchada por agentes de inteligência, mentiras e manipulações. 

A investigação original da SRF pode ser encontrada aquiLink externo.

(Adaptação: Clarice Dominguez & Fernando Hirschy)

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Adaptação: Clarice Dominguez & Fernando Hirschy

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