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“Representação” curda-síria causa celeuma em Genebra

Combattant kurde en Syrie
É difícil ignorar esses combatentes, especialmente curdos, que contribuíram para a derrota do Estado Islâmico e ainda mantêm europeus em campos de detenção. Keystone / Uncredited

Embora não seja reconhecida por nenhum Estado e não participe das negociações de paz, a entidade autônoma do nordeste da Síria busca estar presente em Genebra. A Turquia está furiosa e a Suíça, desconcertada.

Trata-se de um escritório simples num prédio modesto da cidade de Genebra. O anúncio de sua abertura no último dia 9, contudo, acarretou um turbilhão diplomático: agora, a Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (AANES) está ali representada, “com o objetivo de fortalecer as relações com os atores suíços, principalmente devido às reuniões que estão sendo realizadas em Genebra para resolver a crise síria”, diz seu diretor, Hekmat Ibrahim. Ele acrescenta que a iniciativa não é a primeira na Europa – várias representações já foram abertas em países como França, Alemanha e Suécia, assim como no Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo).

A questão, no entanto, é tão delicada quanto ambígua: o que significa a “representação” de uma entidade territorial que não é reconhecida por nenhum Estado? A AANES foi criada em 2018, depois que a região ganhou sua autonomia em 2012, em meio à guerra civil síria. Ela conta com uma população entre quatro e cinco milhões de habitantes – majoritariamente curdos, mas também árabes, assírios, cristãos, turcomanos e yazidis – e ocupa quase 30% do território sírio. Através de seu braço armado, as Forças Democráticas Sírias (FDS), ela mantém uma estreita cooperação militar com a coalizão internacional e com os EUA.

Após contribuir para a derrota do Estado Islâmico, a FDS se depara agora com a difícil questão do que fazer com seus prisioneiros de guerra. Os países europeus se recusam a aceitá-los de volta, com a exceção ocasional de algumas mulheres e crianças, cuja repatriação foi liberada aos poucos no meio do ano. De acordo com um relatório da Human Rights WatchLink externo, em março de 2021 havia quase 63.400 mulheres e crianças nos campos de refugiados, além de 10 mil homens e 700 meninos, entre 14 e 17 anos, nas prisões, somando um total de 58 nacionalidades.

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Gestrandet im ehemaligen Kalifat

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Diferentes pontos de vista

Para Berna, a situação é clara: não se trata de uma representação diplomática, e sim de uma associação tal como é prevista pelo Código Civil suíço, cujas disposições não são muito restritivas, exceto no que diz respeito à criação de uma associação com finalidades ilegais.

“Para a Suíça, é uma associação, mas, para os curdos e outros membros da entidade, é uma delegação. Estamos diante de diferentes pontos de vista”, destaca Jordi Tejel, professor da Universidade de Neuchâtel e especialista na questão curda.

Para o especialista, trata-se de uma espécie de política de fato consumado, de pequenos passos para que a AANES seja reconhecida como interlocutora pela Suíça e pelos países europeus, bem como pela ONU e pela Genebra Internacional. “É a mesma estratégia que os curdos iraquianos adotaram a partir dos anos 90. Eles criaram em Berna uma espécie de consulado, aonde chegaram até mesmo a emitir vistos. São coisas que não são nomeadas, mas que criam uma realidade. Mas acredito que dessa vez o objetivo [da representação] é mais ter uma voz que ser reconhecida como um Estado, já que não é um.”

Turquia furiosa

A Turquia, contudo, reagiu muito mal à aberturaLink externo dessa “representação”. Embora a administração autônoma não seja composta apenas por curdos, ela é, de fato, liderada por um partido curdo, o PYD (Partido de União Democrática). Segundo a Turquia, o PYD é próximo do PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, uma organização política armada de curdos que atua principalmente na Turquia, mas também na Síria, Irã e Iraque. A Turquia, como muitos outros países, a considera uma organização terrorista.

“A Turquia se recusa a reconhecer as Forças Democráticas Sírias, das quais o YPG [o braço armado do PYD] faz parte. Ela acusa a Suíça de apoiar o PKK e, logo, o terrorismo, mas a realidade é bem diferente”, diz Mehmet Balci, cofundador e codiretor da Fight for Humanity, uma ONG sediada em Genebra que promove o direito humanitário e os direitos humanos na região.

“É absolutamente escandaloso que a ONU não permita que a AANES participe das negociações por causa da oposição turca, enquanto todos os grupos terroristas e islâmicos participam”, afirma Marco Sassoli, professor de direito internacional humanitário na Universidade de Genebra. Isso apesar de ela ser “um dos atores governamentais que melhor se comportam, são mais organizados e contam com a administração mais estável. A AANES se esforça, tenta julgar os prisioneiros de guerra e detê-los sem deixá-los morrer de fome. Até onde sei – mas não estou em campo – ela se comporta melhor do que os outros”.

Uma administração bem organizada, que coordena diversas comissões que contemplam desde a saúde até a educação, a defesa e as relações exteriores, universidades, mais de 700.000 estudantes, dezenas de hospitais, municípios, prisões e a administração da justiça, explica Balci.

Difícil transferência de prisioneiros

Todavia, Jorgi Tejel observa que o YPG foi acusado de recrutar menores de idade e marginalizar outros partidos curdos para tornar-se a força hegemônica. “O paradoxo é que o projeto da administração é estar aberta a todas as etnias e religiões e promover a igualdade de gênero, mas somente para quem concorda com o programa do partido. Aqueles que não aderem à sua ideologia não estão presentes na administração, nem na esfera regional nem na comunal. É um paradoxo, mas, no final, em todas as revoluções, os revolucionários estão sempre certos…”

“Quer seja lá ou aqui, temos que dialogar com essas pessoas, porque elas estão detendo cidadãos suíços que a Suíça não quer aceitar de volta” Marco Sassoli, professor de direito internacional humanitário

“Quer seja lá ou aqui, temos que dialogar com essas pessoas, porque elas estão detendo cidadãos suíços que a Suíça não quer aceitar de volta”, afirma Sassoli. “No entanto, é algo muito delicado do ponto de vista jurídico, já que, se essas pessoas fossem julgadas por um Estado, poderiam ser transferidas para cumprir sua sentença na Suíça. Porém, se forem julgadas por um tribunal de um ator não estatal, como a AANES, e extraditadas para a Suíça, elas podem solicitar a sua libertação, uma vez que a condenação não é reconhecida pela lei suíça.”

Para Hekmat Ibrahim, diretor da representação da AANES, “há muitas problemáticas comuns que nos unem e que compartilhamos com a comunidade internacional, particularmente a questão do combate ao terrorismo e a consolidação da segurança e da estabilidade”. O terrorismo se tornou uma ameaça internacional e, para acabar com ele, é necessária a participação de todos, inclusive da administração autônoma, que representa muitos atores sírios, disse ele.

“Em segundo plano, há a questão da autodeterminação curda, que terá de ser resolvida em algum momento, o que não significa necessariamente a criação de um Estado independente. Enquanto isso, os Estados Unidos abandonaram os curdos como abandonaram os afegãos”, diz Sassoli.

Adaptação: Clarice Dominguez

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