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O fanatismo religioso de um sapateiro de Zurique custa-lhe a vida

ilustração de Klaus Hottinger
Klaus Hottinger, o primeiro protestante da Suíça a ter sido decapitado, em uma ilustração de 1866. akg-images

Em uma tarde no final de setembro de 1523, dois homens se encontram perto do armazém Kornhaus, em Zurique. Um deles é Heini Hirt, o moleiro de Stadelhofen, o outro é o sapateiro Klaus Hottinger, um dos mais fanáticos seguidores do reformador Ulrich Zwingli.

“E aí, Hirt, quando você vai finalmente tirar os seus ídolos da parede?”, alfinetou Hottinger referindo-se ao grande crucifixo de madeira que Heini Hirt tinha colocado em frente ao seu moinho. O moleiro conhece a exigência dos reformadores, de destruir todas as imagens de santos, mas não quer saber de cumpri-la. Os santos não lhe fizeram nada de mal, desconversa ele, além disso ele não é um “letrado” para saber das coisas, o governo é que tem a responsabilidade de decidir o que deve acontecer com as imagens.

Hottinger não desiste e intimida o moleiro: se ele fosse um bom cristão teria de remover o crucifixo. Finalmente eles chegam a um acordo: Hirt doa o crucifixo para Hottinger e diz que ele faça o que quiser com o objeto religioso.

Escândalo perfeito

No dia seguinte, Klaus Hottinger, com a proteção de quatro conselheiros comunais simpatizantes da Reforma, vai até a cidade e, com a ajuda do alfaiate Hans Ockenfuss e do tecelão Lorenz Hochrütiner, derruba o crucifixo. O escândalo foi perfeito, a cidade toda só falava neste episódio. Como o sacrilégio é um crime punido com a pena de morte, o Conselho Municipal ordena a prisão dos autores da profanação. 

Não era a primeira vez que Hottinger entrava em conflito com a lei. Ele era um baderneiro notório que gostava de fazer provocações em nome da Reforma. A primeira vez que ele foi autuado foi durante o período de jejum em 1522, no primeiro domingo da quaresma, quando participou do profano episódio conhecido como o “caso das salsichas”.

Um grupo de simpatizantes da Reforma se reuniu na casa do dono da Editora Froschauer para realizar a provocação de comer durante o jejum. Hottinger também não fazia questão de esconder que rejeitava a missa e que queria vê-la substituída por uma comunhão realizada pelos fiéis. Durante uma missa realizada na Igreja São Pedro (St. Peterskirche) ele disse para alguém no banco ao lado: “quando um padreco vai rezar no altar, era melhor que tivesse uma concha cheia de imundícies para espalhar pela boca”.

Em outra ocasião, ele blasfemou que rezar diante do altar era “como ver um camponês evacuar atrás da cerca”. Por fim, ele chegou a dizer críticas, alto e bom som, durante a missa, o que lhe custou uma advertência judicial.

Ajudado por Hans Oggenfuss e Lorenz Hochrütiner, Klaus Hottinger derruba a cruz de Stadelhofen. Todos os três participaram da ruptura do jejum. Bullingers Reformationschronik, 1605

 Muitas inimizades

O seu entusiasmo pela Reforma fez com que Hottinger angariasse muitos desafetos em Zurique. O açougueiro zombava dele chamando-o de “senhor doutor”, e ameaçava colocar-lhe um chapéu de bobo da corte.

Certa vez, reuniu-se em frente à sua casa um grupo de jovens embriagados que gritavam canções de deboche antissemitas e com isso classificavam-no como seguidor de uma religião falsa. “Você, Hottinger-satanás!”, gritavam, enquanto um deles fazia muito barulho tocando o sino da porta da casa, “levanta, pega o teu herege e vai com ele para a escola de heresias”. 

Hottinger, que estava deitado, brincava com a ideia de levantar-se, vestir a sua armadura e dar uma bela lição naqueles baderneiros. Acabou deixando pra lá, mas registrou queixa no Conselho Municipal e ameaçou agir pelas próprias mãos da próxima vez. 

Enquanto Hottinger aguardava o processo na prisão, a Reforma aconteceu. As muitas destruições de imagens fizeram com que o governo iniciasse uma discussão pública sobre teologia. Esta discussão serviria para esclarecer como se deveria agir em relação à missa e em relação à exibição de imagens de santos.

Cerca de 900 pessoas participaram destas discussões. Mais de trezentos eram sacerdotes. Isso demonstra que as autoridades eram complacentes com as reivindicações reformistas, por outro lado, as contradições entre os renovadores também tornavam-se cada vez mais evidentes. Enquanto Zwingli apoiava a atitude cautelosa das autoridades, os amigos de Hottinger reivindicavam uma atitude mais radical.

Regula Bochsler estudou história e ciências políticas na Universidade de Zurique. Ela trabalhou por muitos anos como jornalista na televisão suíça. zvg

Depois de ficar preso por seis semanas, Hottinger é interrogado no tribunal. Ele justifica o sacrilégio que cometeu dizendo que iria vender a madeira do crucifixo e com o dinheiro compraria comida para os pobres. O argumento de que não se deveria gastar dinheiro com estátuas de santos, mas em vez disso alimentar os pobres era muito bem visto pelos reformadores, mas não era tão admirado pelos juízes. Mesmo os conselheiros comunais, que tinham prometido apoio a Hottinger, acabaram virando as costas para o caso. O autor do ato profano é expulso do território de Zurique por dois anos, e a explicação é que “o seu ato causou muita repulsa, animosidade e falatório entre os religiosos e a população”. 

Condenação à morte

Hottinger passa então a fazer o que muitos dos defensores da Reforma fazem. Ele sai a pregar de cidade em cidade e lança críticas à igreja católica. Mas, com suas ideias rebeldes e seu jeito brusco de expô-las, acaba insultando muitas pessoas. “A senhora acredita nos santos?”, pergunta ele para uma jovem. Quando ela responde que sim, ele passa a agredi-la verbalmente: “Então a senhora é pior do que uma prostituta. A senhora é uma prostituta dos santos”. 

Em fevereiro de 1524, Hottinger é preso em Constância, e o advogado de Baden exige a sua extradição, alegando que ele era um aliado de satanás. Amigos e parentes de Hottinger temem o pior e solicitam ao Conselho de Zurique que interfira a favor do detento. O pedido de ajuda não obtém eco. Hottinger é enviado para Lucerna e lá é condenado à morte por questionar a legitimidade da santa missa e a invocação dos santos. 

No dia 9 de março de 1524, Klaus Hottinger é levado para fora da cidade, para o patíbulo, e decapitado. Ele é o primeiro cidadão suíço que paga o seu afastamento da doutrina católica com a própria vida. Mas não é o último.

Adaptação: Fabiana Macchi

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