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A difícil reconciliação entre armênios e turcos

Manifestação de protesto, dia 16 de outubro em Yerevan, contra a ratificação pelo Parlamento armênio dos acordos assinados em Zurique. Keystone

A diplomacia suíça teve um papel importante nos acordos entre a Turquia e a Armênia, firmados em 10 de outubro, em Zurique, que visam a normalização das relações entre os dois países, conturbadas há mais de um século.

A entrada em vigor desses acordos depende da ratificação dos parlamentos armênio e turco. Mas há oposição nos dois países e da diáspora armênia, como analisa nesta entrevista o escritor e teólogo Aharon Sapsezian, residente na Suíça.

Swissinfo.ch: É difícil analisar friamente os acordos para os armênios da diáspora?

Aharon Sapezezian: Sou brasileiro, mas de origem armênia. Para mim, falar desse tema com isenção de ânimo é quase impossível. Trago na alma as cicatrizes de uma tragédia que quase apagou da face da terra um povo milenar, o povo das minhas raízes.

Swissinfo.ch.: São lembranças de sua própria família?

AS: Cresci aos pés de minha avó que foi testemunha ocular do Genocídio de 1915. Ela nos falava, entre soluços, de quando a soldadesca turca invadiu sua casa em Marash e, às coronhadas, levou embora seus quatro filhos. Anos depois, reencontrou um deles, que viria a ser meu pai. Os outros três desapareceram para sempre. Seu ódio pelos turcos era visceral e implacável. Encarnava todo o fel da turcofobia própria da sua geração. Quando lhe dizíamos “vovó, o Evangelho nos ensina que devemos perdoar até aos nossos inimigos”, ela respondia: “aos inimigos sim, mas aos turcos jamais!”.

Swissinfo.ch: Mas a origem dos conflitos é muito mais antiga?

AS: As animosidades vêm desde o século 16 quando os turcos otomanos invadiram e ocuparam a Anatólia oriental. Essa porção da Ásia Menor sempre foi terra histórica da antiga nação armênia. Desde há muito os armênios criaram aí uma civilização, construíram cidades, plantaram vinhas, ergueram igrejas e mosteiros, prosperaram e viveram felizes. Mas tudo mudou sob jugo do ocupante.

Foi uma longa era de coabitação forçada entre turcos e armênios. Por vezes pacífica, essa coabitação era quase sempre tensa e de mútua desconfiança.

As coisas pioraram a partir de fins do século 19 quando o vasto Império Otomano dava sinais de esgotamento. A corrupção e os desacertos dos governantes aceleravam a degringolada. Movimentos independentistas eclodiam desde os Bálcãs até a Anatólia. Búlgaros, macedônios, gregos e armênios reclamavam suas terras ancestrais. E as potências ocidentais já faziam planos de repartição dos territórios do império falido.

Swissinfo ch.: Mas como se chegou ao massacre já que a termo genocídio ainda não existia?

AS: O partido ultranacionalista do Jovens Turcos, que se instalara no poder em 1908, havia decidido salvaguardar, custasse o que custasse, a posse da Anatólia oriental. E já planejava criar um novo império sobre as ruínas daquele que estava ruindo. Mas, desta vez, um império panturco, que abrangeria as nações turcófonas do oriente médio e da Ásia central, passando pelo Azerbaijão. Um império só de povos turcos, etnicamente “purificado”.

A Grande Guerra de 1914-1918 foi a ocasião ideal para a perpetração da “solução final” do problema armênio. Quem hoje não conhece a tragédia que se abateu sobre os armênios em 1915? Ainda assim, os descendentes daqueles armênios não se cansam de repeti-la, de clamá-la aos quatro ventos. Tanto é que toda vez que se fala dos armênios, a associação é feita com a hecatombe que os dizimou.

Restaram os poucos sobreviventes, que se espalharam mundo afora em busca de abrigo. Estes e seus descendentes de hoje são os que denunciam o crime hediondo de que foram vítimas seus pais. Estes são os que hoje clamam por justiça. Estes constituem a “diáspora armênia” que reage com incontida emoção a qualquer tentativa de reconciliação com a Turquia.

A palavra “genocídio” não existia ao tempo dos fatos aqui mencionados. Ela foi criada em 1944 pelo jurista Raphael Lemkin para caracterizar a shoah dos judeus. E se os armênios de hoje se servem dela e lutam pelo seu reconhecimento universal, é porque ela descreve bem a tragédia do seu povo.

Swissinfo.ch:Até no Brasil, os armênios se organizam?

AS: No Brasil, onde os cerca de 12 mil brasarmênios constituem uma das menores células da diáspora, houve uma imediata tomada de consciência coletiva em torno da questão. Um “fórum de debates” foi criado em São Paulo e líderes comunitários, intelectuais e chefes religiosos fizeram questão de exprimir-se a respeito.

O clamor emocional da diáspora armênia deve ter pegado de surpresa o próprio Presidente Serge Sarkissian que se sentiu no dever de empreender um périplo pelas principais comunidades dessa diáspora para “explicar os Protocolos” e tentar ganhar sua adesão a eles. Não convenceu muita gente! Ao contrário, quando pediu que os armênios da diáspora fossem mais racionais e menos emotivos ao lerem os Protocolos, não percebeu que estava pedindo o impossível.

A diáspora não ocultou sua imensa decepção e reafirmou sua determinação de repudiar aqueles documentos e tudo fazer para que a próxima etapa do processo, a saber, sua ratificação pelos parlamentos nacionais dos dois países, não se concretize.

Os Protocolos não fazem, por exmeplo, a mínima alusão a reparações morais e materiais pela ocupação das terras históricas da Anatólia.

Swissinfo.ch: Quais são exatamente essas reivindicações territoriais?

AS: Vêm do Tratado de Sevres, de 1920, assinado pelas potências ocidentais e pela Turquia, no qual os massacres de 1915 foram um dos temas principais. Esse Tratado estipula com todas as letras que cerca de 52.000 km2 (mais de dez vezes o território da atual República da Armênia) das antigas terras armênias da Anatólia devem reverter aos armênios para aí se implantar uma Armênia Independente.

Esse Tratado foi repudiado por Kemal Ata Turk, o novo senhor da Turquia, proclamador do princípio “a Turquia para os turcos”. Mas, jamais esquecido ou renunciado pelos armênios da diáspora, herdeiros diretos dessa Armênia sacrificada.

Para os quatro milhões de armênios dessa diáspora, o reconhecimento do genocídio de 1915 e suas implicações de reparação territorial não podem ser escamoteados em qualquer acordo de normalização que a Armênia venha a fazer com a Turquia. Que os governantes da Armênia tenham como prioridade vital a abertura das fronteiras com seu vizinho, é compreensível e legítimo. Mas que isso se faça a expensas da justiça entre os povos e dos direitos inalienáveis e perenes da nação armênia, jamais.

Tudo indica que o acalorado debate intra-armênio sobre essa questão continuará. E podemos antever o quão longa será a marcha da difícil reconciliação entre armênios e turcos. Parece até que a síndrome anti-turca da minha avó continua reverberando em nossos dias!

Claudinê Gonçalves, swissinfo.ch

O primeiro protocolo: define o princípio do restabelecimento das relações diplomáticas e suas consequências: o respeito da integridade territorial e reconhecimento das fronteiras atuais.

O segundo protocolo: trata do desenvolvimento econômico, técnico, cultural e histórico das relações entre os dois países. Em particular, a questão da abertura da fronteira turco-armênia e o estabelecimento de uma comissão de especialistas para estudar o desaparecimento(genocício) de armênios da Anatólia em 1915.

Insegurança: o primeiro-ministro turco repetiu que não abriria as fronteiras enquanto o conflito do Nagorno Karabakh não for resolvido. Pressões armênia tentam convencer o presidente Serge Sargsian a adicionar uma cláusula de rescisão aos protocolos, que obrigaria a Turquia a abrir a fronteira no prazo de dois meses e meio após a assinatura em Zurique em 10 de outubro.

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