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Até que ponto Bill Gates influencia a OMS?

Bill Gates
A Fundação Bill e Melinda Gates é hoje o segundo maior doador da OMS. Keystone / Gian Ehrenzeller

A assembleia-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) inicia em 24 de maio de 2021. Analistas acreditam que haverá apelos a reformas, sobretudo devido ao seu papel durante a pandemia. Uma das questões abertas: o setor privado como financiador do órgão, especialmente a Fundação Bill e Melinda Gates, hoje o segundo maior doador.

Embora a OMS seja dirigida e financiada pelos países-membros, ela também depende de doadores privados. Um deles é a Fundação Gates, o maior doador privado e responsável por cerca de 10% do orçamento do órgão – ao mesmo tempo o segundo maior depois dos EUA. Se as contribuições americanas fossem suspensas, como ameaçou o ex-presidente Donald Trump, o órgão da ONU teria se encontrado na posição sem precedentes de ter a Fundação Gates como o principal doador.

“Sem seus recursos, muitas das metas globais de saúde estariam em risco, dentre elas o programa de erradicação da poliomielite”, explica Lawrence Gostin, diretor do Instituto de Direito Sanitário Nacional e Global O’Neill, ligado à Universidade de Georgetown, nos EUA.

Embora Gostin, que também é diretor do Centro Colaborador da OMS em questões de direito sanitário, considere positivo a “generosidade e engenhosidade” de filantropos como a Fundação Gates, ele questiona a dependência excessiva do órgão internacional de doações privadas. “A maior parte do financiamento que Gates fornece à OMS está vinculada a agendas específicas da fundação. Isso significa que a própria OMS não pode estabelecer prioridades de saúde globais e sofre muita influência de uma entidade privada sem responsabilidade perante a sociedade. Ao contrário dos países, a Fundação Gates não é obrigada a prestar contas das suas atividades.”

Até que ponto influente?

Chris Elias, presidente da divisão de Desenvolvimento Global da Fundação Gates, admite que, ao longo dos anos, houve “críticas e alertas relacionados à nossa influência dentro da OMS”. Porém, durante uma palestra onlineLink externo realizada pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais em Genebra, Elias retrucou. “Importante é ver que o programa de trabalho global da OMS é determinado pelos próprios países-membros. Temos estratégias que são desenvolvidas e aprovadas pelo nosso conselho de administração. Por isso apoiamos áreas do programa que estão alinhadas com as nossas estratégias, o que nos fez ser o segundo maior financiador do órgão.”

Em parte, Elias aceita as críticas. “Provavelmente alguns projetos da OMS são melhor apoiados do que outras, pois não temos uma estratégia para tudo o que envolve a saúde global. Essa é uma vulnerabilidade que a direção da OMS precisa resolver.”

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Influência documentada

Algumas das prioridades se sobrepõem, seja na erradicação da poliomielite ou na imunização. No entanto, questiona-se se essas metas mais mensuráveis poderiam levar a falta de financiamento de outras áreas como o fortalecimento dos sistemas de saúde nos países em desenvolvimento.

“Essa é uma preocupação bem documentada”, escreveu Linsey McGoey, professora de sociologia na Universidade de Essex (Grã-Bretanha) no livro “Não existe nada gratuito: a Fundação Gates e o preço da filantropia” (no original em inglês: No Such Thing as a Free Gift: The Gates Foundation and the Price of Philanthropy), onde questiona o papel da fundação na saúde pública global.

Linsey considera que o magnata americano tem um interesse ideológico em ver resultados mensuráveis para mostrar que sua “filantropia” funciona. “Acredito que isso se explica devido ao seu interesse pessoal de ver resultados rápidos, o que ajudaria a reforçar sua própria reputação”, avalia a acadêmica.

Alguns funcionários dos serviços nacionais de saúde discordaram das prioridades de Gates, mas há relutância em criticá-lo por medo de perder seu apoio. Essa autocensura tornou-se tão generalizada que o jornal americano New York Times (NYT) chega a denominá-la “Bill Chill” Link externo(n.r.: Calafrios do Bill”.

O papel pioneiro da Fundação Gates na promoção da “igualdade de condições em matéria de saúde” no mundo é amplamente reconhecido. Ela tem uma atuação considerável no combate ao Covid-19: dentre outros participa do programa Covax, das Nações Unidas, cujo objetivo é garantir que todos os países tenham acesso à vacinação. A fundação também fornece financiamento para Gavi (Aliança de Vacinas) e a coalizão para preparação diante das epidemias, Cepi, ambas iniciativas que Gates ajudou a fundar e fazem parte da aliança Covax.

De acordo com o NYT, a OMS queria assumir uma liderança mais forte na aliança, porém foi impedida pela Fundação Gates. “Ouvi falar disso”, afirma Gostin. “Se for verdade, seria desanimador, já que a OMS deveria assumir a liderança global do programa”. Mas ressalta: “Importante é reconhecer que fundações como a de Gates não só fornecem dinheiro, mas também criatividade e inovação. De forma geral são uma força para o bem.”

Defendendo patentes

McGoey não concorda e cita a defesa de patentes por parte de Bill Gates, especialmente no que diz respeito às vacinas contra o Covid-19.

Uma proposta da África do Sul e Índia foi feita na Organização Mundial do Comércio (OMC) pedindo a renúncia às patentes das vacinas de Covid-19, o que poderia ajudar a impulsionar a produção global de vacinas e sua distribuição nos países mais pobres. Uma proposta mais suave foi entregue à OMS. Porém as multinacionais, juntamente com alguns países – Suíça e EUA, dentre outros – continuam resistindo. “O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, defendeu a renúncia às patentes, mas ele provavelmente não conseguiu mudar a opinião de Bill Gates em relação à questão. Quem ele escuta? Com toda certeza não aos chefes da OMS e OMC. Porém sua própria autoridade não é algo que, para nós como comunidade global, queiramos confiar, dado seu próprio interesse em defender um sistema de patentes sobre o qual sua fortuna foi construída.”

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McGoey acha que a estratégia Gates não é tanto motivada pelo dinheiro, mas sim pela crença no mercado e nas relações estreitas entre farmacêuticas, empresas com fins lucrativos e os diferentes fornecedores de serviços de saúde. “Ideologicamente Gates está comprometido com a crença de que a comunidade empresarial é um ator superior quando se trata de fazer as coisas”, diz. “De fato, as empresas são mais eficientes, porém têm efeitos adversos quando falamos de oferecer medicamentos acessíveis, determinar preços e priorizar a saúde das pessoas em detrimento dos lucros. Portanto, o bilionário americano não percebe que existe um conflito entre a exploração privada e a saúde pública. Ele determinado a agir como se esse conflito não existisse.”

A professora de sociologia na Universidade de Essex diz que essa questão já havia sido colocada em evidência ao tratar de medicamentos antirretrovirais para HIV/AIDS, mas ficou muito mais clara com a pandemia de Covid-19. “Esse conflito pode ser visto da mesma forma como as farmacêuticas, que têm direitos exclusivos para fabricar as vacinas, não querem renunciar às patentes. Se não houvesse conflito entre a exploração privada e a saúde global, elas seriam mais flexíveis, o que não está ocorrendo.”

Fragilidade financeira

Mas por que a OMS é tão dependente do financiamento de Gates? “O órgão não tem outra escolha a não ser a aceitar o financiamento da sua fundação e de outras. “Os países-membros não aumentam há anos suas contribuições, o que as torna completamente defasadas em relação à amplitude do mandato da OMS”, diz Gostin.

O órgão da ONU reconhece o problema e diz que tenta encontrar uma solução. “Em termos de financiamento, o maior desafio enfrentado pela OMS é a falta de um financiamento sustentável suficiente”, diz Gostin por escrito.  “Isso deixa a OMS excessivamente dependente de seus principais doadores – de todos os tipos – e a falta de flexibilidade da maioria do financiamento da OMS dificulta a capacidade da organização de cumprir seu mandato”. Reconhecendo este desafio sistêmico, os países-membro da OMS criaram um grupo de trabalhoLink externo para analisar estas questões vitais e fazer recomendações ao comitê-executivo da OMS no início de 2022.”

“O fato de os países-membros financiarem apenas 23% do orçamento da OMS, obrigando-a a buscar em doadores privados, cria uma grande vulnerabilidade”, declarou Elias, na palestra online realizada pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais.

“Eu participo anualmente da assembleia da OMS e vejo que os países-membros sempre dão novos mandatos a ela, fixando novos objetivos. Porém o orçamento continuou o mesmo nos últimos 20 anos. Não é assim que deveríamos administrar os problemas da saúde do mundo. O ideal seria que os países financiassem a OMS e esta não precisasse mais dos recursos da Fundação Bill e Melinda Gates.”

Enquanto a OMS se prepara para a assembleia anual, Gostin gostaria de ver duas coisas: um grande aumento nas contribuições não-vinculadas dos países para a OMS e mais pressão internacional sobre as fundações privadas para que gastem mais em contribuições desvinculadas para a OMS, “em vez de exigir que o órgão execute tarefas idealizadas pelos seus líderes.”

Elias também coloca o ônus sobre a OMS: “Os países não serão capazes de quadruplicar suas contribuições em um dia, mas considero que precisam pensar uma forma de garantir um financiamento mais seguro e atingir progressivamente seus objetivos em tempos de aumento das contribuições. Se esta pandemia não mostrar a vulnerabilidade dessa estrutura, não sei quem poderia fazê-lo”.

McGoey diz que os países-membros têm o dinheiro e precisam se intensificar: “Eles têm recursos à disposição que poderiam ser investidos para garantir que seus futuros orçamentos nacionais não sejam consumidos para lidar com as consequências de uma pandemia de Covid. As futuras pandemias não vão desaparecer”. Portanto, é do próprio interesse dos países de aumentar suas contribuições à OMS e seu financiamento desse importante, realmente valioso, não perfeito, mas certamente essencial ator hoje.”

Adaptação: Alexander Thoele

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