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“Trata-se das percepções ocidentais e da nossa relação com esta arte”

"Como a Pátria começa" por Vladimir Dubossarsky e Alexander Vinogradov, 2006 Kunstmuseum Bern

O Museu de Belas Artes de Berna e o Centro Paul Klee estão lançando um olhar 100 anos para trás, desde a Revolução de Outubro de 1917, e fazem a crônica da história da arte revolucionária com uma pouco usual exposição chamada "A Revolução Morreu. Vida Longa à Revolução!". O impacto de dois movimentos artísticos surgidos dessa revolução estética e política continua a reverberar atualmente na arte mundial.

swissinfo.ch conversou com a curadora do Museu de Belas Artes de Berna, Kathleen Bühler, sobre a perspectiva unilateral do Ocidente, propaganda e arte “kitsch”, e o significado político das artes.

swissinfo.ch (Larissa M. Bieler) – A Revolução de Outubro de 1917 na Rússia sacudiu a sociedade russa. O regime czarista que sobreviveu por séculos entrou em colapso e acabou. Por que isso é um tema para um museu de artes suíço?

Kathleen Bühler – Não sacudiu apenas a sociedade russa. Sacudiu o mundo inteiro. Exibições temáticas são sempre uma boa oportunidade para olhar para trás a história e a história da arte para pensar sobre nossa relação com esse tema hoje. Quanto isso nos afeta como sociedade? A questão da ruptura entre o mundo socialista e comunista e o mundo capitalista impressiona novamente hoje. Há várias questões sobre este evento histórico que levaram a esta exposição.

swisinfo.ch – As forças políticas por trás de Trump e do Brexit veem a si próprias como líderes de um movimento de protesto internacional hoje. A ideia para esta exposição evoluiu a partir desta conexão atual?

Kathleen Bühler – Absolutamente. Nenhum museu de arte pode se limitar nos debates artísticos e históricos. A arte é o lugar onde a imaginação encontra espaço e onde a esperança busca expressão – seja com ou sem censura. Desde os anos 1930, o veredito clássico do Ocidente era que a arte stalinista, o Realismo Socialista, não é arte, mas mera propaganda, portanto kitsch. Eu acho que é importante levar esta arte seriamente e examinar exatamente onde – no âmbito desses programas organizados por cima – as pequenas expressões de liberdade podem ser identificadas, os lugares onde uma imagem pode dizer mais que mil palavras. E também identificar onde os artistas começam a articular seu ceticismo em relação à visão de mundo de seus líderes. 

swissinfo.ch – Naquele momento aconteceram na Rússia debates acalorados sobre o significado social e político das artes. A vanguarda russa era muito interdisciplinar e queria penetrar em todas as áreas da vida…

Kathleen Bühler – Em sua maioria, os artistas de vanguarda já estavam prontos para se envolver na transformação revolucionária da sociedade. Todos eles queriam contribuir para a mudança social e a emergência de um novo ser humano, uma nova vida e um novo meio ambiente.

swissinfo.ch – A arte se tornou muito comercializada – na Suíça também – e nós podemos ver que as grandes feiras estão longe da realidade. E se a arte é política, não é raro que ela seja punida por políticos…

Kathleen Bühler – Nosso sistema capitalista promove o mercado de arte e nele os objetos fetichistas de desejo são negociados. Mas paralelamente a isso, também fazem arte que não pode ser vendida, como as instalações ou trabalhos que intervêm no processo social, e é aqui onde as questões sociais realmente importantes são abordadas. Eu acredito que não existe arte que não seja política – até a arte abstrata é política. Mesmo um artista que faz uma arte apolítica, está agindo politicamente por não expressar opinião. Qualquer declaração feita em público tem uma natureza política. Trata-se de declarar valores e mostrar uma visão de mundo, compartilhá-la ou mesmo tentar influenciar alguém com ela.

A exposição

A exposição “A Revolução está Morta. Vida Longa à Revolução” no Centro Paul Klee e no Museu de Belas Artes de Berna coincide com o 100º aniversário da Revolução Russa. Ele acontece até o dia 9 de julho. 

swissinfo.ch (Igor Petrov) – Como foi o trabalho preparatório com os colegas russos?

Kathleen Bühler – Escolher as obras foi um pouco difícil porque os museus de arte russos trabalham diferentemente. Por exemplo, bases de dados online são pouco usuais, então você não pode simplesmente acessá-las e navegar. Nós tivemos que voltar àquilo que já foi mostrado no Ocidente. Em que pese isso, nós estamos mostrando uma fantástica seleção de obras de Alexander Deineka, por exemplo. Deineka nunca foi exibido antes na Suíça, não nesta escala e com trabalhos desta qualidade. Nós temos uma maravilhosa seleção de obras de Malevich. Estamos mostrando os trabalhos abstratos no Centro Paul Klee e a fase posterior, mais figurativa de sua obra, no Museu de Belas Artes de Berna.

Esquerda: Composição, 1922, por László Moholy-Nagy (1895 – 1946). Direita: Composição suprematista, 1915, por Kazimir Malevich (1878 – 1936). Kunstmuseum Bern

swissinfo.ch – O que você quer contar ao mundo com essa exposição?

Kathleen Bühler – Eu quero que nós voltemos a olhar para esta relação entre a arte abstrata e a arte realista, que não foi contradita no Ocidente por 100 anos. Mas também questionar essa visão de que o Realismo Socialista era apenas propaganda e não arte. Após o colapso da União Soviética, muitos artistas das antigas repúblicas soviéticas chegavam à cena artística internacional e esperavam, com razão, que seu trabalho anterior fosse levado a sério.

swissinfo.ch – Quando eu vi pela primeira vez o cartaz da exposição, eu o achei chocante. A Revolução Russa foi uma tragédia histórica e humana imensa. Ao longo do breve renascimento da vanguarda russa, ocorreram repressão, execuções em massa e deportações. Os melhores artistas e intelectuais russos foram simplesmente transportados ao exterior nos denominados “navios da filosofia”. Esta pode ser uma exposição de arte, mas não podemos omitir o contexto histórico. O que você está fazendo para ilustrar criticamente a perspectiva histórica desta arte, para que as pessoas que vêm ao museu não tenham a impressão de que a revolução foi um alegre passeio no parque?

Kathleen Bühler – Seu ponto se aplica a todas as exposições que acontecem este ano. É claro que nós temos que combater qualquer ingenuidade. Nós escolhemos esta imagem porque ela também coloca a questão para a geração jovem: Você está pronta para uma revolução? Ou é o bastante para você que você possa aproveitar seu tempo de lazer?

Queríamos mostrar que as revoluções são basicamente uma revolta da geração jovem contra o establishment, contra aqueles que já encontraram seu lugar na sociedade. Para mim, esta foi a primeira oportunidade para gastar muito tempo aprendendo sobre a história da União Soviética. Muito disso ainda não foi abordado na Rússia. Então, nosso ponto de partida é o ângulo artístico, mas é sempre uma oportunidade para falarmos sobre o passado histórico.

swissinfo.ch – É bom que você mencione essa questão – a questão da juventude e a questão de saber se a juventude está pronta para uma revolução. No último fim de semana (26/03) em Moscou, nós testemunhamos a juventude – aqueles nascidos por volta do ano 2000, que nunca conheceram outra coisa que não fosse o regime político atual – repentinamente se rebelar e tomar as ruas. Minha questão é, portanto: houve alguma pré-condição política para receber as obras emprestadas pela Rússia? Você diz que toda arte é política – mesmo a neutralidade é uma posição política.

Kathleen Bühler – Não houve limitações oficiais, mas houve alguns momentos onde nós fomos levados a entender que deveríamos tratar essas obras com toda seriedade e cuidado. Eu queria, por exemplo, mostrar uma engraçada e obscena cacografia de uma colheita coletiva criada pelos artistas Alexander Vinogradov e Vladimir Dubbossarsky, que eu vi há três anos em Moscou. É um inofensivo e exuberante exagero de uma fórmula artística familiar que conhecemos desde os anos 1940, e eu teria gostado muito de mostrar essa imagem enorme – tem em torno de 3 por 4 metros. Ela foi produzida nos anos 1990, um tempo quando novas liberdades estavam sendo testadas, e está associada a um certo kitsch, com um anseio pelo glamour. Mas nós percebemos que nossos outros emprestadores não acharam essa piada engraçada. Então tivemos que escolher outras pinturas desses dois artistas provocantes. A cena da colheita somente é ilustrada no catálogo.

swissinfo.ch (Larissa M. Bieler) – Eu gostaria de voltar ao ano de 1915. Você mencionou a Praça Negra de Malevich, um ícone da história da arte. Você também mencionou a variedade única das obras nesta exposição. Qual, na sua visão, é a obra-chave – se você tivesse que escolher uma – e por quê?

Kathleen Bühler – Uma das obras- chave para mim é a da artista multimídia Yael Bartana, uma artista israelense que filmou uma trilogia de 2007 a 2011 com o título “E a Europa será atordoada”. Era um trabalho encomendado para o pavilhão polonês na Bienal de Veneza. Em três partes, é um experimento de pensamento no qual alguém na Polônia chama os judeus de volta ao país. Eles vêm e constroem uma cidade e no fim o homem que os chamou de volta é assassinado e há o luto.

Bartana vê através desse experimento de pensamento; ela mostra como as coisas dão erradas novamente e usa uma linguagem cinematográfica da Revolução Russa. Ela usa os mesmos ângulos de câmera dinâmicos; uma visão de baixo dos jovens semblantes esperançosos para visualizar as esperanças que estão ligadas ao amanhecer de uma revolução. Essa trilogia causa uma impressão extremamente forte e é muito emocionante. Embora saibamos que a linguagem do filme está conectada com a tragédia histórica, ficamos eletrizados e começamos a suspeitar no final que nós ainda podemos tombar como vítimas das mesmas decepções. Uma obra de arte que pode provocar emoções poderosas, mas simultaneamente inspirar esse terror, é realmente brilhante. Na minha opinião, é uma importante tarefa para os artistas de hoje continuar a trabalhar sobre nossas consciências.

Adaptação: Maurício Thuswohl

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