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Doações e transplantes estão melhorando no Brasil

Nívea Maria Castro Neves, transplantada de coração há 8 anos em Fortaleza, Ceará, participa da campanha pela doação de órgãos. Ministério da Saúde

A base do atual modelo de transplantes de órgãos no Brasil surgiu em meados da década de 80 com o objetivo de garantir melhores resultados das cirurgias. A inteligência do processo, no entanto, obteve algo ainda maior: a democratização do serviço e o fim de práticas hediondas que facilitavam a venda de órgãos e a imposição de doação a presidiários

Hoje o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) garante um serviço sustentado em lei, que permite a qualquer brasileiro iguais condições para solicitar e ser atendido em uma cirurgia desse tipo.

Não é que seja perfeito; longe disso. As filas e os longos prazos de espera para a cirurgia continuam, a qualidade do atendimento varia de local para local e a demanda para alguns órgãos, como rins, ainda é bem maior do que se pode atender. Porém, o estabelecimento de regras que garantem mais segurança e transparência no controle e na distribuição dos órgãos doados garantiu um salto de eficiência, obtendo resultados significativos como o fim de filas para alguns tipos de transplantes, como córnea e medula, em alguns estados.  

“Essa é uma grande diferença do SNT, pois com esse modelo asseguramos que haja uma lógica que protege o paciente e dá acesso a um sistema democrático”, afirma o médico Agenor Spallini Ferraz, coordenador da Central de Transplante em São Paulo e um dos idealizadores do SNT. Por ser mantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS – a rede pública de saúde no Brasil), o SNT tem o controle de todas as cirurgias de transplante realizadas no país. Hoje, elas só podem ser feitas em hospitais que sejam credenciados ao sistema, o que exige o respeito a uma ordem de cadastro nacional de transplantes, gerenciado por um banco de dados que cruza informações dos perfis dos pacientes que precisam de doação com o de possíveis doadores.

Começou no interior de São Paulo

A lógica desse tipo de controle começou a ser implementada no país por uma iniciativa de 17 cidades do interior de São Paulo. Elas se uniram para criar o São Paulo Interior Transplante, entre 1986 e 1987, com a intenção de diminuir os insucessos dos transplantes de rins. A solução foi a criação do processo de compatibilidade, que entre outros critérios se baseia no uso do teste HLA (Human Leucocyte Antigen), que demonstra o grau de compatibilidade humano entre o doador e o receptor do órgão ou tecido doado. Quanto maior a compatibilidade menor as chances de rejeição do órgão, consequentemente maior a possibilidade do sucesso do transplante.

“Para isso contamos com a participação fundamental da bióloga Cássia Maria Costa Monteiro”, reconhece Ferraz. Ele salienta que ela foi peça chave para o desenvolvimento do modelo baseado em HLA, como já existia em outros países nos quais o São Paulo Interior Transplantes buscou referências, como o France Transplant, o Nord Italia Transplant e o Eurotransplant. Atualmente é o Brasil que tem servido de modelo para outros países tanto na América Latina quanto na Europa.

A partir daí, Ferraz ressalta que o sistema foi todo informatizado, possibilitando a aplicação da lógica de distribuição e tornando todo o processo uma referência no país. Foi inspirado nesse modelo que a partir de 1997 o governo brasileiro instituiu uma política nacional de transplantes de órgãos e tecidos fundamentada na Lei nº 9.434/97, tendo como diretrizes a gratuidade da doação, a beneficência em relação aos receptores e a não maleficência dos doadores vivos.

Em 2006, todo o sistema do SNT passou de uma plataforma cliente-servidor para internet. Isso garante a transparência para quem precisa de um transplante, permitindo o acompanhamento de médicos e pacientes sobre o status das filas de espera. “O sistema moralizou o transplante de órgãos no Brasil e acabou com cenas dantescas, como a de presidiários algemados esperando em hospitais para serem doadores ou de pessoas pobres que queriam vender os rins para receberem algum dinheiro”, lembra Ferraz.

Mulher de sorte

Absurdos pelos quais a produtora de eventos Viviane Viana, de 43 anos, não passou, apesar das duas cirurgias para transplantes de rins a que se submeteu, uma quando tinha 15 anos e outra, em 2010, 24 anos depois. Mas, ainda assim, Viviane ressalta não ter sido fácil nenhuma das duas situações. Se na primeira ela sentiu falta de explicações mais consistentes sobre a sua condição de saúde e o que enfrentaria com o passar dos anos, na segunda ela acha que o tempo de espera na fila ainda é demorado, quando o paciente não tem doador vivo.

Receptora de órgãos de um doador morto em ambos os casos, Viviane conta que esperou cerca de um ano e meio para as duas cirurgias. “Tempo considerado até rápido, já que há quem espere mais de cinco anos por um rim”, diz ela, acrescentando: “Tem gente que demora bastante na fila até achar um doador compatível, mas se tiver um doador vivo, pode até ser mais rápido”.

Mas mesmo aguardando um doador morto, Viviane não podia esperar muito mais tempo. “Já não tinha como fazer diálise nem por fístula nem por cateter, uma vez que meus acessos já estavam muito comprometidos.” Avaliada então por dois médicos de dois hospitais diferentes credenciados ao SNT, Viviane foi liberada para ser cadastrada em uma lista de prioridades para aguardar o doador. Apesar de várias limitações e de uma atenção grande com a saúde, ela hoje está bem e se considera uma mulher de sorte. “Quando vou a uma consulta, muitos médicos me perguntam: onde está o paciente”, diz ela, sempre bem humorada.

O balanço de transplantes realizados no Brasil, entre 2011 e 2012 demonstram um aumento de 12,7%. Entre janeiro e junho do ano passado, o total foi de 10.905 cirurgias realizadas. O maior aumento foi para o transplante de pulmão, que obteve 100% de cirurgias realizadas, seguido do de coração, com 29% a mais no mesmo período. Já os transplantes de medula óssea cresceram 17%, os de rim 14%, o de córnea 13% e o de fígado também 13%.

No caso de das cirurgias de córnea, foram realizadas 7.777 nos primeiros seis meses de 2012 e há estados que já eliminaram a lista de espera, como São Paulo, Distrito Federal, Acre, Paraná, Espirito Santo e Rio Grande do Norte. Com o objetivo de aumentar ainda mais essa capacidade de atendimento, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assinou em 2012 uma portaria que instituiu a atividade de tutoria em doação de órgãos e transplantes no País, estimulando centros de excelência a capacitar serviços para melhorar ou iniciar a realização desse tipo de cirurgia.

Desafios

Esclarecer e aumentar número de doadores é justamente uma das metas do governo brasileiro para diminuir as filas de espera. “Estamos decididos a ampliar os centros transplantadores no Brasil”, declarou o secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Helvécio Magalhães, acrescentando que para isso foi aumentado o financiamento nessa área para estimular serviços de saúde a fazer mais transplantes.

Dados do ministério apontam que a espera tem diminuído. Com relação a 2010, a lista no final de 2011 era 23,2% menor, e a expectativa é que o balanço ainda não finalizado de 2012 comprove essa tendência. Em casos de transplantes como o de córnea, alguns estados já conseguiram eliminar as listas de espera, como São Paulo, Distrito Federal, Paraná, Espírito Santo e Acre.

“Nossa expectativa é, em médio prazo, zerar as filas e reduzir as iniquidades regionais de acesso aos transplantes, além de continuar trabalhando com a população para aumentar as doações de órgãos”, completa Magalhães. Trabalho intensificado anualmente, principalmente em campanhas publicitárias por todo o país estimulando a doação.

Mídias sociais

Ferraz, no entanto, chama atenção para a importância de se deixar claro para a família o desejo de ser um doador, uma vez que é ela que efetivamente autoriza a retirada dos órgãos. Para isso, o SNT conta com equipes multidisciplinares, acionadas assim que há a notificação de um doador, para consultar e dar suporte aos familiares.

Até mesmo as redes sociais na internet estão sendo usadas para deixar esse desejo evidente. Uma parceria entre o Ministério da Saúde e o Facebook, em 2012, criou uma funcionalidade que permite que o usuário da mídia no Brasil se declare doador de órgãos. Somente no primeiro mês após o lançamento mais de 80 mil pessoas se declararam doadoras, podendo compartilhar a decisão com amigos e parentes.

Mesmo fora da rede, há estados em que o número de doadores tem aumentado e o sistema funcionado bem, como São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul e Paraná. É o quem garante Ferraz, que faz ressalvas, porém, sobre o funcionamento em estados como Rio de Janeiro, Rondônia e Bahia. Essa diferença se dá pelo fato de que, sendo o Brasil uma federação, apesar de todo controle do cadastro ser da SNT, cada gestor de estados e municípios tem autonomia pela implementação do serviço, o que não garante a homogeneidade da qualidade de atendimento.

Hoje a principal demanda de transplante no Brasil é a de rim, seguida de fígado, coração e pulmão. “Já o transplante de pâncreas normalmente é feito junto com o de rim”, afirma Ferraz, acrescentando que no caso de transplante de tecido, como córnea, há cidades onde não existem mais filas. “Em São Paulo, já estamos até enviando córneas para outros estados, entrou na fila aqui é para transplantar.”

A estrutura do SNT conta com 25 centrais de notificação, captação e distribuição de órgãos, sendo 11 delas sub-regionais. Um total de 11 câmaras técnicas nacionais são responsáveis pelas discussões de políticas e aperfeiçoamento do sistema. Os 748 serviços são distribuídos em 467 centros, além de contar com 1.047 equipes de transplantes e 62 Organizações de Procura por Órgãos (OPO). Essas OPOs são formadas por profissionais da saúde e de outras áreas, como psicologia, assistência social e policial, com o objetivo de facilitar, agilizar e manter as condições dos órgãos ao mesmo tempo em que atende e dá suporte a familiares dos doadores em um momento normalmente crítico.

Nos estados, o transporte dos órgãos é realizado pelas Centrais de Transplantes. Quando necessário, há cooperação das companhias aéreas brasileiras, que atuam de modo voluntário.

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