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Pesquisa: novas regras trarão mais transparência?

Estudos e testes com novas substâncias fazem parte do cotidiano das farmacêuticas. AFP

A espiral dos preços do sistema de saúde se acelera. Autoridades reguladoras, médicos e pacientes dependem cada vez mais da integridade dos estudos clínicos para poder avaliar a eficácia das novas terapias. Porém o que acontece se os resultados dos estudos estão distorcidos?

Para combater com eficiência epidemias de gripe, governos e órgãos públicos por todas as partes do mundo armazenam grandes quantidades do Tamiflu, um medicamento antiviral de administração oral produzido pela Roche. Porém como a multinacional farmacêutica suíça se recusa há anos de publicar informações detalhadas sobre os estudos, mesmo os médicos não sabem se a vacina conseguiu, de fato, evitar a eclosão de uma epidemia.

A tática comum da indústria de varrer para baixo do tapete os resultados indesejáveis é conhecida como viés de publicação, uma espécie de favorecimento às pesquisas com resultados positivos. Quando pesquisadores manipulam os resultados de testes clínicos, novas terapias se tornam não apenas mais arriscadas, mas também podem ser completamente inócuas para os pacientes, alertam médicos.

Os pesquisadores clínicos podem alterar os limites para definir metas mais fáceis de atingir ou também utilizar métodos estatísticos obscuros para enfatizar os efeitos positivos ou minimizar efeitos colaterais. E caso os resultados de um estudo não correspondem às expectativas, os relatórios podem ser arquivados, já que ninguém gosta de resultados negativos.

“Médicos têm horror de resultados negativos. Eles não os publicam”, explica Jean-François Cuttat, um cirurgião de Lausanne. Ele esclarece que pesquisadores omitem dados que não coincidem às suas expectativas ou ajustam e aperfeiçoam esses resultados.

“Empresas não têm nenhum interesse de publicar resultados sobre falhas de determinados produtos, sucessos de venda”, acrescenta Hermann Amstad, secretário-geral da Academia Suíça das Ciências Médicas, ao comentário de Cuttat. “Revistas médicas especializadas têm um grande interesse de aceitar para publicação relatórios com resultados positivos.”

Mundialmente estão em andamento 70 mil estudos clínicos, todavia poucos trazem novos conhecimentos já que servem apenas a fins promocionais, como esclarece o oncologista Reto Obrist, membro do conselho de administração da Swissmedic, a autoridade de supervisão de remédios na Suíça.

Hoje apenas a metade dos estudos clínicos é publicada, o que leva a uma distorção dos resultados e complica a escolha dos medicamentos pelos médicos, declara Obrist. Muitos estudos clínicos deixam de ser publicados por não ser do agrado da indústria farmacêutica.

Uma nova lei da pesquisa com seres humanos, vigor desde o início do ano, tem por objetivo sanar algumas dessas deficiências. Ela prevê o registro obrigatório de todos os testes clínicos realizados na Suíça. Também os pesquisadores envolvidos devem cumprir as diretrizes éticas adicionais e códigos de conduta para garantir a transparência e qualidade da pesquisa.

Danos à reputação

“A recomendação geral para as empresas é fazer o que não cause problemas caso as mídias abordem a questão um dia depois”, esclarece Annette Magnin, chefe da Organização Suíça de Pesquisas Clínicas (SCTO, na sigla em inglês), a plataforma de cooperação para a pesquisa clínica orientada aos pacientes no país. Má conduta não é apenas antiético, mas também provoca prejuízos financeiros e morais para a empresa, em sua opinião.  

A indústria farmacêutica suíça, responsável por seis por cento do PIB nacional, já se opôs às reivindicações de publicação e abertura, especialmente ao se tratar de resultados dos estudos. Ao contrário, a indústria preferiu aplicar um código próprio de ética, desenvolvido pela associação setorial ScienceIndustries.

No entanto, muitas empresas começaram recentemente a abandonar essa prática para se mostrar favorável a uma maior transparência. Assim a Roche publica hoje não apenas resumos dos estudos clínicos, mas esquisadores também podem solicitar relatórios (Clinical Study Reports) às autoridades médicas ou diretamente à empresa. E desde o início de 2014, a multinacional suíça permite também a pesquisadores (terceiros) o acesso a dados brutos dos pacientes.

No que diz respeito à eficiência do Tamiflu, um grupo de pesquisadores independentes verificará a “robustez e integridade” das declarações da Roche sobre a “eficácia e segurança” do medicamento. “Compreendemos e apoiamos as exigências de mais transparecia por parte da nossa indústria na questão dos dados dos testes clínicos com fins de atender da melhor forma possível os interesses dos pacientes e da medicina”, declarou em 2013 o presidente da Roche, Daniel O’Day. Ao mesmo tempo a empresa está convencida de que a avaliação e aprovação dos medicamentos devem continuar sob responsabilidade das autoridades de saúde.

Algumas empresas farmacêuticas enfatizam que a divulgação completa dos dados também traria desvantagens. Elas se preocupam com a segurança dos dados privados do paciente e a propriedade intelectual, caso seja necessário divulgar todos os dados, esclarece Thomas Cueni, da Interpharma, a associação dos pesquisadores na indústria farmacêutica suíça. Para Cueni, a autorregulação do setor é suficiente.

“A indústria farmacêutica se considera bem regulada”, avalia Jean-François Cuttat. “Mas a impressão não é boa se as autoridades obrigarem mais uma vez as empresas a publicarem todas as informações e se tornar mais transparentes. Isso faz lembra o que já estamos vivendo nos últimos tempos com o setor financeiro.”

É uma espécie de favorecimento às pesquisas com resultados positivos. Durante anos a Roche recusou-se a publicar detalhes sobre o Tamiflu, um medicamento antiviral de administração oral armazenado por autoridades de saúde em vários países. A multinacional argumentava que leigos não teriam condições de avaliar corretamente os resultados. Analistas da organização independente de pesquisa Cochrane esclareceram que a Roche teria omitido 60% dos dados. Depois, em 2009, eles os receberam da empresa, mas continuaram a encontrar provas de viés de publicação.

Desde 2013, a Cochrane pode avaliar todos os estudos relacionados ao Tamiflu, porém a Rocha redigiu o material “para proteger a esfera privada dos pacientes e proteger também os interesses comerciais”. Hoje a Roche declara apoiar as reivindicações de mais transparência. Assim pesquisadores recebem detalhes de estudos clínicos a pedido, porém os realizados até 1998. Um grupo independente de consultores analisa todos os dados para identificar as questões abertas na questão da vacina contra a gripe.

O Ministério japonês de Saúde apresentou no início desse ano uma queixa contra Novartis. Fundamentação: propaganda enganosa. O ministério esclarece que uma parte da pesquisa nas universidades japoneses foram manipuladas para encobrir os efeitos reais do remédio contra pressão arterial Diovan. A Novartis esclareceu que coopera com as autoridades e já introduziu medidas corretivas. 

Manchetes negativas

Nos últimos anos, as empresas suíças têm sido criticadas por comportamento antiético. Obrist lembra que não apenas os bancos foram responsáveis por manchetes negativas na mídia devido às denúncias de manipulação, corrupção e confidencialidade: também a indústria farmacêutica perdeu um pouco do seu brilho.

Empresas de atuação global não podem mais hoje se dar ao luxo de serem desacreditadas. Por isso elas respeitam códigos internacionais de práticas e legislação dos mercados em que atua, considera Hermann Amstad. Porém aparentemente todas elas parecem estar pagando por pecados cometidos no passado. Todas as líderes do mercado farmacêutico têm sua parte nas manchetes negativas.

Empresas como a Roche no caso Tamiflu e Novartis com o seu medicamento anti-hipertensivo Diovan (veja coluna à direita), pois dados negativos dos testes clínicos não foram ou só foram publicados com atraso. Obrist espera que os últimos escândalos, que provocaram reivindicações de mais transparência por parte da opinião pública, contribuam às acelerar as mudanças necessárias.

“Hoje as empresas farmacêuticas estão na escala de popularidade pouco acima dos bancos”, diz Obrist. “Vai durar um bom tempo até que eles consigam recuperar a imagem e confiança.”

Quando a questão é abertura e transparência para as pesquisas, os Estados Unidos estão na ponta e a Europa bem atrasada. Nos Estados Unidos, os testes com medicamentos devem ser registrados desde 1997 e as farmacêuticas tornar públicos os conflitos de interesses. Com o registro dos testes a Suíça deu um primeiro passo. A União Europeia deve fazê-lo no ano que vem.

Para céticos, a legislação atual e a prevista para a Europa chega com atraso e não avança o suficiente. Organizações como “No free lunch” e apoiadores da campanha “AllTrials” exigem transparência total e alertam: com “pseudo-inovações” sem qualquer evidência de benefícios adicionais, os pacientes não podem mais confiar em seus médicos.

“A indústria farmacêutica afirma que os pacientes são a prioridade número um, mas os interesses financeiros não podem ser ignorados”, critica David Klemperer da ong “No free lunch” na Alemanha. “Para vender produtos no mercado, no valor de 1,7 trilhões de dólares em 2017, ela trabalha sistematicamente médicos, políticos e as mídias no intuito de reduzir a percepção de dados indesejados e lustrar sua própria imagem.”

O tempo irá mostrar se as novas regras terão sucesso e distorções poderão ser reduzidas.

Desde setembro de 2013, leis nos Estados Unidos obrigam as farmacêuticas a tornarem públicos os pagamentos a médicos. Desde então as empresas revelaram pagamentos a especialistas do setor na ordem de mais de dois bilhões de dólares.

Em 1997 o congresso dos EUA aprovou uma lei que obrigou o registro e publicação de estudos clínicos. Em 2000, as autoridades determinaram que os dados fossem publicados em um site na internet: clinicaltrials.gov

A partir de 2015, pesquisadores na União Europa terão de registrar os estudos clínicos e publicar um resumo no prazo de um ano. O Parlamento europeu e o Conselho de Ministros terão ainda de aprovar a nova legislação.

A nova Lei suíça (em vigor desde janeiro de 2014) sobre pesquisa em seres humanos determina que as empresas registrem os estudos clínicos no portal da Secretaria Federal de Saúde (BAG). A lei não fala sobre a obrigatoriedade de publicação dos resultados.

Adaptação: Alexander Thoele

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