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O dilema da ciência frente à pandemia de Covid-19

Scientifique devant une table de tests
Em 2020, 4% de todas as publicações estavam relacionadas com a pandemia. Westend61 / Giorgio Fochesato

A pandemia do novo coronavírus trouxe a ciência e a pesquisa para os holofotes. No entanto, essa influência sem precedentes na política e na vida pública tem uma desvantagem: a situação excepcional exige respostas rápidas, o que coloca em questão a credibilidade dos cientistas.

“Desde o início da pandemia, houve um verdadeiro tsunami de publicações científicas sobre o Sars-CoV-2”, afirma Subhra PriyadarshiniLink externo, editora-chefe da Nature IndiaLink externo, que participou recentemente de uma conversa online, organizada pelas Academias Suíças de CiênciasLink externo, acerca da comunicação científica.

De acordo com a revista NatureLink externo, 4% de todas as publicações científicas mundiais em 2020 foram relacionadas ao coronavírus. Especialmente no início da pandemia, havia uma pressa no andamento das pesquisas. É por isso que, mais do que nunca, estudos foram publicados na modalidade de “pré-publicação”, ou seja, antes mesmo de serem submetidos à revisão de pares, na qual especialistas independentes avaliam o estudo.

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Para Luca TratschinLink externo, sociólogo da ciência no Centro de Pesquisa em Ensino Superior e Ciência da Universidade de Zurique, os cientistas enfrentam um dilema acerca do que é mais importante: qualidade ou resultados rápidos? A publicação de estudos em pré-publicação garante que, por enquanto, “conhecimentos científicos possam ser divulgados o mais rápido possível e em tempo hábil para que medidas sejam tomadas”.

Por outro lado, há o “perigo de depois ter de corrigir publicamente tais resultados prematuros”. Foi o caso, por exemplo, de dois grandes estudos sobre o efeito da hidroxicloroquina, um medicamento para a malária, contra a Covid-19. Publicados nas famosas revistas The Lancet e New England Journal of Medicine, os estudos precisaram ser retirados de circulação posteriormente.

Um estudo suíço também precisou encerrar suas investigações sobre a hidroxicloroquina. O mesmo ocorreu com a gigante da indústria farmacêutica, Novartis, que havia nutrido esperanças acerca do fármaco. Tantos exemplos podem acarretar uma desconfiança por parte da população e estimular a desinformação.

Personnes autour d une table
Será que os membros da força-tarefa científica contra a COVID-19 podem se expressar livremente sobre as medidas tomadas pelo Estado? A questão foi debatida intensamente. Keystone / Peter Klaunzer

A “cláusula mordaça”

Na Suíça, muitos estudos em pré-publicação foram examinados pela Força-tarefa Científica contra a Covid-19Link externo, que faz recomendações ao governo baseadas nos resultados de suas análises. Os membros dessa força-tarefa, bem como os estudos que eles avaliam, frequentemente têm se tornado alvos de políticos e do público.

Após cientistas da força-tarefa terem expressado sua insatisfação com o fato de o governo não seguir seus conselhos, alguns representantes de partidos políticos recomendaram que os pesquisadores não fossem autorizados a comentar publicamente sobre as medidas contra a pandemia.

Um grupo de cidadãos, insatisfeitos com o confinamento e as restrições à liberdade de reunião, propôs um referendo contra a lei Covid-19, que fornece o enquadramento legal para as medidas governamentais contra a pandemia.

O povo suíço se pronunciará nas urnas sobre esse assunto no dia 13 de junho. A chamada “cláusula mordaça”, cujo objetivo era impedir os membros da força-tarefa de se expressarem publicamente, não faz mais parte da lei. Ela foi suprimida pelo parlamento após um debate polêmico e acalorado. Ainda assim, a questão está posta: qual a confiança na ciência, hoje e no futuro?

Uma questão de visão de mundo

“O problema é que a ciência às vezes mostra realidades desagradáveis” destaca Reto Knutti, professor de física climática na Escola Politécnica Federal de Zurique. “Além disso, há uma grande tentação de dizer que os especialistas não têm ideia do que estão falando, que querem apenas ganhar fama. Não se trata realmente da confiança na ciência, mas apenas do fato de que nem todas as coisas correspondem à sua própria visão de mundo”.

Knutti não acha que a ciência tenha sofrido muito devido às controvérsias relacionadas à Covid-19. Ele apresenta como prova os resultados do “Barômetro da Ciência”, pesquisa criada durante a pandemia que mostra que o interesse e a confiança da população suíça na ciência chegaram a aumentar durante esse período de crise.

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Knutti, no entanto, acredita que o público deveria ser capaz de diferenciar entre um único estudo ou um estudo preliminar que não foi revisado por pares e um consenso científico. Como exemplo, ele menciona as conclusões científicas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês), que atestavam a rapidez da mudança climática. Nesse caso, “milhares de pessoas revisaram centenas de milhares de estudos ao longo de cinco anos e, a partir deles, chegaram a um sólido consenso”, relembra Knutti, que esteve ele mesmo significativamente envolvido em dois relatórios do IPCC.

Por outro lado, a pesquisa durante pandemia do coronavírus encara um desafio maior, bem como os olhares atentos dos políticos e do público, que desejam ter resultados úteis o mais rápido possível. Quando se trata de outras questões, esse processo leva décadas. “Atualmente, estamos fazendo isso em um ano. Com todas as consequências e efeitos colaterais que isso implica”, avalia Knutti.

Huma Khamis, jornalista científica da Rádio Televisão Suíça (RTS) e vice-presidente do Clube Suíço de Jornalismo Científico, é menos otimista. A pandemia anunciou “o fim da lua de mel entre a ciência e o público”, diz ela. “O lado negativo é que apenas os fatos foram divulgados, mas não as dúvidas. Por outro lado, o interesse pela ciência aumentou durante a pandemia”, afirma.

O papel dos meios de comunicação

Grande parte da responsabilidade pela divulgação de resultados científicos recai sobre os meios de comunicação. A pesquisa #CovidSciComLink externo, realizada junto a organizações e institutos na Suíça, nos EUA e na Índia, revelou recentemente que os pesquisadores e as universidades parecem ter mais credibilidade do que os jornalistas. No entanto, a enxurrada de publicações afetou a credibilidade das pesquisas. Influenciadores e colunistas – uma importante fonte de informação para muitos jovens – ficaram para trás nos resultados.

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Todos os entrevistados consideram o controle de qualidade como o maior desafio – tanto em revistas científicas como nos meios de comunicação. Subhra Priyadarshini, da Nature India, afirma que na revista apenas os melhores estudos em pré-publicação são selecionados e sempre são identificados como tal. “Cabe então a nós, profissionais dos meios de comunicação, fazer algum tipo de revisão de pares e contatar especialistas”.

Será, contudo, que todos fazem isso? A mídia diferencia suficientemente os tipos de estudos realizados e explica suas lacunas? “Várias redações, jornais e estações de rádio diminuíram sua produção de jornalismo científico nos últimos anos”, lamenta Luca Tratschin.

Para Knutti, o problema não é necessariamente a mídia, mas o fato de que “não estamos dispostos a pagar por informações de qualidade. A pressão sobre os meios de comunicação é enorme, o jornalismo científico é caro, as pessoas quase não leem mais e consomem suas informações nas redes sociais”.

Respondendo às dúvidas

Soma-se à situação o fato de que a ciência não se faz apenas com resultados, mas principalmente com debates, experimentos para testar teorias e seus possíveis fracassos. Há um grande consenso na comunidade científica sobre a falta de debate acerca desse último ponto.

“A ciência constantemente produz novos conhecimentos. Eles, contudo, trazem consigo ainda mais questionamentos, incertezas e lacunas”, afirma Luca Tratschin. Essa ambivalência constitui o dilema, mas também o fascínio da atividade científica. “Toda descoberta científica está ligada à incerteza e deve estar sujeita a restrições metodológicas e conceituais. A ciência não simplesmente reflete uma realidade dada, clara e sem ambiguidade”.

Descobertas e afirmações científicas complexas são frequentemente truncadas, distorcidas e exageradas na mídia. “A Covid-19 mostrou que devemos fazer mais, que devemos mostrar o que sabemos e o que não sabemos, mas que não devemos dar receitas prontas. Precisamos reforçar essa distinção”, diz Marcel Tanner, presidente das Academias de Ciências da Suíça.

Knutti sugere que os pesquisadores envolvam seus resultados em uma história para que possam ser divulgados de uma forma mais compreensível. Ele cita o economista e ganhador do Prêmio Nobel Daniel Kahneman: “Ninguém jamais tomou uma decisão baseada em um número. Você precisa de uma história”.

Pode ser que o debate acerca da liberdade de expressão da Força-tarefa Científica Nacional Covid-19 não tenha sido algo tão ruim afinal, sugere Knutti. “Esse debate e a resistência do público e dos meios de comunicação mostraram que silenciar ou censurar fatos desagradáveis não é o melhor caminho”. A responsabilidade individual só tem como funcionar “quando você pode formular seu próprio julgamento embasado e todas essas considerações estão postas”.

Por fim, Reto Knutti aponta que, nesse contexto, a divulgação científica e os conselhos aos formuladores de políticas são, em última instância, duas coisas diferentes: “A primeira é a questão do consumo da mídia, a segunda é sobre como estabelecer um diálogo com a política”. E mesmo que a comunicação entre a ciência, o público e a mídia funcione, isso ainda não significa “que encontraremos uma forma de dialogar com a política”.

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Group of parliamentarians in the Swiss senate comparing documents

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Adaptação: Clarice Dominguez

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