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A fantástica história de um dos primeiros filmes rodados na Suíça

People walking across Basel Bridge in 1896
Aquiles Lotz e seu filho mais novo, Rudolf. A mãe de Aquiles, Pauline, está à esquerda na imagem, carregando uma cesta. Institut Lumière, Lyon

À primeira vista parece apenas uma cena cotidiana em uma cidade suíça na virada do século. Apenas cinquenta segundos, onde pedestres caminham, olhando à câmera. Porém a história por trás do primeiro filme rodado na Basileia em 1896 é muito mais fantástica.

Em uma carta enviada à mãe, em 28 de setembro de 1896, o jovem cinegrafista francês Constant Girel reclamava das condições climáticas: não havia luz suficiente para filmar na ponte construída no século 13 (reconstruída entre 1903 e 1905) sobre o rio Reno.

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Mas o resultado foi satisfatório. O que chama a atenção do público nesse antigo filme? O jovem estudante carregando uma pasta nas mãos, com um ar perdido no começo da película? As roupas da época trajada pelas pessoas? Suas reações curiosas e inseguras? O misterioso fumante de bigode que mal se move? Provavelmente um dos primeiros filmes produzidos na Suíça foi também o primeiro comercial, no caso para a cervejaria local Löwenbräu. Uma pergunta é difícil de responder.

Seria possível identificar entre as pessoas que passam ao longo dos cinquenta segundos quem seria a pessoa que encomendou o trabalho a Girel? Observe mais uma vez e tente localizá-lo. Sim, é o homem da carruagem, gesticulando e ordenando a todos que sigam em frente. François-Henri Lavanchy-Clarke era um dos 70 figurantes que aparecem na filme rodado sobre a ponte e que foi identificado por uma equipe multidisciplinar de acadêmicos do “50 Segundos da BasileiaLink externo“, um projeto que apresenta outros filmes produzidos por Lavanchy-Clarke.  

“Ele era pessoa que realmente estava por trás de tudo”, explica Hansmartin Siegrist, professor da Universidade da Basileia e da Academia de Arte e Design da Faculdade Técnica do Noroeste da Suíça (FHNW).

“Mas François-Henri estava tão ocupado organizando as pessoas que até nos faz lembrar aquele personagem do “Onde está o Wally”. Talvez por isso tenham ocorrido tantas pequenas falhas, o que explica porque muita gente acredita que o filme histórico mostra uma cena espontâneo do cotidiano da cidade às margens do rio Reno.

Trabalho investigativo

Siegrist viu pela primeira vez o filme em preto e branco em dezembro de 1995. Foi durante o evento “Centenário do Cinema”, que lembrava os 100 anos de um momento histórico: a primeira exibição de um filme de curta duração no Salão Grand Café, em Paris, em 28 de dezembro de 1895, pelos Irmãos Lumière e do seu invento, o Cinematógrafo.

“Meu colega (historiador), Roland Cosandey, disse que deveríamos fazer algo. Então, decidimos projetar esse filme na mesma ponte”, lembra-se. “Alguns estudantes e colegas informavam o público. Numa dessas noites surgiu um senhor de idade e nos contou: ‘Tenho certeza de que esse é meu avô quando era criança’. Mas eles não pediram mais informações a ele! Não pude acreditar!”, conta, rindo.

“Isso costuma ocorrer quando você tenta identificar pessoas em documentos históricos. Normalmente você gasta 50% do tempo para identificar a primeira pessoa e depois outros 30% para identificar a segunda. E quando juntou então as peças do quebra-cabeça, o trabalho acelera.”

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Siegrist afirma ter passado vinte ou mais anos “incomodado pela perda de conexão direta” com o filme, oficialmente chamado “Lumière 308 – Basileia: ponte sobre o Reno”. O professor costumava apresentar o filme histórico aos estudantes nos seus cursos de cinema. O objetivo era despertar-lhes o interesse pelos primórdios da chamada sétima arte.

Cinco anos atrás, Siegrist elaborou um projeto para encerrar a carreira acadêmica. Assim teve a ideia de estudar as ligações entre a história da Basiléia e do cinema, como definiu. “Sabíamos que a interpretação deste filme relativamente inocente dependeria da identificação das pessoas que lá aparecem”, diz.

Pesquisa resulta em livro

Os resultados de cinco anos de pesquisa foram publicados no livro “Na Ponte para a ModernidadeLink externo” (título original: “Auf der Brücke zur Moderne), que identifica cerca de 60 personagens no filme, dando nomes e outros detalhes pessoais.

Lavanchy-Clarke, o primeiro nome da lista, foi um dos pioneiros da publicidade na Suíça. Não apenas o empresário era detentor da licença de uso na Suíça do cinematógrafo de Lumière – a câmera mais elegante e tecnicamente mais avançada na época – mas também era o representante local da empresa britânica Lever Brothers (predecessor da Unilever), que, dentre outros, fabricava o sabão Sunlight.

“Ele aproveitava todas as chances para fazer propaganda dos seus produtos”, revela Siegrist. Quando o rei do Sião (Tailândia) chegou em visita oficial à Suíça, Lavanchy-Clarke apareceu no fundo segurando um dos seus sabonetes. Ao filmar um desfile militar em Lausanne, aproveitou para incluir no cenário um carrinho repleto do produto em meio aos soldados.

“Se não tivesse feito essa propaganda, o sabão Sunlight nunca teria sido vendido na Suíça, pois na época havia uma reserva de mercado para o produto”, lembra-se. As taxas aduaneiras para sabão embalado (uma invenção inglesa) eram mais elevadas do que o sabão importando a granel.

Embora o sabão Sunglight não seja um dos personagens do curta-metragem rodado na ponte da Basiléia, o principal objetivo de Lavanchy-Clarke era exibir o filme – e outros semelhantes rodados em Zermatt ou nas cataratas do RenoLink externo – na Exposição Nacional de 1896 em Genebra…e então tentar vender.

Esses grandes eventos são realizados a cada 25 anos – a próxima deve ocorrer em 2027. Porém em 1896 havia um limite: apenas produtos suíços poderiam ser expostos. Mas isso não desmotivou Lavanchy-Clarke, cujo plano era atrair o público em Genebra para a barraca que havia montado ao lado do centro de exposições para exibir os filmes, momento ideal para fazer propaganda do sabão Sunlight.

“As pessoas queriam se ver no filme. Foi uma sensação, mesmo que de curta duração”, diz Siegrist. O filme de Lavanchy-Clarke “Volta ao estábulo” também foi exibido no momento. Nele apareciam mais de cem pessoas:

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Personalidades locais

Mas se Lavanchy-Clarke produziu e dirigiu o histórico curta-metragem da Basileia, o homem que decidia quem entrava em cena foi Achilles Lotz, um tintureiro e figura popular em “Kleinbasel”, um bairro de trabalhadores e operários.

Esse fato explicaria o posicionamento da câmera, apontando sempre em direção a Kleinbasel. “Lotz nunca teria se deixado filmar com Grossbasel por trás”, acrescenta Siegrist, lembrando que Grossbasel era o bairro dos ricos, localizado do outro lado do rio Reno. “Lotz deve ter sido o organizador da filmagem nesse dia já que 95% das pessoas que aparecem estão ligadas a ele. Isso deve ter facilitado bastante o trabalho de Lavanchy-Clarke.”

O problema era que os pesquisadores não conseguiam encontrar nenhuma imagem que identificasse Lotz. “Então começamos a especular. Uma possibilidade seria identificar seus parentes, mas que também não permitiria ter provas. O grande momento foi quando um bisneto de Lotz nos contactou e contou que tinha muitas fotografias dele. Foi um triunfo!”

Nomes para os rostos

A equipe conseguiu lentamente dar nomes a todos (ou quase) os rostos que aparecem na película. O próprio Lotz pode ser visto praticamente em todo o filme, de pé em frente à pequena capela da ponte (nome original: Käppelijoch), com um bigode e segurando um charuto na mão esquerda. A esposa, Pauline, se afasta da câmera no início do filme, segurando um guarda-chuva e usando o que poderia ser roupas de luto; Friedrich (um filho) caminha na frente de Lotz ao longo de 15 segundos, com ambas as mãos nos bolsos do colete; e Rudolf (filho da amante) caminha e se posiciona no centro no final (o que o pai deve ter dito enquanto passava?).

Outras pessoas vistas e próximas a Lotz incluem Hans Huber, o compositor mais conhecido na época, que pode ser visto brevemente nos primeiros segundos do filme à direita, de bigode, com um grande colarinho branco e um medalhão.

Depois há o pastor jesuíta e pioneiro do cinema, Abbé Joye, um homem alto com um chapéu-coco e guarda-chuva, que cruza da direita para a esquerda durante dez segundos. Conhecido em toda a Basiléia, ele foi provavelmente a primeira pessoa no país a exibir filmes na escola dominical e para adultos. Joye atravessa duas vezes na frente da câmera. Em um momento deve achar que já não está mais sendo filmado, apesar do pé ainda estar à mostra, à esquerda. O cinegrafista Girel não conseguiu corrigir a falha, pois seu cinematógrafo não tinha visor.

Uma outra prova de que o filme foi encenado e não um simples registro do cotidiano, segundo Siegrist: as roupas utilizadas pelos figurantes. Não só há um número demasiado de chapéus, mas também as mulheres parecem usar suas roupas de domingo e não os tradicionais aventais de trabalho. “Mas provavelmente não eram também suas melhores roupas, só a dos meninos.”

Colorindo antigos filmes

Um dos aspectos mais curiosos do clip exibido acima é a colorização e ajuste da velocidade: as figuras caminham naturalmente e não estão “aceleradas” como na maioria dos filmes antigos, o chamado “Efeito Chaplin”.

Siegrist não foi responsável pela colorização do curta-metragem. Ela foi feita pelo estudante Nihad Nasupovic no início de 2020 através de um software especial. O professor, porém, se mostra mais aberto à tecnologia do que alguns historiadores do cinema.

“É um tema interessante. Meus colegas mais ortodoxos dizem: ‘Oh, este é o trabalho do diabo’! Eles estão certos ao criticar os que afirmam ser esse tipo de colorização uma forma de restauração, o que não é. Nunca se deve esquecer que o filme original é uma série de fotogramas analógicos. O computador melhora digitalmente a resolução, a gradação e a qualidade do movimento por interpolação, ou seja, adicionando elementos que não foram registrados pela câmera”, diz.

“Obviamente não é obra do diabo! Se essa colorização ajuda a alcançar um público ainda maior, tudo bem, desde que não afirmem que se trata de uma restauração”, afirma o professor.

Ele cita como exemplo o documentário de Peter Jackson sobre a I Guerra Mundial: “Eles não envelhecerão” (original, “They Shall Not Grow Old”). O cineasta e produtor cinematográfico neozelandês acrescentou efeitos sonoros e usou leitores de lábios para recriar o que os soldados diziam, usando atores para lhe dar voz.

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“Apenas nos últimos cinco anos, o interesse pelos filmes produzidos nos inícios do cinema cresceu”, observa Siegrist, satisfeito com a sensação de ter chegado em um bom momento. “Se esse trabalho aumenta o interesse do público, só pode ser bom, não?”

Adaptação: Alexander Thoele

François-Henri Lavanchy-ClarkeLink externo nasceu no vilarejo de Morges, às margens do lago de Genebra, em 1848. Em 1879 se casou com a inglesa Clarke.

Durante a guerra germano-francesa de 1870-71 trabalhou como enfermeiro da Cruz Vermelha suíça.

Ao retornar do Egito, começou a se preocupar com deficientes visuais. Então abriu uma escola profissional em Paris em 1881 e uma oficina para deficientes visuais em Lausanne, em 1892.

De 1889-1898 foi representante da empresa britânica Lever Brothers em Lausanne, e depois o primeiro diretor da fábrica de sabão Helvetia, em Olten.

Detentor de uma licença para as câmeras Lumière, fez as primeiras projeções com um cinematógrafo na Suíça na Exposição Nacional de 1896, em Genebra.

Morreu em Cannes, França, em 1922.

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