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“A Aranha Negra” é lançado no Brasil

Casa no campo
O Centro Cultural de Gotthelf foi aberto nessa casa, a antiga residência do pastor e escritor Jeremias Gotthelf entre 1831 e 1854. Nela o famoso autor suíço escreveu todos os seus romances. Keystone

Um dos títulos mais representativos da literatura em língua alemã no século 19, o livro "A Aranha Negra", escrito em 1842 pelo suíço Jeremias Gotthelf, foi lançado no Brasil. 

A partir de uma narrativa densa, a obra mais conhecida de Gotthelf – pseudônimo do pastor protestante Albert Bitzius (1797-1854) – retrata com fidelidade e riqueza de detalhes a vida rural na região suíça do Emmental. Com referências à Bíblia, às lendas medievais e aos relatos sobre os surtos de peste negra que atingiram a Suíça, a história conta a luta de um povo para se livrar de um monstro – a aranha negra – após o rompimento de um pacto com o diabo.

Lançado pela Editora 34 e traduzido por Marcus Mazzari, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, o livro “A Aranha Negra” já é apontado como um dos grandes acontecimentos literários deste verão brasileiro, em particular para os amantes da literatura alemã. Por ocasião de seu lançamento, durante a Jornada de Língua Alemã da USP, foi realizada a palestra “Figurações do Pacto no Emmental Suíço e no Sertão Brasileiro”, com a participação de Helmut Galle, professor do Departamento de Letras Modernas da universidade e especialista em Literatura Alemã. swissinfo.ch conversou com Mazzari e Galle:

swissinfo.ch: Qual a importância e significado da publicação da obra de Jeremias Gotthelf no Brasil?

Marcus Mazzari: Embora sendo um escritor dos mais extraordinários, Jeremias Gotthelf era praticamente desconhecido no Brasil (e mesmo em Portugal). Estudantes de literatura conheciam seu nome quase que exclusivamente a partir das referências elogiosas feitas pelo crítico Walter Benjamin, muito lido nos cursos de Letras (sobretudo seu ensaio “O Narrador”). A tradução de “A Aranha Negra” – uma novela antológica não só da literatura suíça (e da língua alemã), mas também da literatura europeia de maneira geral – ajudou a tornar Gotthelf um pouco mais conhecido no Brasil, como vejo por comentários e mensagens de vários leitores que me são enviadas.

“A Aranha Negra”, na medida em que conta a história de um pacto com o diabo e, além disso, se enraíza profundamente na cultura popular, revela afinidades importantes com “Grande Sertão: Veredas”, que pode ser considerado o maior romance brasileiro do século XX. Desse ponto de vista, a novela suíça pode apresentar um significado especial aos leitores brasileiros, como de fato também pude perceber em diversos casos concretos. Trata-se, enfim, de uma narrativa de excepcional qualidade literária, como observou ninguém menos do que Thomas Mann, e, como dito, enraizada na tradição popular da Suíça (como a obra de Guimarães Rosa no sertão brasileiro).

swissinfo.ch: Quais dificuldades o senhor encontrou para traduzir uma obra de 1842?

M. M.: Traduzir essa obra repleta de expressões suíças difíceis até para um leitor culto da Alemanha ou Áustria não foi tarefa fácil. Felizmente tive acesso a léxicos e dicionários voltados a particularidades desse dialeto alemânico (Bärndütsch, o alemão de Berna) e, mais especificamente ainda, ao vocabulário de Gotthelf. E pude contar também com a preciosa ajuda de dois conterrâneos de Gotthelf – Heinrich Schütz e Werner Eichenberger – que conheci em Lützelflüh, onde se encontra uma instituição cultural dedicada a esse escritor e pastor suíço, o Gotthelf Zentrum Emmental Lützelflüh.

Alguns dos termos que ofereceram dificuldades para o trabalho de tradução estão ligados à tradição culinária da região do Emmental, como Kannenbirenschnitze, peras (Birnen, em alemão culto) em forma de jarro (Kanne) que são fatiadas em quatro partes e usadas em pratos com carne ou toucinho. Ou a palavra Weinwarm, espécie de “vinho quente” (de certo modo, correspondente ao “quentão” brasileiro) que entra numa sopa levemente alcóolica, também típica da região. E, como essas, há ainda várias outras ocorrências na novela.

swissinfo.ch: Como foi lidar com a narrativa de Gotthelf?

M.M.: Mais dificuldades ainda enfrentei na tradução de topônimos e na descrição geográfica dos vales, montanhas e aldeias em que se passam os acontecimentos da novela que, além disso, se situa em três dimensões temporais distintas: o século XIX, em que acontece o almoço de batizado em cujo âmbito as duas histórias sobre a aranha são narradas; depois o século XIII, em que a aranha surge de uma metamorfose e provoca a primeira mortandade; e, por fim, o século XV (por volta de 1434), quando temos a segunda devastação causada pela aranha (em ambos os casos trata-se de uma alegoria de epidemias de peste negra que assolaram essa região do Emmental). Exemplos desses topônimos de difícil tradução são Bärhegenhubel, sendo Hubel o termo suíço para colina (Hügel), ou Kilchstalden, Kilche como a forma no dialeto alemânico da região para Kirche, igreja.

Às vezes os deslocamentos geográficos dos camponeses submetidos a terrível despotismo feudal, tal como narrados por Gotthelf, não ficavam inteiramente claros para mim e então me ajudavam as elucidações que vinham daqueles moradores da região que mencionei, Eichenberger e Schütz. Para dar outro exemplo: quando me deparei com a passagem em que o narrador fala de um camponês experiente que teria vivido em Haslebach, eu não sabia propriamente que lugar era esse; e então recebi a explicação de que se trata de uma grande propriedade rural, até hoje existente, nas imediações de Sumiswald, no Emmental. De modo geral, o alemão de Gotthelf apresenta muitas especificidades e não poucas expressões são, como dito, de difícil compreensão mesmo para um leitor de língua alemã culto (excetuando-se, claro, os leitores familiarizados com as ramificações do Bärndütsch). Esse é também o caso de “A Aranha Negra”, mas por fim todos os esforços exigidos pelo trabalho de tradução foram amplamente recompensados pela excepcional qualidade literária dessa novela.

swissinfo.ch: Qual a importância e significado da publicação da obra de Jeremias Gotthelf no Brasil?

Helmut Galle: No Brasil existem muito poucas traduções de obras do realismo em língua alemã. Só recentemente foram lançados alguns livros que se consideram obras fundamentais na germanística: “Effi Briest”, de Theodor Fontane, “Romeu e Julieta na Aldeia”, de Gottfried Keller e, agora, “A Aranha Negra”, de Jeremias Gotthelf. Essas traduções preenchem pelo menos parcialmente uma grande lacuna e permitem ao público brasileiro o acesso a textos que formam o cânone do século XIX nos países de língua alemã. No caso de Gotthelf (e de Keller) as traduções podem contribuir para uma melhor conscientização dos leitores de a literatura de expressão alemã ter recebido algumas de suas maiores contribuições dos autores da Suíça e da Áustria. A novela de Gotthelf expõe não só a realidade cultural dos suíços no campo, ela também apresenta uma vertente específica da narrativa a “Dorfgeschichte (história da aldeia)”, que é típica para Gotthelf. A trama apresenta traços que muitos leitores brasileiros não considerarão anacrônicos, mas bastante atuais.

swissinfo.ch: O jornalista brasileiro Otto Maria Carpeaux comparou Gotthelf a Homero. O que o senhor acha dessa comparação? A importância do autor para a literatura suíça pode ser dimensionada desta forma?

H.G.: Essas comparações muitas vezes são entendidas como afirmações sobre o valor de um autor, coisa que eu considero pouco procedente e útil. O que é interessante de fato são as semelhanças estilísticas (um realismo “objetivo” que se dedica à apresentação serena das circunstâncias vivenciais dos homens) e o paralelo do mundo tradicional e simples dos camponeses que se aproxima, de certa maneira, à vida arcaica e rural descrita nas últimas canções da Odisseia.

swissinfo.ch: Como o senhor avalia a presença do alemão como língua estrangeira no Brasil atual? Qual o espaço hoje no Brasil para a divulgação da literatura em língua alemã?

H.G.: O alemão como língua estrangeira é um dos idiomas mais aprendidos depois do inglês e do espanhol, apesar de ser considerado “difícil”. Um curso de aprendizagem a distância oferecido pelo MEC e o DAAD teve mais de mil inscrições de alunos da USP para 60 vagas no ano passado. O curso de graduação Letras /Alemão da universidade conta com 350 alunos e tem todas as vagas preenchidas a cada ano.

Uma questão bem diferente é a da literatura traduzida. Qualquer pessoa com interesse na literatura conhece e aprecia “os grandes nomes” da literatura de língua alemã. Que esse panorama seja ampliado por autores excelentes, mas menos conhecidos como Gotthelf e Keller, é um grande avanço. O número de leitores no Brasil, porém, é pequeno e as tiragens dos livros são limitadas. Importante ressaltar que esses livros foram publicados por uma editora que consegue manter a oferta dos seus livros continuadamente, de forma que as traduções não desaparecem depois de dois ou três anos, como acontece muito.

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