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Filme resgata a história oculta da escravidão depois da abolição do tráfico

Gilda e amiga revisam fotos antigas
Gilda Brasileiro (à esq.) traz em si a história de duas diásporas: filha de uma judia-alemã e de um afrodescendente, ela mergulhou na pesquisa de histórias mal contadas para melhor informar as novas gerações. VIROfilm

Um país onde não se preserva nem a memória dos centros antigos das grandes cidades. Onde o maior e mais importante museu histórico simplesmente se dissolve consumido pelo fogo. Uma cidadezinha no Vale do Paraíba, São Paulo, que tem uma senzala como atração turística. Foi nesse contexto que uma mulher, filha de mãe judia-alemã e pai afrodescendente, e um cineasta também afrodescendente foram buscar a verdade e resgatar a memória da escravidão no Brasil.

“Gilda Brasileiro – Contra o esquecimento”, documentário suíço-brasileiro-alemão, a ser exibido no Festival de Solothurn, mostra a trajetória de Gilda, uma mulher de 52 anos, que sai do Rio de Janeiro para morar em Salesópolis, um dos pólos cafeeiros paulistas do século 19, e lá se depara com uma inusitada atração turística: uma senzala bem preservada onde turistas escutam uma espécie de conto da carochinha contada pelos atuais proprietários da fazenda, descendentes de um certo Capitão Pereira que, segundo eles, teria achado e se apossado das terras onde fica a senzala ao encontrar a propriedade abandonada.  

O ponto alto do tour são as correntes, ainda inteiras, onde os escravos insurgentes ficavam presos para receberem os castigos. Como se ali fosse o cantinho da reflexão das crianças desobedientes e não uma câmara de torturas. 

O documentário mostra a luta de Gilda para provar que, mais uma vez, a história da escravidão no Brasil estava sendo contada de forma ficcional. Com o recurso da metalinguagem, o filme acompanha as gravações do documentário que a própria Gilda está rodando sobre a Rota Dória, a estrada aberta na Mata Atlântica que liga São Sebastião ao Vale do Paraíba, e por onde mais de um milhão de escravos foram traficados ilegalmente. Ao mesmo tempo, faz um paralelo com as imagens de Marc Ferrez, principal fotógrafo do século 19 no Brasil, feitas sob encomenda para promover a cultura cafeeira no exterior.

swissinfo.ch foi conversar em Zurique com o casal de diretores e produtores do filme, a suíça Viola Scheuerer e o brasileiro Roberto Manhães Reis.

54. Solothurner Filmtage

O Festival de Cinema de SolothurnLink externo é o mais importante ponto de encontro da indústria cinematográfica suíça. Como uma vitrine privilegiada da produção do país, nas quatro línguas nacionais e abrangendo todos os formatos (longas de ficção, documentário, curtas, e animação), o festival recebe uma média de 60.000 visitantes por ano.

A produção suíça é reconhecida internacionalmente pelos documentários, e é interessante notar que muitos, se não a maioria, dos documentários selecionados este ano enfocam tópicos estrangeiros, tendo sido filmados em realidades distantes das Américas até o Extremo Oriente.

Na seção “Rencontres”, o festival homenageia o ator suíço Bruno Todeschini, que há mais de 30 anos trabalha com alguns dos mais significativos autores do cinema europeu de arte. Todeschini apresentará alguns de seus filmes favoritos e conversará com o público em uma ‘master class’ no dia 27 de janeiro, às 11:00 (Cinéma Uferbau).

A 54ª edição começa em 24 de janeiro e vai até 31 de janeiro.

swissinfo.ch: Como voces chegaram na Gilda e como foi o processo de pesquisa e filmagens?

Viola Scheuerer: Foi um processo longo, demorou sete anos. Chegamos na história da Gilda através de um outro projeto, chamado “Revelando os Brasis”. Gilda havia sido selecionada com o projeto de seu documentário sobre a Rota Dória. Quanto mais nossa pesquisa avançava, ficávamos mais envolvidos e afetados. 

Eu, como suíça, com uma ligação de vinte anos com o Brasil, e o Roberto, que é afrodescendente, sempre quisemos saber mais da história dos negros no Brasil porque falta muita, muita informação. A Gilda abriu nossos olhos. Não devemos simplesmente aceitar as histórias que nos são contadas, devemos sempre duvidar. 

Nesse tempo, Roberto descobriu as fotos do Marc Ferrez que permeiam todo o documentário. Nos desdobramos sobre essas fotos por meses, ampliamos, discutimos e finalmente fomos atrás das matrizes. Assim ficou claro para o Roberto que essa seria uma grande chance de falar sobre a verdade da escravidão.

Roberto Manhães Reis: Foi um filme de descobertas. Quando encontrei o livro com as fotos do Marc Ferrez, onde você vê pessoas que foram escravizadas posando na frente da senzala, me emocionei muito. Claro que as fotos sao encenadas, mas ainda assim existe uma autenticidade. Eu queria ver o rosto daquelas pessoas e o que eles me diziam. 

Fomos então atrás do material original do Marc Ferrez e o Instituto Moreira Sales digitalizou essas imagens em alta. Aí sim começou uma nova fase, de pesquisa, de procurar os indícios de humanidade daquelas pessoas. Apesar de as fotos serem encenadas – elas foram feitas para promover as exportações de café brasileiras no exterior – existe uma verdade que está nas expressões das pessoas fotografadas. 

Fomos nos envolvendo mais e mais e a escolha da narrativa em primeira pessoa, com minha voz, foi natural. Como afrodescendente, comecei a me perguntar cada vez mais de onde saíram meus tataravós, quais foram as histórias deles. Eu sei até a história do meu avô, mas antes dele não existe memória, é como se ninguém tivesse existido. A história dos afrobrasileiros se perdeu. E a história deles é a história da escravidão.  

Depois da abolição houve um desejo nacional de mudar a página. Parecia melhor esquecer ou recontar essa parte da história brasileira. Essa retomada da verdade, do que realmente aconteceu, isso demorou muito tempo para acontecer.

Senzala
Senzala que foi convertida em ponto turístico, e que esconde a história real de escravos traficados na zona cafeeira mesmo depois de abolida a escravidão. VIROfilm

swissinfo.ch: A Gilda é filha de uma judia-alemã e de um afrodescendente…

VS: Gilda carrega duas diásporas que sabem da importância do passado no presente. Todo esse racismo estrutural que existe no Brasil está baseado nessa historia, no século 19, na fundação do Estado nacional brasileiro. O Brasil aboliu o tráfico transatlântico de escravos (1831) e logo deu um jeito de continuar com o tráfico ilegal. Não era uma pessoa que traficava os escravos, era uma teia onde muita gente, de diferentes profissões, participava. 

A Gilda foi atrás de documentos que provam que sim, existia toda uma rede de tráfico illegal de escravos quando a escravidão já estava abolida no Brasil. No caso do Vale do Paraíba, os navios chegavam no porto de São Sebastião com milhares de escravos que eram conduzidos pela estrada aberta no meio da Mata Atlântica, e subiam a serra a pé até chegar nas fazendas cafeeiras.

RMR: Nesse trajeto na mata existiam inclusive fazendas de engorda. Depois das viagens extenuantes, os que chegavam vivos encontravam-se muito debilitados. Logo no início da subida da serra, a Gilda encontrou as ruínas do que seria uma fazenda de engorda. Na história perpetuada ali era apenas mais uma ruína de uma fazenda antiga e não o lugar onde os escravos eram nutridos para valerem mais. Os escravos não eram pessoas, eram mercadorias, e como mercadorias eram tratados.

swissinfo.ch: Como vocês observam o racismo hoje na Suíça e no Brasil? Tem como comparar?

RMR: É difícil comparar, pois são dois países com histórias diferentes. O Brasil nasceu de uma sociedade escravocrata. O que eu observo no Brasil é que o debate sobre racismo veio à tona nos últimos tempos. Tem muita gente saindo do armário e externando o seu preconceito. Eu acho importante este debate agora dentro da sociedade brasileira e espero que no final possamos de uma vez por toda superar o racismo. 

Na Suíça e na Europa, a questão dos refugiados está colocando à prova os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O medo que vem sendo propagado é um problema nessa questão do racismo. É claro que sempre existiu racismo em parte da sociedade européia. O preconceito de cor é uma invenção européia. Ele está diretamente relacionado com o projeto de colonização das Américas e a utilização de mão de obra escrava africana. 

O racismo é um conceito, que retira a humanidade do outro, reduz o outro à suas características físicas, declara a sua inferioridade e por fim permite a sua exploração. Essa história aconteceu anteontem e ontem, mas o sentimento de superioridade ainda perdura na Europa, e ele é um osso duro de roer. 
VS: Observo o racismo crescer novamente, aqui e lá. Observo que “soluções simples” dos partidos de extrema direita ocupam espaço nas mídias, e acabam desviando a nossa atenção de problemas essenciais. Sinto falta de ler nos jornais sobre os milhares de voluntários que ajudam os refugiados. Pessoas que acreditam em direitos iguais para todos. Sinto falta da perspectiva dos outros. 

No Brasil existe um racismo estrutural. Uma criança negra cresce numa sociedade que só consegue enxergar ela como empregada, assistente ou traficante. As barreiras que um jovem da periferia enfrenta até chegar a conclusão do ensino superior são gigantescas.

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swissinfo.ch: Além do filme de vocês, onde as pessoas podem encontrar informações sobre a escravidão no Brasil?

RMR: Nos últimos anos foram lançados diversos livros que tratam da última fase da escravidão no Brasil. Estes livros foram essenciais para a conclusão do nosso documentário. Livros como “Africanos Livres” de Beatriz Gallotti Mamigonian, ou “E o Vale era o Escravo” de Ricardo Salles.
VS: Depois que o filme ficou pronto, saiu o Dicionário da Escravidão e Liberdade, organizado por Lília M. Schwarcz e Flávio Gomes, que reúne pesquisas preciosas. Importante para a gente foi também “O Plano e o Pânico” de Maria Helena P. Toledo Macha, que fala sobre os movimentos sociais na década da Abolição e o livro “A Força da Escravidão” de Sidney Chalhoub.

Gilda Brasileiro – Contra o Esquecimento poderá ser visto no Festival de Solothurn (em português com legendas em alemão) nos seguintes dias e horários:

24. 01, às 20h30, Kino Palace (com a presença dos diretores e de Gilda)

30. 01, às 12h00, Kino Palace

 

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