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Latifa Echakhch: “O que ouço quando volta o silêncio?”

Latifa Echakhch
© Pro Helvetia / Christian Beutler

Latifa Echakhch representa a Suíça na Bienal de Veneza. Nesse perfil, a artista fala sobre como as lembranças nunca são apenas pessoais e sobre a riqueza de não ter que representar uma identidade clara.

A história começa com um piano. “Eu queria aprender a tocar”, diz Latifa Echakhch. “Para isso você precisa de um piano”, respondeu-lhe um amigo artista, “e para o piano, um apartamento, e para o apartamento um país”. Ela se decidiu então pela a Suíça.

Há dez anos, a artista francesa nascida no Marrocos vive em Vevey com seus filhos. É indiferente se foi o amor ou outros motivos que também a trouxeram para a Suíça, esta é uma bela história. E ela nos leva diretamente ao Pavilhão Suíço de Veneza, para o qual a artista enveredou em um novo caminho musical.

“Senti uma forte necessidade de regenerar meu trabalho e de entender como eu tinha trabalhado até agora”, diz-nos Latifa Echakhch. De fato, parece ter havido poucas interrupções em sua carreira até agora. Desde que completou sua formação artística na França, em Grenoble, Cergy perto de Paris e Lyon no início dos anos 90, ela rapidamente teve sucesso com suas grandes instalações. A cada ano ela esteve presente em numerosas exposições coletivas e cada vez mais também em mostras individuais.

Instalação artística
“The Concert” no pavilhão suíço na Bienal de Veneza. im Schweizer Pavillon an der 59. Kunstbiennale in Venedig, Detailansicht der Installation. Christian Beutler/Keystone

Em 2013 ela recebeu o Prix Marcel DuchampsLink externo, o mais importante prêmio de arte francês, e em 2015 o Prêmio de Arte de Zurique. Ela foi recentemente incluída no programa da Pace Gallery, uma das galerias mais poderosas do mercado global de arte. Sua aparição solo na Bienal de Veneza é vista como um trampolim para a cena internacional de arte.

“É claro que a Bienal de Veneza não é o momento ideal para colocar a si mesma em questão”, admite Latifa Echakhch. Ela poderia ter continuado com seus meios habituais. Mas ela usou o projeto para explorar um território desconhecido. “Ao invés de trabalhar como artista visual, eu fingi ser música”.

Durante o período de dois anos de preparação, ela estudou os instrumentos, a teoria e teve aulas de canto. Ela não estava preocupada em se apresentar como música, mas sim com questões fundamentais. “O que acontece em nosso corpo quando ouvimos ou tocamos música? Como vivenciamos o tempo na música? E como posso usar essas percepções na arte visual”?

O tempo de uma escultura

A música estava presente em sua extensa obra muito antes da Bienal. Em 2012, por exemplo, ela criou suas primeiras obras intituladas “Tambores”, que eram telas circulares de quase dois metros de diâmetro sobre as quais ela pingou tinta preta.

O título do trabalho indicava a duração em cada caso. “Quando as gotas de tinta atingiam a tela, elas produziam o som de um tambor, por isso batizei as obras assim. Originalmente, eu não pensava no caráter musical. Eu estava preocupada com a duração dos pingos. Mas o resultado foi música”.

Installation
“The sun and the set”, Charleroi, Belgien (2020) Leslie Artamonow

Antes da mudança do foco de Latifa Echakhch para a música, era a temporalidade que efetivamente mais a interessava e dava às suas obras um caráter performático. Em obras como o afresco “Cross Fades” (não confundir com “Crowd Fade”, de 2017) ou “The Sun and the Set Series”, ela cobriu as pinturas com uma camada de cimento, para depois raspá-las em certas partes para expor a pintura.

Os pedaços de cimento permanecem como traços no chão. Durante a criação, porém, o artista está sozinho; não se trata aqui de performances destinadas a um público. Mas a visibilidade do processo dá às obras de arte profundidade temporal e abre espaços narrativos. O que aconteceu? O quadro sai ou desaparece?

O que ouvimos quando volta o silêncio?

Por sua presença no Pavilhão Suíço, Latifa Echakhch acentuou ainda mais estes temas. Para isso, ela recorreu à perícia e experiência do compositor e percussionista Alexandre Babel e do historiador de arte e ex-Dj Francesco Stocchi.

Installation
Exposição “Falling, lovely and beautiful”, Kiosk Ghent, Bélgica (2018) Tom Callemin

“The Concert” é o nome da exposição cujo segredo será finalmente revelado no dia 23 de abril. Mas quem espera a experiência de um concerto está enganado. Ao invés disso, os visitantes devem se sentir como depois de um concerto, quando ainda se está cheio de música, mas esta já está se desintegrando em pedaços de memória; quando os fragmentos ecoam em nossa memória como um refrão, a parte de um violino, uma certa passagem com os tambores, mas também impressões visuais como um jogo de luzes.

“Em um concerto, você nunca está sozinho”, descreve Latifa Echakhch. “Você é parte de uma massa de pessoas que se movem no mesmo ritmo. Só depois do concerto é que estou novamente sozinha. Tenho de volta minha memória e minhas lembranças pessoais desta música. O que ouço quando volta o silêncio?”

Neste momento, a reconstrução do passado começa na narrativa individual. Na perda que a irrecuperabilidade do tempo significa, parece haver um poder criativo e uma grande liberdade no trabalho de Latifa Echakhch. “É claro que há melancolia em meu trabalho. Mas a mudança temporal nos permite estar ao lado das coisas e senti-las de forma diferente”.

Noise and Missing Words
Noise and Missing Words (2014) © Latifa Echakhch

A comunalidade das memórias pessoais

Latifa Echakhch também trabalha com memórias pessoais. Ela faz com que fotos de suas viagens feitas com telefones celulares sejam pintadas em enormes cortinas de teatro e as conecta com objetos pessoais que ela cobre com tinta preta. “Uso tais coisas como ponto de partida para minhas lembranças”.

Não se trata aqui da minha própria história. Todos nós temos a sensação de sermos únicos. Mas na realidade, temos muito em comum. Um primeiro encontro amoroso, por exemplo, não é nada fora do comum. Tento compreender minhas memórias e sentimentos precisamente para encontrar neles o que tenho em comum com os outros”.

Desta forma, ela eleva o pessoal ao político. As memórias, como mostra seu histórico de migração, entre outras coisas, também estão ligadas a “expropriações”, título de um de seus grupos de obras. Quando ela chegou a Aix-les-Bains, no sopé dos Alpes da Savoia, aos três anos de idade, seus pais deixaram de falar marroquino em casa.

Eles estavam ansiosos para se integrarem plenamente, e seus filhos aceitaram a perda de sua própria cultura para tanto. “O que muitos chamam de multiculturalismo positivo não era nada de multiculturalismo para mim. Como muitas mulheres imigrantes, eu experimentei a discrepância de não pertencer a uma cultura nem a outra”, diz Latifa Echakhch.

Dérives
Dérives (2015) ©Reinhard Haider

Ela dá expressão a este desaparecimento em inúmeras obras. Na série de desenhos ” Noise and Missing Words” de 2018, por exemplo, restam apenas as marcas diacríticas dos textos poéticos árabes.

Em 2007, ela criou o primeiro trabalho do grupo “Dérives”, no qual ela explora a ornamentação da arte e arquitetura islâmica. Ela pintou um enorme padrão no piso com alcatrão, de modo que era impossível capturar toda sua forma. Mais tarde, ela desenvolveu o tema com acrílico sobre tela.

As linhas aparecem como vestígios da artista cujos caminhos para suas raízes culturais se confundem, semelhantemente às perambulações sem rumo (dérives) com as quais os Situacionistas tentaram explorar a cidade nos anos 60.

A riqueza de não representar nada

No passado, Latifa Echakhch gostaria de ter tido uma identidade clara. “Eu gostaria de ter dito, sim, eu sou marroquina, sim, eu sou francesa, ou agora, sim, eu sou suíça. Mas isso não é verdade. Hoje eu percebo que é uma grande riqueza não representar algo, mas estar em toda parte e em nenhum lugar”.

Fantasia
Fantasia (Empty Flag, White), na exposição “ILLUMInations”, Bienal de Veneza (2011) © 2011 Roberto Marossi

Já em 2011, a artista fez um comentário sobre a ideia de nacionalidade na Bienal de Veneza com sua obra de destaque “Fantasia”. Ela orlou o caminho no Giardini com mastros de bandeira vazios e entrecruzados.

Entretanto, ela está ciente de que sua participação enquanto “representante da Suíça” no Pavilhão Suíço tem significado. “Eu escolhi morar na Suíça. Não foi a imigração de meus pais franceses, mas a minha própria. E além disso, faço parte da história de muitos artistas estrangeiros que formaram a cultura suíça”.

A propósito, “The Concert” não passa inteiramente sem música “real”. Um disco contendo uma peça musical de 21 minutos será lançado para acompanhar a exposição. Alexandre Babel o gravou em Berlim com vários músicos. “Você pode ouvir música, as salas do pavilhão, o cascalho do Giardini, os ecos de nossas conversas. O disco condensa nossa pesquisa dois anos em uma partitura musical”, diz entusiasmada Latifa Echakhch. “Quando escutei a gravação, percebi que podia sentir o que vivi nos últimos dois anos em termos de uma revelação sonora”.

Adaptação: DvSperling

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