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Editora lisboeta resgata do olvido mestre surrealista suíço

Retrato de M. Sandoz
Acima de tudo, um esteta: Maurice Sandoz dedicou sua vida à literatura, pintura, música, viagens, e ao colecionismo. FEMS, Fondation Edouard et Maurice Sandoz, Pully (Suisse)

A editora portuguesa E-Primatur, acaba de publicar o livro "Recordações Fantásticas" do escritor suíço Maurice Sandoz (1892-1958), tirando do esquecimento um conjunto de histórias surreais ilustradas pelo pintor espanhol Salvador Dalí. Há seis décadas as obras de Sandoz, considerado um dos grandes nomes da literatura fantástica helvética, não eram reeditadas em português - e mesmo nas línguas nacionais, alemão e francês, não se republica sua obra desde os anos 1990. 

Maurice Sandoz era, como o nome sugere, herdeiro da farmacêutica Sandoz, hoje uma subsidiária da Novartis. Dedicou-se não só à literatura (prosa, poesia e drama), mas também à química, à pintura, à música e ao colecionismo. Poderíamos tentar defini-lo como um milionário apaixonado pela beleza na arte e na ciência, um esteta curioso que percorreu vários países mas que nunca deixou de voltar à Suíça. 

Era no seu castelo em Burier, às margens do Lago Léman, onde passava todos os anos uma temporada estival. Morreu aos 66 anos, deixando para trás uma obra diversa mas poucos registos biográficos (ver box). Não casou nem deixou descendentes. Há poucas peças para reconstruirmos um retrato do artista. Restam os livros – cerca de 15 títulos, traduzidos em cinco línguas -, mas mesmo esses parecem ganhar pó nas bibliotecas.

Capa do livro Recordações Fantásticas
Divulgação

“É um autor suíço que está claramente a cair no esquecimento,  e  isto é uma pena, não faz sentido nenhum para mim”, afirma Hugo Xavier, responsável pela E-primatur. O editor português descobriu o livro “Recordações Fantásticas” por acaso em Lisboa. Encontrou-o num alfarrabista (como são chamados os sebos em Portugal), há muitos anos, no começo da sua carreira como editor literário. Desde então alimentou a ambição de reeditar esta obra que reúne as memórias bizarras de um narrador cujo avô, cirurgião, colecionava pele humana num álbum.

Como Dalí foi parar aqui?

“Aquilo que me chamou atenção no início não foi o Maurice Sandoz em si, que eu desconhecia, e que só depois descobri estar ligado aos laboratórios Sandoz, mas sim as ilustrações de Salvador Dalí. Como é que Dalí se ligou a este nome ‘desconhecido’? Surgiu então uma enorme curiosidade de saber como o autor conseguiu pôr Dalí a ilustrar os seus textos. A partir daí, Maurice Sandoz foi sempre um autor que tive vontade de publicar”, explica o editor português à swissinfo.ch. A obra acabaria por ser escolhida para “ressuscitar” a famosa coleção Livro B, editada em Portugal pela falida editora Estampa e cujos direitos foram entretanto adquiridos pela E-Primatur.

As três únicas edições de Sandoz em português foram distribuídas em Portugal pela Editorial Organizações há mais de 60 anos, quando Sandoz ainda estava vivo e tinha uma residência em Lisboa: “Recordações Fantásticas e Três Histórias Singulares” (1955), “O Labirinto” (1956) e “O Limite” (1957), todos os títulos ilustrados por Dalí. 

O suíço que apreciava a lusofonia

O escritor Maurice Sandoz amava viajar, era um esteta cosmopolita. Como não tinha a obrigação de trabalhar na empresa da família – a farmacêutica Sandoz já contava então com uma gestão profissionalizada -, esteve quase sempre em movimento. Viveu em Nápoles e Roma, onde conheceu Dalí, nos anos 30, e envolveu-se com o movimento Surrealista. Após a Segunda Guerra Mundial, adquiriu uma residência em Lisboa no número 21 da Rua dos Caetanos, onde todos os anos passava temporadas. Visitou o Brasil nos anos 50, assim como o México, escrevendo posteriormente livros de viagem sobre estes dois países da América Latina. Na obra “Un Peu du Brésil”, Sandoz comenta 33 fotografias a cores de Kurt Ammann, mostrando um acentuado interesse pela história do Brasil e pela língua portuguesa (que dominava, aliás, confessando mesmo ter compreendido o “poder” da palavra “saudade”). O interesse pela lusofonia também surge no seu trabalho como compositor; Sandoz produziu cerca de 30 obras musicais e duas delas têm os seguintes títulos: “Saudade” e “Carnaval”.

Desde então, Sandoz nunca mais despertou o interesse do mercado editorial lusófono. O autor também não foi publicado no Brasil, a avaliar pelos títulos disponíveis na Biblioteca Nacional. Por que razão um escritor de culto cai assim no ostracismo?

Um explicação possível está no fato de a literatura fantástica ser um nicho editorial. Hugo Xavier explica que, em Portugal, “o mercado editorial é muito comercial, hoje dominado pelo romance histórico e pelo policial. 

“Quando entramos numa literatura mais séria e sofisticada, como a de Sandoz,  estamos num nicho de mercado”, explica o editor da E-Primatur. Algo semelhante ocorre no mundo francófono, onde o elogio do fantástico é muito menos comum do que nos mercados germânico e anglófono. E Sandoz escrevia precisamente em francês, embora fosse um poliglota (e até dominasse o português).

Já nos Estados Unidos, foi reeditado algumas vezes. O seu livro “O Labirinto” até deu origem a um filme norte-americano. “Contudo, no mundo francófono, há um total vazio desde 1958. Sandoz desapareceu, ninguém mais parece se interessar nem pela sua vida nem pela sua escrita”, escreve o jornalista suíço Jacques-Michel Pittier, profundo conhecedor da obra literária e musical de Sandoz, no prefácio de “Le Labyrinthe”, editado em 1994 pela Melchior em Genebra.

É certo que os herdeiros Sandoz teriam meios e influência para publicar a sua obra completa vezes sem conta. Afinal, a Fundação Edouard e Maurice Sandoz mantém a tradição da família de apoiar as artes com prêmios generosos. Mas, não havendo uma vocação editorial na carteira de negócios da família, qual seria a lógica de reeditar textos cujo valor intrínseco deveria, por si só, merecer a atenção dos editores? 

Hugo Xavier acredita que, se a família financiasse a publicação, estaria retirando valor a um artista que foi, nas palavras do crítico literário português Luís Miguel Queirós, “uma das mais fascinantes figuras dos meios culturais europeus de meados do século XX”.  Agora, passadas seis décadas, os leitores lusófonos voltam a encontrar Sandoz nas livrarias. E, se depender da E-Primatur, dentro de alguns anos novos títulos do escritor suíço poderão estar disponíveis em Portugal.

Escritor Maurice Sandoz nas ruínas de Chichen Itza
Sandoz nas ruínas de Chichen Itza, México. FEMS, Fondation Edouard et Maurice Sandoz, Pully (Suisse)

Uma biografia fugidia

Maurice Sandoz quase não deixou rastos biográficos e é por isso que quem se debruçou sobre a sua vida e obra o descreve, em francês, como “insaisissable” – ou seja, uma figura indescritível, esquiva, fugidia. 

“Discreto, enigmático, assim era Sandoz, e certamente por inclinação: cansamo-nos indo atrás das suas pistas, ele está em todo lado e em parte nenhuma, deixando para trás pouco mais que uma correspondência vaga e parcimoniosa”, escreve o jornalista Jacques-Michel Pittier no prefácio da edição suíça do romance “O Labirinto”. 

Sabemos pouco sobre a vida do autor e mesmo o pouco que sabemos por vezes é incerto. Nascido na Basileia, em 1892, Sandoz dedicou-se à ciência antes de enveredar pelas artes. Doutorou-se em química pela Universidade de Lausanne em 1916, mas logo passou a se dedicar à pintura, à escrita, à música, às viagens e ao colecionismo porque assim desejava. Acumulou uma vasta coleção de obras de arte, relógios antigos e autómatos, estes dois últimos hoje expostos no Museu Relojoeiro de Locle, local onde este setor da indústria suíça nasceu e singrou. Faleceu no dia 5 de Junho de 1958 na clínica Cecil, em Lausanne. O genealogista Robin Moschard indica no site da Sociedade de Genealogia de Neuchatel que se tratou de suicídio, informação que é reiterada em vários textos. Contudo, a FEMS não confirma a circunstância da morte do escritor.


 

 

 

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