Tibetanos e uigures ameaçados na Suíça

Um novo relatório científico, feito a pedido de Berna, aponta como a China intimida tibetanos e uigures na Suíça. Ainda não se sabe o que deve resultar dessas constatações.
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Essa foi a primeira vez que o governo de um país mandou que realizar um estudo científico, a fim de verificar o quanto as comunidades de exilados têm sido vítimas de vigilância e intimidação por parte do governo chinês dentro de suas próprias fronteiras. O relatório, encomendado pelo governo suíço, foi realizado pelo professor Ralph Weber e sua equipe do Instituto Europeu da Universidade da Basileia.
O estudoLink externo está centrado nos ataques aos direitos fundamentais e no exercício sistemático da pressão sobre as comunidades tibetanas e uigures na Suíça – atitudes atribuídas ao Estado (e partido) chinês de 2000 até os dias de hoje. Tanto meras tentativas quanto ataques efetivos foram considerados na pesquisa.
O relatório leva a uma conclusão evidente: os membros da diáspora tibetana e uigur na Suíça vêm sendo monitorados, ameaçados e, em alguns casos, pressionados por agentes da República Popular da China para que retornem ao território chinês. De acordo com o estudo, essa chamada repressão transnacional pode assumir várias formas, entre elas telefonemas de ameaças do governo chinês, reivindicando que os envolvidos espionem a própria comunidade ou fazendo referências à segurança de membros das famílias dos mesmos que ainda vivem na China.

Acima de tudo os membros da comunidade tibetana têm a sensação de que as autoridades suíças também estão cerceando seus direitos fundamentais. Isso acontece, por exemplo, quando manifestações em frente ao Parlamento suíço são limitadas; ou no contexto das práticas de asilo que estão se tornando cada vez mais restritivas na Suíça. Segundo os envolvidos, isso acaba afetando toda a comunidade e não apenas os indivíduos politicamente expostos. Tais constatações foram feitas pela pesquisa com base na condução de 60 entrevistas.
“Como pesquisador responsável, abordei a questão de maneira aberta a qualquer resultado”, diz Ralph Weber, autor do estudo e especialista em assuntos relacionados à China. “Queríamos mostrar os fatos. Em retrospecto, posso dizer que os resultados nessa linha já eram esperados”, comenta.
O Ministério das Relações Exteriores da China rejeita o relatório do Conselho Federal que sugere que a China está reprimindo os tibetanos e uigures que vivem na Suíça. Ele fala de “informações falsas”.
Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China disse em uma coletiva de imprensa na quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025, que o governo suíço era obrigado a “respeitar os interesses fundamentais e as principais preocupações da China e parar de divulgar informações falsas para o mundo exterior”.
De acordo com um relatório da agência de notícias AFP, o porta-voz também disse que se tratava de uma “manipulação política em relação às questões do Tibete e de Xinjiang” que era contrária aos fatos.
Fontes: agências SDA/AFP
Para conduzir o estudo da forma mais baseada em evidências possível, Weber e sua equipe compilaram antecipadamente diversos estudos internacionais e casos de repressão contra tibetanos e uigures. A partir disso, desenvolveram hipóteses sobre possíveis cerceamentos de direitos fundamentais na Suíça e analisaram as mesmas. Como ocorre também em outros países europeus, “dezenas de membros do serviço de inteligência” da República Popular da China mantêm-se em atividade na Suíça. Eles estão disfarçados, entre outras funções, de “funcionários da Embaixada ou de consulados” em território suíço.
O relatório menciona também exemplos de pressão exercida sobre autoridades suíças por parte do governo chinês. Não há avaliações conclusivas sobre o quanto essas pressões surtem efeito. O estudo conclui, portanto, que as autoridades locais geralmente se deixam intimidar menos do que ocorre em nível nacional.
Segundo Weber, uma consequência dessa repressão transnacional por parte da China é que ela mina a confiança dentro das comunidades de pessoas exiladas, podendo levar até mesmo a uma cisão. “Constatamos que muita gente da comunidade tibetana na Suíça tem fortes suspeitas com relação a outros membros da diáspora, que acreditam estarem trabalhando para ‘os chineses’.” A desconfiança é sobretudo grande com relação àqueles que estão na Suíça há pouco tempo, pois eles ainda têm família no Tibete, sendo, portanto, mais suscetíveis a pressões.

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Como a Suíça vai reagir
“Nosso relatório de pesquisa não deve alimentar ainda mais esse tipo de desconfiança”, acentua Weber. As tentativas de pressão feitas pela China já estão criando um clima de tensão entre as pessoas envolvidas. Segundo o pesquisador, é importante reconhecer que a situação é com frequência complexa e que há envolvimento de pessoas com todo tipo de motivação. “Os contatos com as autoridades chinesas não são, de forma alguma, prova de que você está sendo enganado ou mesmo realizando atividades de espionagem”, comenta Weber.
O pesquisador acredita que a a Suíça precisa agir. O Conselho Federal (n.r.: corpo de sete ministros que forma o Poder Executivo na Suíça) chegou a emitir um relatórioLink externo sobre os resultados do estudo, no qual condena com clareza a violação dos direitos fundamentais das comunidades de exilados e também lista uma série de medidas, entre elas uma seleção mais cautelosa de intérpretes no procedimento de concessão de asilo. No passado, surgiram acusações de que poderia haver informantes entre intérpretes. É preciso também que todas autoridades em nível federal, cantonal (estadual) e comunal (municipal) estejam sensibilizadas para que possam identificar e reagir a essa situação.
O Conselho Federal continua, contudo, a ter uma postura vaga quanto à forma como a Suíça tem intenção de confrontar a China com essas constatações – há referências somente ao diálogo sobre direitos humanos que a Suíça vem mantendo com a China desde 1991. No entanto, esse diálogo é frequentemente criticado por servir apenas como pretexto. Weber aponta que, nesse momento, há de se questionar qual papel as autoridades suíças devem desempenhar. “Os afetados têm relatado repetidamente que direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, estão sendo cada vez mais cerceados em favor de interesses econômicos”, relata o especialista. “Na nossa condição de democracia liberal, isso deveria nos preocupar”, acrescenta.

Conteúdo explosivo
Esse estudo tem uma longa história pregressa: o pedido para que fosse realizado remonta a uma petição de 2018 da ONG Sociedade dos Povos Ameaçados (GfbV, na sigla em alemão), que solicitou um relatório questionando se os direitos fundamentais dos povos oprimidos na China estariam sendo cerceados também dentro do território suíço. A seguir, a Comissão de Política Externa do Conselho Nacional (Câmara dos Deputados) instruiu o Conselho Federal a apresentar um relatório detalhado sobre a situação dos tibetanos e uigures no país.
Para a Sociedade dos Povos Ameaçados, as medidas propostas pelo governo federal não são suficientemente concretas. Em um comunicado à imprensa, a ONG reivindica que a Suíça adote uma definição clara de repressão transnacional, criando uma base jurídica adequada para combatê-la com eficácia. Além disso, a organização exige que seja criado um centro de denúncia e proteção, com a inclusão das pessoas afetadas nos processos de tomada de decisões políticas. O governo suíço, segundo as reivindicações da ONG, deveria também divulgar publicamente os casos e expulsar os perpetradores de forma consequente.
Nesse contexto, a Suíça não é um caso isolado. Em todo o mundo, a repressão transnacional tem crescido – um fenômeno que foi acelerado nos últimos anos pela digitalização e pela inteligência artificial. O uigur Zumretay Arkin, vice-presidente do Congresso Mundial Uigur em Munique, diz: “Praticamente todos os uigures no exílio já sofreram alguma forma de opressão por parte do governo chinês. Desde ligações da polícia chinesa e tentativas de bloquear viagens internacionais até detenção, prisão ou deportação para a China”.

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Um problema, segundo Arkin, é que as pessoas afetadas já se acostumaram com isso e acabam não se opondo. “Para muita gente, já se tornou tão normal ser vítima de espionagem que as pessoas nem pensam em registrar esse tipo de situação”, explica. O fato de a polícia não estar sensibilizada para a questão e de as evidências serem frequentemente bastante difíceis também contribui para o quadro.
David Missal, da Iniciativa do Tibete na Alemanha, confirma essa experiência. Segundo ele, além das comunidades da diáspora, é essencial envolver os políticos na questão: “Até agora, não houve nenhuma resposta política ao problema”, diz. “Gostaríamos que houvesse um serviço de apoio estatal para as pessoas afetadas pela repressão transnacional, que oferecesse também apoio psicológico e jurídico”, sugere Missal. A Alemanha também precisaria, segundo ele, de um estudo científico feito a pedido do governo como esse que foi publicado agora na Suíça.
Longa duração, procedimento único
Ralph Weber, o autor do estudo, também elogia a iniciativa da Suíça por isso: “Acho notável que o governo suíço, que é conhecido por sua posição cautelosa com relação à China, tenha encomendado esse estudo”.
Para publicar os resultados, o governo suíço levou, contudo, tempo. O material, que ficou pronto em abril de 2024, teve sua publicação repetidamente adiada. Ralph Weber diz: “Posso imaginar que se trata de um relatório especialmente sensível e que deve ter levantado algumas questões do lado administrativo, que precisaram ser analisadas detalhadamente”. Segundo pesquisas dos jornais Tamedia, não havia consenso entre as autoridades sobre como lidar com o “conteúdo explosivo” do estudo.

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75 anos de relações entre a Suíça e a China
A publicação chega no pior momento imaginável para as relações da Suíça com a China: este ano, os dois países comemoram 75 anos de relações bilaterais. Além disso, há também planos para renovar o acordo de livre comércio. A Comissão de Política Externa do Conselho Nacional já havia solicitado previamente que as conclusões do relatório fossem incorporadas às negociações sobre o acordo de livre comércio. No entanto, não há nenhuma referência a isso no relatório do Conselho Federal.
Ralph Weber acredita que o fato de os resultados da pesquisa estarem sendo seguidos de ações se deu graças às pessoas afetadas. Foram também importantes a inclusão do assunto no debate público e as manifestações públicas contra a repressão. “Muita gente que participa das pesquisas está cansada de dar continuamente informações sobre sua situação e ver que mesmo assim nada acontece depois”, finaliza Weber.
Edição: Benjamin von Wyl
Adaptação: Soraia Vilela

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