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Antissemitismo na Suíça

“Não tenho certeza se tanta coisa realmente mudou”

Paul Grüninger 1971
Foto de 1971 de Paul Grüninger, antigo chefe da Polícia de St. Gallen. Keystone / Str

Há cinquenta anos morria Paul Grüninger. O comandante de polícia salvou milhares de refugiados de serem enviados de volta à Alemanha antes da II Guerra Mundial – atos pelos quais foi punido e demitido. 

Só em 1995 é que ele foi completamente reabilitado, também graças ao livro “O caso Grüniger”. Encontramos o autor, o historiador Stefan Keller, para conversarmos sobre a elaboração do passado na Suíça.

Nos anos 1990, a discussão sobre o intermediário de fuga Paul Grüninger tornou-se o catalisador de um debate suíço sobre o passado. Este continuou com o conflito sobre contas inativas nos bancos suíços e a nomeação da Comissão Independente de Peritos Suíça – II Guerra Mundial, a chamada “Comissão Bergier”. Hoje, a discussão está novamente ganhando atualidade na elaboração sobre o passado com a Coleção Bührle, exposta no Museu de Arte de Zurique (Kunsthaus). 

swissinfo.ch: O que mudou na forma como a Suíça lida com o passado nos últimos 30 anos?

Stefan Keller: Não tenho certeza de que muita coisa tenha realmente mudado! Na discussão sobre a coleção Bührle, estamos vendo as mesmas histórias de sempre: negações, desvalorização e difamação. As pessoas ainda acreditam que a lei e a ordem prevaleceram aqui, enquanto o caos reinava em todos os lugares durante a II Guerra Mundial.

swissinfo.ch: No entanto, eventos decisivos aconteceram nos anos 1990: Paul Grüninger foi reabilitado em 1995 graças a seu livro, e em 1998 o autor do atentado a Hitler, Maurice Bavaud – 42 anos mais tarde do que na Alemanha. Finalmente alguma coisa estava acontecendo. Por quê?

S.K.: Com o fim da Guerra Fria, as frentes se dissolveram um pouco e muitas coisas foram repensadas. Isto se tornou evidente nos arquivos. Por exemplo, durante muito tempo prevaleceu a opinião de que os arquivos estavam lá principalmente para que o Estado pudesse se proteger. Os arquivistas informavam às autoridades se um historiador ou uma jornalista desejava ver algo ‘sensível’.

Stefan Keller
Stefan Keller, historiador e jornalista Gian Ehrenzeller/Keystone

Em 1997, a arquivista do cantão de Genebra queria me dar apenas um resumo do dossiê de um fugitivo extraditado para a Gestapo em 1938. Eu tinha todas as legitimações necessárias do fugitivo sobrevivente para ver seus arquivos. No entanto, a funcionária estatal se recusou a me deixar vê-los dizendo que, de outra forma, o homem acabaria fazendo um pedido de reparação! Somente quando solicitei a um advogado de Genebra para intervir é que me enviaram as cópias dos arquivos. Esta arquivista ainda pertencia à velha geração. Há muito tempo existia uma nova geração de arquivistas comprometida com o esclarecimento e que me ajudava muito, pois conheciam os dossiês e queriam que eles fossem utilizados.

O caso Grüninger

Em 1938 e 1939, o comandante da polícia de St. Gallen, Paul Grüniger, havia resgatado várias centenas, talvez vários milhares de judias e judeus e outros refugiados, que teriam sido enviados de volta para a Alemanha de acordo com a lei suíça. Grüninger foi sumariamente demitido na primavera de 1939. Após uma longa investigação, no final de 1940, o Tribunal Distrital de St. Gallen condenou-o a uma multa. Ele nunca mais encontrou emprego permanente, e morreu em 1972 pobre, também ostracizado em muitos lugares.

Nos últimos anos de sua vida, Paul Grüninger foi ocasionalmente homenageado por seus atos, por exemplo, pelo memorial israelense Yad Vashem. Mas foi somente em 1995 que o Tribunal Distrital de St. Gallen revogou o veredicto de 1940, e absolveu Grüninger. As bases para esta reabilitação foram o livro “O Caso Grüninger” de Stefan Keller, um parecer do professor de direito Mark Pieth baseado nele, a defesa do político de St. Gallen Paul Rechsteiner e o trabalho da associação “Justiça para Paul Grüninger”.

O caso Grüninger foi a primeira reabilitação deste tipo na Suíça. Mais tarde, houve uma lei que reabilitou todos os ajudantes de fugitivos punidos na era Nacional Socialista. Depois houve uma lei que também reabilitou os combatentes condenados da Espanha. Houve reparações – pelo menos simbólicas – para os perseguidos romani e para as vítimas do Verdingkinderwesen (n.t.: na história recente da Suíça, sobre a relocação de crianças – fora da família – para fins de sobrevivência e educacionais).

Grüningers Fall”Link externo: o documentário de Richard Dindo (1997).

swissinfo.ch: Por que demorou tanto tempo?

S.K.: O mito de que a Suíça havia sobrevivido à II Guerra Mundial por seus próprios esforços e com honra – e que na verdade foi um dos vencedores – sempre foi frágil, e sempre se soube que não era bem verdade. Mas ele foi tenazmente defendido, porque a ideia de “defesa do espírito nacional” – em todas as classes – também tinha estabilizado os conflitos sociais do período pós-guerra. Ainda em 1989, no jubileu do início da guerra em 1939, o exército suíço organizou uma grande comemoração chamada “Diamante” – como se houvesse algo para celebrar sobre essa guerra.

O assassinato de judias e judeus europeus também não foi um grande tema por muito tempo – e não apenas na Suíça, mas também internacionalmente. O livro base do historiador americano Raul Hilberg, “The Extermination of the European Jews” (O extermínio dos judeus europeus”, em tradução livre), publicado em 1954, permaneceu inicialmente um fracasso.

O termo “Holocausto” só se tornou familiar na Alemanha nos anos 80, através da série de televisão americana com o mesmo nome. A palavra hebraica “Shoah”, como sinônimo de extermínio de judias e judeus, foi introduzida na Europa pelo cineasta francês Claude Lanzmann, em 1984/85, com um filme sob este título. A ruptura da civilização, o evento central que representa o extermínio sistemático de judias e judeus na história da humanidade, foi, desta forma, percebida relativamente tarde.

Na Suíça, a injustiça que significou o envio de muitos milhares de pessoas à sua morte foi repetidamente tematizada – a injustiça de fazer negócios com os nazistas também foi um tema, mas não penetrou na corrente dominante por muito tempo.

swissinfo.ch: Quando isso começou?

S.K.: Encomendado pelo governo federal em 1957, um relatório bastante implacável do jurista Carl Ludwig sobre a política de refugiados foi feito. Ainda hoje ele pode servir como referência. Com base nisso, Alfred A. Häsler publicou o lendário livro “Das Boot ist voll” (“O barco está lotado”, em tradução livre)  dez anos mais tarde. Häsler trabalhou com os arquivos da Jewish Refugee Aid (Ajuda aos refugiados judeus) e pesquisou muitos destinos individuais.

Em 1973, a televisão suíça mostrou a série “A Suíça em Guerra”, de Werner Rings. Foi um sucesso notável, também porque o próprio Rings tinha vindo para a Suíça como refugiado. Depois disso, houve vários documentários e séries de jornais. Jornalistas e cineastas foram muito importantes para se chegar a uma elaboração sobre o envolvimento da Suíça no nacional-socialismo.

swissinfo.ch: Que vantagens tem o jornalismo para este tipo de reavaliação?

S.K.: Colocando em termos polêmicos: a pesquisa acadêmica, as universidades, vacilaram com o assunto por muito tempo. Assim, nós jornalistas aprendemos a não esperar pela academia. Como jornalista, você trabalha rápido, de forma não convencional, e não tem medo de fontes orais. Você também sabe como personalizar as histórias para que as pessoas as entendam: os números muitas vezes permanecem abstratos. Foram 25 mil ou 30 mil pessoas que foram mandadas de volta? Não é possível imaginar esse número de qualquer maneira! Mas se você sabe exatamente o que aconteceu com duas, três ou quatro pessoas – com nomes e endereços, e do seu próprio ponto de vista – então você tem uma ideia de tudo isso.

swissinfo.ch: Na época, você não apenas dedicou um livro ao ajudante de fuga Paul Grüninger, mas, junto com juristas, o colocou novamente frente ao tribunal em um novo julgamento, no qual ele foi considerado inocente. Por quê? A reabilitação de um homem morto faz algum sentido?

S.K.: Isso foi feito para a família, para os refugiados que lhe deviam a vida – e é claro que também foi uma política simbólica. Acho que é importante mostrar exemplos de bons símbolos. Não se trata apenas de lembrar e dizer algumas palavras simpáticas para elaborar o passado.

Albert Torten, links, aus dessen Familie 18 Personen von Paul Grüninger gerettet wurden und Moses Aschkenasy
Albert Torten, à esquerda, de cuja família 18 pessoas foram resgatadas por Paul Grüninger, e Moses Aschkenasy, à direita, fotografados em 30 de novembro de 1995 no Tribunal Distrital de St. Gallen no julgamento para a reabilitação do ex-capitão de polícia Paul Grüninger. Regina Kuehne/Keystone

São necessárias serem tomadas outras providencias: a reabilitação, as restituições, as reparações mostram primeiro que se reconhece um passado como errado ou como criminoso, e que se rompe com este. Quando lutamos pela reabilitação de Paul Grüninger como intermediário foi-nos dito inicialmente em St. Gallen que o conceito de reabilitação era estranho à lei de lá. O advogado Stefan Schürer é da opinião de que o caso Grüninger foi uma lição objetiva, uma “mistura de direito e história” – naquela época a história foi, pela primeira vez, colocada acima da lei.

Nós não colocamos a história acima da lei. Mas discutimos com argumentos naturais, pois em nenhum momento poderia ter sido correto enviar pessoas para a morte. A argumentação jurídica foi trabalhada por Paul Rechsteiner, representante dos descendentes de Grüninger, e por Mark Pieth, professor de direito. Em seu parecer, Pieth até mesmo defendeu que aqueles que obedeceram às ordens do Conselho Federal na época ou aqueles que as emitiram é deveriam ser realmente punidos. A ordem de entregar as pessoas a seus assassinos é sempre ilegal. É preciso recusá-la.

swissinfo.ch: Qual foi a reação?

S.K.: Claro que foi uma mensagem explosiva, pois ela também se aplica no presente e no futuro. As leis ou ordens não devem contradizer os direitos humanos fundamentais. Na época, acreditávamos que com a reabilitação de Paul Grüninger estávamos abrindo um novo capítulo na política suíça do passado. No entanto, logo que ganhamos o caso surgiu o debate sobre as contas inativas na Suíça, e a mesma atitude defensiva foi vista novamente: os bancos, assim consta a acusação, retiveram dinheiro de judias e judeus assassinados e não quiseram entregá-lo.

Todo ladrão é caçado, mas aqui, onde a propriedade de judias e judeus estava em jogo, a questão de seus bens estava sendo ignorada. Na época, eu entendi a resistência às exigências judaicas como antissemitas. O mesmo se aplica ao debate atual sobre a Coleção Bührle, onde quadros, anteriormente de propriedade judaica, foram compradas com dinheiro de negócios nazistas! Isso deveria ter feito soar o alarme em todo cidadão respeitável. Mas na Suíça eles se acham inocentes, e estão construindo um museu próprio para o algoz.

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Skulptur von jüdischen Gefangegnen

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swissinfo.ch: O debate sobre as contas inativas também levou à criação da “Comissão Independente de Peritos Suíça – II Guerra Mundial”?

S.K.: Correto. O debate acabou levando à criação da Comissão Independente de Peritos Suíça ou Comissão Bergier. O debate de Bührle também leva a novos esforços acadêmicos. O trabalho da Comissão Bergier ainda hoje é muito importante: o conteúdo de seu relatório de 13 volumes simplesmente não pode ser ignorado. Com o Relatório sobre Refugiados, publicado em 1999, abriu-se novos caminhos metodologicamente, pois  pela primeira vez a política de refugiados como um todo foi apresentada do ponto de vista dos próprios afetados: os refugiados.

Em conexão com este debate, outras reabilitações foram alcançadas. Por exemplo, a de Maurice Bavaud, de Neuchâtel, que tentou matar Hitler em 1938 e foi guilhotinado pelos nazistas por isso. Assim, o presidente da Confederação Suíça finalmente prestou-lhe homenagem e reconhecimento. Para todos os ajudantes de fuga que haviam sido punidos por seus atos houve uma comissão especial de reabilitação. Finalmente, houve a reabilitação coletiva dos voluntários espanhóis, que haviam lutado contra o fascismo na Espanha. A reabilitação dos combatentes punidos na Resistência Francesa e Italiana ainda está pendente.

swissinfo.ch: Agora até mesmo um memorial está sendo planejado, o apoio político é muito amplo, não há mais nenhuma crítica a ele. A elaboração do passado também pode estar se tornando um “clichê”?

S.K.: Essa é uma boa pergunta. Fiquei assustado quando vi o primeiro rascunho do memorial: um monumento para as vítimas suíças do nacional-socialismo. Como se a nacionalidade das vítimas fosse o critério central: muitos mais estrangeiras e estrangeiros foram mortos porque a Suíça não os acolheu ou os entregou aos nazistas. Entretanto, felizmente, a definição do memorial foi ampliada.

Também tenho algumas dificuldades com a iniciativa das “Stolpersteine” (pedra de tropeço, espalhadas pelo chão, em homenagem a pessoas mortas pelo nacional-socialismo) na Suíça. Na Alemanha, tanto quanto sei, as “Stolpersteine” foram introduzidas para marcar as casas das quais as pessoas haviam sido deportadas. Na Suíça não existem tais casas, no máximo alguns quartéis de refugiados ou albergues. A Suíça teria que colocar quase todas as suas Stolpersteine na fronteira, talvez construir um muro com elas, 30 mil pedras memoriais em uma pilha: isso sim seria o certo.

Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos

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