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ONG informa sobre abuso sexual infantil mas não é unanimidade

Keystone

Só quem tem filho pequeno para entender a preocupação dos pais com a possibilidade de abuso sexual infantil. O medo aumenta quando se sabe que a maioria dos casos acontece dentro das famílias: em três quartos dos casos, se conhece o agressor, que pertence ao seu meio social ou até familiar. 

Diante dessa aterrorizante realidade, a Limita – Organização Não Governamental suíça – que informa aos pais, por meio de palestras e workshops em escolas no país, sobre como evitar e se informar sobre o problema, que ainda é tabu. O trabalho da instituição é de extrema importância e esclarecedor, mas peca ao abordar a questão sob somente um único ponto de vista cultural.

Com o mote de “O seu corpo pertence a você”, a Limita prega, durante suas palestras, que a criança tem o direito de decidir como, quem e onde pode ser tocada. Até aí, todos concordam. O erro na comunicação com os pais vem à tona quando a instituição explica que isso deve ser aplicado até mesmo aos pais, avós ou tios mais próximos. Nesse momento, é possível detectar olhares na plateia. O desconforto deve-se ao fato de que, em algumas culturas, como a brasileira, é mesmo impossível dizer ao avô ou a avó que o seu netinho não quer beijo ou abraço. O fato é que, esse tipo de mensagem difundida em escolas suíças, com crianças de tantas nacionalidades, causa estranheza.

O perigo mora às vezes dentro de casa

Abuso sexual em crianças existe e não dá para fechar os olhos para o problema. E não pense que o culpado é sempre um estranho. Estatísticas mostram que, para piorar o quadro, o inimigo vive ao lado ou até dentro de casa. De acordo com dados da Limita de 2013 para a Suíça, 1% dos abusos sexuais em crianças na idade de um a cinco anos acontece quando o abusador é alguém que não se conhece. De acordo com a estatística, em 45% dos casos o culpado é o pai e em 3% são as mães quem cometem o ato. Na idade entre seis a 11 anos, a taxa de pais que abusam sexualmente de suas crianças cai: 26%, mas ainda continua alta; a taxa de mães abusadoras aumenta para 8%, assim como o crime cometido por estranhos: 8%.

Fonte: Averdijk,M, K. Müller-Johnson, M. Eisner (2012) 

Mais vale prevenir

Nos panfletos e materiais educativos sugeridos pela Limita estão inseridos o slogan “Mais vale prevenir do que remediar” e mensagens como as dos sete pontos que devem ser aprendidos pelas crianças, como “os seus sentimentos são importantes”, “você tem o direito de dizer não ou até mesmo “há segredos bons e maus”, todos de extrema importância. A Limita prega consciência sobre o assunto e ajuda as crianças a desenvolverem autoestima para dizer não. Vai às escolas, faz palestras para os pais, distribui panfletos e indica materiais de apoio, como livros educativos sobre o assunto. A instituição foi procurada pela reportagem de swissinfo.ch, mas não retornou as ligações e e-mails. A Limita mantém uma homepage, por onde pode ser contatada pelas escolas para palestras e disponibiliza materiais.

O que seria considerado abuso sexual? A Limita explica, por meio de panfletos, que “a violência sexual tem muitas formas de expressão: desde a nudez imposta, passando pelo consumo de pornografia infantil, contatos íntimos nos órgãos genitais, até o estupro”. Segundo a Organização, abuso sexual significa que um adulto abusa do poder que tem para explorar a falta de conhecimento, a confiança e a dependência de uma criança, com o objetivo único de satisfazer as suas próprias necessidades. A Limita acredita que o remédio contra esse mal é a informação. “Crianças bem informadas e autoconfiantes podem defender-se melhor contra a violência sexual do que crianças mal informadas e dependentes. A defesa mais eficaz é o respeito aos direitos da criança e agir levando suas preocupações muito a sério.

Miriam Müller tem experiência com crianças brasileiras que vivem na Suíça. A psicóloga acha que carinho ainda é fundamental para a criança. swissinfo.ch

A psicóloga e mediadora cultural Miriam Müller diz que apoia o trabalho da Limita e que entende a importância da orientação e da quebra de tabu em se falar sobre um tema tão delicado. Experiente em lidar com essas questões de diferenças culturais -já que vive há mais de 20 anos na Suíça – Miriam Müller faz um adendo: “como psicóloga, apoio. Temos que tomar cuidado mesmo. Mas como avó, eu jamais poderia aceitar que a minha única netinha rejeitasse meu carinho e minha filha assim permitisse. Eu ficaria extremamente chateada em perder o que há de mais lindo na nossa relação, que é a demonstração de amor por meio do contato físico, ou seja, beijos e abraços”, explica. De acordo com a psicóloga, a prevenção deveria passar pela orientação e observação da criança. “Quem sofre um abuso desse porte, apresenta comportamento diferente”, enfatiza.

O fato é que com esse estilo de comunicação, a Limita acaba por ser mal interpretada por alguns pais, perdendo assim a credibilidade e tendo sua mensagem enfraquecida diante das diferenças culturais. “O que é uma pena, já que a intenção é louvável e o tema precisa ser discutido e pensando em sociedade”, argumenta Miriam Müller.

A pediatra brasileira Erika Pereira concorda com a psicóloga. Segundo a médica, é preciso mesmo cuidar para que esse problema gravíssimo não aconteça. Mas tampouco é saudável limitar o contato físico das crianças com seus parentes. “É como se eu deixasse de dirigir um carro porque posso ter um acidente. É preciso cuidado para não construir uma geração avessa a carinho. O custo da atitude seria muito alto diante de um benefício muito questionável”, explica. Observar se a criança teve alguma mudança no comportamento, principalmente após o contato com alguma pessoa específica, seria mais eficaz do que simplesmente permitir que ela rechaçasse qualquer contato físico. De acordo com a pediatra, criança abusada sexualmente geralmente é assustada, pode mostrar alterações no apetite, tristeza, nervosismo, agressividade, enfim, se torna diferente do que era antes. É importante também prestar atenção em marcas físicas. Uma outra pista importante é se a criança muda o comportamento próxima a alguém específico. “Acho que essa questão passa mais sobre o quanto os pais prestam atenção em seus filhos”, explica.

Decisão é cultural e tem a ver com o país de origem

Embora a mensagem seja de extrema importância, a questão é cultural e o entendimento muda de acordo com o país. Ao final, cabe à família decidir como abordar e gerenciar o comportamento de outros adultos perante seus filhos. Em algumas culturas, contato físico praticamente inexiste, mas em outras, a mensagem da Limita soa inadequada. Para a brasileira Giuliana Poletini, que assistiu a palestra da Limita onde mora, a ideia de deixar com a criança a responsabilidade de decidir se quer contato físico com a família lhe pareceu muito estranha. “Como eu vou explicar à minha mãe que o meu filho não quer beijá-la? A mensagem que a organização passa é que a individualidade da criança precisa ser respeitada e que nenhuma aproximação deve ser feita se a criança não quiser”, explica a brasileira, que é mãe de um menino e uma menina. Para a chinesa *Jing Li, a mensagem do contato corporal não quer dizer nada. “As crianças chinesas não cumprimentam os parentes com beijos ou abraços. Isso é uma coisa muito rara de acontecer”, explica.

A suíça *Marlene Kech, no entanto, concorda com a Limita. “Eu mesma não tenho vontade de cumprimentar qualquer um com beijo no rosto. Por que o meu filho tem que ser obrigado a isso?”, questiona. Já a alemã *Corinne Müller acha a orientação exagerada. “Não dá para pensar nisso o tempo todo. O risco existe, mas o papel dos pais é tomar conta para que não aconteça”, avalia. Já a mexicana Verônica Mendoza acha que é importante observar as situações. “Na minha cultura, é muito frio ver uma criança cumprimentando familiares somente com aperto de mãos”, diz.

Na Grécia, a situação é parecida. De acordo com a grega Erika Lekatsa, a mensagem soa muito estranha a seus ouvidos. Em seu país, família é algo sagrado e inclui tios, tias, primos, enfim, todo um núcleo de pessoas que convivem mais ou menos juntas. “Passamos férias juntos com primos, dormimos nos mesmos quartos, nos beijamos e até sentamos nos colos dos tios quando somos pequenos. Temos uma relação muito próxima e nem por isso abuso sexual é regra”, explica. A colombiana Beatriz Pino, que criou seus dois filhos na Suíça, não concorda com esse tipo orientação. Criada muito próxima a seus 40 primos, ela vai ainda mais além: acredita que o contato físico funcione como um aprendizado. “É uma maneira de a criança aprender a ser afetiva. Isso significaria tirar a oportunidade de uma criança conhecer o afeto de uma outra perspectiva: vindo de outras pessoas que não são seus pais”, reitera.

Polêmicas à parte, o fato é que todo ser humano precisa de amor e o toque é uma das formas mais universais de demonstração de carinho. O perigo de abuso sexual existe em todas as culturas e desafia os pais de todo o mundo a lidar com isso. Com beijo ou sem beijo, o melhor é prestar atenção nas crianças e construir uma relação de confiança para que qualquer problema seja comunicado o mais rápido possível.  

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