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Crise aumenta esperanças de maior participação popular nas decisões

Duas pessoas debruçadas sobre um mapa e conversando
A crise da pandemia reforçará os instrumentos democráticos: alguns consideram que é preciso ainda esperar. Keystone / Alessandro Della Bella

Em muitos países enfermeiros e médicos foram aplaudidos durante a pandemia. Seria o momento de, não apenas exigir aplausos, mas também mais participação no processo político? Alguns especialistas acreditam que a crise é o momento ideal.

Verão de 2020: enquanto o novo coronavírus se disseminava pelo mundo, Globetrotter entrou para o noticiário ao proclamar a chamada “sociocracia”. A direção dessa conhecida rede suíça de agências de turismo declarou que seus funcionários deveriam poder participar das decisões gerenciais importantes, inclusive até decidindo quem seria demitido para responder à crise da empresa.

Globetrotter levantou assim um tema debatido internacionalmente: a democratização no mundo do trabalho. A crise da pandemia deixou clara a importância da mão-de-obra. Onde estariam os pacientes nas UTIs sem os profissionais de saúde? Como ficaria o consumidor sem os funcionários dos supermercados ou das lojas virtuais que, em meio ao “lockdown”, continuaram a trabalhar, mantendo a cadeia logística e garantindo que pedidos feitos pela internet chegassem a tempo? Se os funcionários são tão importantes para uma empresa, por que não deveriam poder co-decidir?

“Democracia no mundo do trabalho” refere-se a toda uma gama de medidas e instrumentos que dão aos funcionários maior influência no processo decisório das empresas. Um exemplo: ações organizadas pelos sindicatos como greves ou o direito do trabalhador de se organizar e formar, dentre outros, comissões de fábrica.

O tema também envolve a divisão de responsabilidades em tarefas e procedimentos de trabalho, votação de base sobre decisões estratégicas da empresa e até a eleição democrática dos chefes.

“Acima de tudo, as crises nos ensinaram que as pessoas não devem ser consideradas apenas como um recurso. Elas investem suas vidas, tempo e suor nas empresas para as quais trabalham e nos seus clientes”, escreve a professora de economia e sociologia da Universidade de Cambridge, Julie Battilana, em um editorial publicado no site da Universidade de Harvard. Ela e Isabelle Ferreras, também professora de Cambridge e Dominique Méda, professora da Universidade de Paris-Dauphine, lançaram um manifesto em maio de 2020.

Enquanto isso, mais de seis mil acadêmicos internacionais assinaram a declaração chamada “Democratizar, decompor e tornar o trabalho sustentávelLink externo“. Uma das primeiras a assinar foi Rahel Jaeggi, professora de filosofia na Universidade Humboldt, em Berlim.

Crise torna problemas transparentes

Por que lançar uma campanha por mais democracia em meio a uma crise? Não são reduziras as chances de sucesso, especialmente em um momento em que funcionários temem o desemprego e as empresas são obrigadas a reagir a situações que mudam constantemente? “Crise é sempre um momento de decisão. E é exatamente quando a situação chega ao seu ápice, que as coisas mudam mais rapidamente. No final, é melhor ou pior”, afirma Jaeggi.

Segundo ela, estamos no momento ideal: afinal, a crise da pandemia mostrou com clareza que existe uma carga excessiva de trabalho na área de saúde. Além disso, também os problemas derivados da terceirização ou das precárias condições de trabalho na indústria de beneficiamento de carne na Alemanha. “Os problemas não são novos, mas recebem uma atenção maior por parte da mídia.”

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Como é trabalhar na Suíça?

Este conteúdo foi publicado em Na série “Explicando a Suíça” compreenda como funciona o mercado de trabalho e o que as empresas estão esperando no futuro.

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A crise também questiona alguns dogmas, acrescenta Jaeggi. “Hoje parece não ser mais uma regra fixa para os governos evitar contrair dívidas. Pelo contrário, nunca houve tantas possibilidades de apoio governamental.”

Situação econômica piora após crise financeira

No entanto, especialistas já viam durante a crise financeira a necessidade crescente –  e também a oportunidade – de mais levar mais democracia às empresas. O professor australiano de economia, Russell Lansbury, declarou em 2009: “A crise financeira global representa (…) uma oportunidade de aplicar reformas que criam um local de trabalho mais democrático”. Uma razão para seu otimismo: as empresas frequentemente se reinventam em tempos de crise, especialmente quando se verifica que antigas formas de organização não funcionam. Por isso busca-se novas possibilidades.

Porém ocorreu o contrário: embora não existam estudos quantitativos sobre o nível de democratização no mundo do trabalho global, o chamado “Índice Global de Direitos da Confederação Sindical Internacional (CSI)” contradiz a tese. O relatório examina até que ponto os direitos dos trabalhadores são restritos e violados em vários países.

Nos anos que se seguiram à crise financeira, o índice se deteriorou. Em 2020, a ITUC afirmaLink externo que os direitos dos trabalhadores foram mais violados do que nos últimos sete anos. A tendência é de piora do quadro.

Doze países estão classificados em primeiro lugar no estudo da CSI: Áustria, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Islândia, Irlanda, Itália, Holanda, Noruega, Eslováquia, Suécia e Uruguai. Nestes países os direitos dos trabalhadores são violados apenas esporadicamente.

A Suíça, junto com outros 26 – dentre eles Espanha, França, Canadá, Japão, Cingapura e Namíbia – ficaram em segunda posição. A CSI não justificou sua classificação, mesmo apesar da insistência do portal. Entretanto, é provável que ela esteja relacionada ao direito à greve. No caso da Suíça, embora a Constituição helvética garanta o direito, ela também o restringe em alguns aspectos. As leis podem, por exemplo, “proibir certas categorias de pessoas de fazer greve”.

Entre os países da OCDE, os que tiveram o pior desempenho foram EUA, México (4ª posição – nestes países os direitos dos trabalhadores são violados sistematicamente), Coréia do Sul, Grécia e Turquia (5ª posição, sem direitos garantidos). A Turquia está entre os dez piores países no estudo.

Jaeggi não descarta esta possibilidade: “Claro que é possível que os direitos sejam ainda mais restritos ao invés de estendidos”, admite. “Crises econômicas podem levar as pessoas a dizer que se a situação está tão precária, que elas podem se considerar felizes de ter ainda um emprego”, explica. Ou seja, elas não iriam reivindicar mais democracia no local de trabalho. Isso diminui o poder de barganha dos funcionários”.

Por outro lado, a crise deu um poder de “foto” aos enfermeiros, categoria essencial, especialmente no momento da pandemia.

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Entrevistada pelo grupo de reflexão Common-Wealth, Ferreras também se mostra preocupada: “Não acredito que haja mudanças a curto prazo”. Mais democracia no local de trabalho, diz ela, é tudo, menos uma conquista fácil. Pelo contrário, “a pandemia piora a situação no mercado de trabalho”. Para a acadêmica, os trabalhadores deveriam insistir mais para superar a perspectiva negativa dos próximos tempos. Porém acredita que esta vontade prevalecerá.

A crise pode dificultar a introdução da democracia na empresa, como mostra o caso da Globetrotter. Ao ser questionada sobre a experiência da empresa com a nova forma de organização, a porta-voz Sandra Studer respondeu negativamente: “Devido à situação atual, onde muitos funcionários tiveram o tempo de trabalho reduzido e outros trabalham de casa, não podemos falar em situação normal.”

O fenômeno do trabalho à distância está intimamente ligado à pandemia. Seu efeito sobre a democracia no local de trabalho não está claro. Por um lado, a maioria dos especialistas concorda que essa nova modalidade dá aos funcionários mais liberdade de escolha.

Um estudo realizado na Nova Zelândia em 2015 também descobriu, com base em exemplos concretos, que os canais de comunicação digital como os portais de comunicação Slack e Teams, cuja utilização cresceu após o início da pandemia, podem dar uma boa base para aumentar a participação dos funcionários no processo decisório. Porem esses instrumentos apenas reforçam os direitos dos funcionários em empresas já democraticamente organizadas. No entanto, não democratizam ambientes onde não existem essas liberdades.

Porém alguns especialistas advertem que o “homeoffice” também pode aumentar a pressão sobre empregados e o controle.

E mesmo que os benefícios superem os inconvenientes, o trabalho à distância também tem seus problemas. Nem todas as profissões oferecem a possibilidade do “homeoffice”. Funções vitais na área de saúde, logística, comercio, não podem ser exercidas de casa. Outras tarefas simples também não podem ser executadas à distância. Resultado: exatamente os trabalhadores que já têm pouco a dizer nas decisões estratégicas das empresas é que não podem trabalhar de casa. Como a professora de filosofia Rahel Jaeggi resume: “A lacuna entre o setor criativo de ponta, por um lado, e o proletariado do setor de serviços, por outro, se alarga cada vez mais”.

Adaptação: Alexander Thoele

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