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Dupla-cidadania: de uma questão política controversa à normalidade

Dois passaportes: um da Suíça e outro da Espanha
Uma pergunta comum na vida de muitas pessoas: qual o seu país de verdade? A vida de uma pessoa com dupla-cidadania na Suíça. © Keystone / Christian Beutler

Quem se naturalizasse na Suíça precisava entregar seu passaporte original. Era o que a lei determinava 28 anos atrás. Porém a situação mudou graças a rápidas mudanças ocorridas no país. Hoje o número de naturalizações cresce. Um capítulo desconhecido da sua história política.

Ivona Domazet nasceu em Brunnen, um vilarejo no cantão de Schwyz, em 1992. Ela é filha de imigrantes croatas. Seus pais chegaram Suíça como trabalhadores sazonais que encontravam empregos nos hotéis da região turística do cantão de Schwyz, às margens do lago de Lucerna. Ivona sempre se sentiu como as outras meninas do vilarejo. “Na minha infância não importava só ter o passaporte croata e mais nenhum outro. Sempre me senti suíça”, afirma.

Mas em 1992 a nova Lei de cidadania entrou em vigor: desde então a dupla-cidadania passou a ser permitida. As mulheres estrangeiras podiam manter seus passaportes originais mesmo após se naturalizarem. Essa flexibilização foi precedida por uma reviravolta política, o que é surpreendente vista hoje, em retrospectiva.

Ainda em setembro de 1989, o Parlamento helvético manteve a proibição da dupla-cidadania. Entretanto, apenas seis meses depois, em março de 1990, o Conselho Nacional (Câmara dos Deputados) e o Conselho de Estados (Senado) voltaram a tratar do assunto e eliminaram esse artigo da lei. “Não é proibido voltar atrás depois de se refletir sobre o tema”, comentou na época o deputado-federal Beda Humbel (CVP, Partido Cristão-Democrata), comentando laconicamente a mudança de opinião dos parlamentares.

História força Suíça a se abrir

Humbel justificou essa “mudança” com os desenvolvimentos dos últimos seis meses: O Muro de Berlim tinha caído e o continente europeu vivia grandes mudanças. A Comunidade Europeia (CE – entidade predecessora da União Europeia) queria uma maior aproximação política e econômica entre seus membros.

Neste contexto, os círculos empresariais na Suíça pressionavam o governo. A economia temia desvantagens em relação a um espaço econômico europeu comum se a Suíça continuasse a proibir a dupla-cidadania. Além disso, o número de naturalizações diminuía. O passaporte suíço parecia perder sua atratividade, uma situação considerada insatisfatória pelo Conselho Federal (Poder Executivo)

Assim, a proibição da dupla-cidadania foi revogada sem a realização de um referendo. Como resultado, o número de naturalizações aumentou rapidamente no país. Elas dobraram em um ano para mais de 10 mil e continuaram a crescer nos anos seguintes – uma tendência que perdura até hoje. Nos últimos anos, mais de 40 mil pessoas foram naturalizadas na Suíça.

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A Suíça foi uma das pioneiras na Europa no reconhecimento da dupla-cidadania. A Alemanha, por exemplo, só tolerou a dupla-cidadania para seus cidadãos que se naturalizavam em outros países a partir de 1999, mas a princípio, somente se fosse para uma das nacionalidades da União Europeia ou da Suíça. A Áustria exclui até hoje a dupla-cidadania – exceto em casos especiais. Da mesma forma, qualquer pessoa que queira se tornar cidadão de Liechtenstein precisa abandonar a primeira nacionalidade.

Longo caminho para a dupla cidadania

Ivona Domazet atingiu a maioridade quando foi naturalizada, em 2010. Assim se tornou dupla cidadã croata-suíça. O impulso para a naturalização veio dos pais. Eles queriam que Ivona e sua irmã mais velha tivessem uma melhor vida na Suíça do que eles próprios. Como trabalhadores sazonais, os pais viveram muita rejeição, exclusão e discriminação no país.

O passaporte suíço chegou após dois anos, mas foi uma corrida cheia de obstáculos. “Na época pensei: por que demoram tanto tempo para esclarecer se mereço o passaporte suíço apesar de ter nascido aqui? Me sentia até um pouco uma criminosa”, se lembra Ivona.

Por que demoram tanto tempo para esclarecer se mereço o passaporte suíço apesar de ter nascido aqui? Ivona Domazetl, dupla-cidadã.

Em sua opinião, o teste de naturalização aplicado pelo seu município de residência, Brunnen, foi uma das exigências mais “absurdas”. Dentre outras questões, uma perguntava se o lixo doméstico era para ser jogado pela janela na rua, queimado na floresta ou entregue ao serviço de coleta de lixo. “Só o fato de fazerem essa pergunta já mostra o que as autoridades pensam de você”, reclama.

Naturalização facilitada para a segunda geração

Não faltou muito e Ivona poderia ter se beneficiado do procedimento simplificado de naturalização. Essa regra recente beneficia imigrantes de segunda geração, mas já também foi levada à plebiscito 16 anos atrás. Apesar de a proposta ter sido aprovada nas urnas pela maioria dos eleitores, recebeu o “não” da maioria nos cantões (n.r.: propostas de mudança constitucional levadas a plebiscito na Suíça devem ter maioria de eleitores e de cantões, ou seja, aprovada na maioria dos cantões).

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Hoje a Suíça já permite à terceira geração de estrangeiros de se naturalizarem através de um processo mais rápido e simples. Os pedidos dessas pessoas, cujos pais já nasceram na Suíça, só precisam ser aprovados em nível federal sem passar pelo nível comunal (municipal).

Dupla-cidadania ainda controversa

A dupla-cidadania é permitida na Suíça sem restrições desde 1990. Já houve diversas tentativas de revogá-la, principalmente através de iniciativas do Partido do Povo Suíço (SVP, na sigla em alemão, direita nacionalista), cujo eleitorado praticamente dobrou desde então. Porém o Parlamento federal nunca aprovou essas propostas, como também qualquer restrição aos direitos civis dos duplo-cidadãos, dentre eles a sugerida exclusão de cargos políticos em nível federal.

Recentemente, o foco se voltou à dupla-cidadania de suíços do estrangeiro. Aproximadamente 75% dos membros da chamada 5a Suíça (as colônias de suíços que vivem no exterior) têm uma ou mais cidadanias, além do passaporte suíço. Um grupo de especialistas sugeriu, em 2019, que essas pessoas deveriam perder os direitos políticos a partir de um certo número de anos vivendo fora do país.

Jogadores de futebol treinando no campo
Normalidade na Suíça: a seleção nacional é composta por muitos jogadores que têm a dupla-nacionalidade. © Keystone / Walter Bieri

Outra proposta de alguns círculos políticos, mas que ainda não encontrou apoio: pessoas, cujos antepassados emigraram da Suíça há muitas gerações, não devem mais poder transmitir a cidadania suíça a seus filhos.

Parte da normalidade no país

Na Suíça, de qualquer forma, a dupla-cidadania parece ter se tornado um fenômeno comum. Uma indicação disso está na dificuldade em obter números precisos sobre a questão. Os serviços parlamentares não sabem informar quantos senadores e deputados têm dois ou mais passaportes. O Departamento Federal de Estatísticas também não consegue fornecer dados confiáveis sobre o número total de pessoas na Suíça que possuem outro passaporte, além do suíço. Do grupo de pessoas com menos de 15 anos faltam dados correspondentes: sem eles já seria cerca de um milhão.

Um milhão de histórias de vida com a dupla nacionalidade, um milhão de sentimentos desses cidadãos. Ivona Domazet, por exemplo, sempre viaja com seu passaporte suíço e, às vezes, acha que não tem nada a ver com a Croácia. “Mas quando estou no país dos meus pais, respiro seu ar e me sinto, de alguma forma, em casa. É o que eu sinto”. Ivona Domazet é suíça, mas também croata.

Artigo publicado originalmenteLink externo no site da televisão pública suíça SRF.

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