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Da violência das favelas do Rio para Zurique

Ocupação da favela da Maré no Rio de Janeiro por tropas militares em 30 de março de 2014. AFP

Anistia Internacional apresenta na Suíça relatório que mostra que Brasil é o país com maior número de homicídios do mundo.

Terezinha de Jesus e Ana Paula Oliveira fizeram suas primeiras viagens internacionais essa semana. Pegaram um avião no Rio de Janeiro com destino a Inglaterra, Holanda, Suíça e Espanha. Moradoras das comunidades do Morro do Alemão e da favela de Manguinhos, talvez elas nunca fariam esse itinerário se não fosse pela luta na qual estão engajadas: fazer justiça pela morte dos filhos cometida pela polícia carioca. Unidas pela dor mais profunda, a do luto de um filho, as duas mães foram trazidas à Europa pela Organização Não Governamental Anistia Internacional para dar voz às milhares de outras famílias que perderam seus filhos, na maioria negros e jovens, mortos por policiais em incursões nas favelas. De acordo com ONG, o Brasil é o país como o maior número de homicídios do mundo: das 56 mil pessoas assassinadas em 2012, 30 mil eram jovens e 77% negros.

A viagem faz parte do lançamento da Campanha Jovem Negro na Suíça, que tem como objetivo mostrar aos suíços e à comunidade internacional o que vem acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro, cidade sede dos Jogos Olímpicos de 2016. O Brasil foi escolhido como um dos países prioritários para a Anistia Internacional da Suíça, que sediará outras ações até o próximo ano com foco nos temas esportes e direitos humanos. As duas mães vieram acompanhadas de Renata Neder, Coordenadora da Campanha da ONG no Brasil, que apresentou para cerca de 50 pessoas em Zurique o relatório Você Matou Meu Filho – Homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro, que é um triste retrato da diferenciação entre classe social e cor da pele feita pelo Estado. “Pesquisas mostram que a Polícia que mata o negro, oferece um tratamento diferenciado a um branco que mora nas partes mais abastadas da cidade”, explica Renata Neder, que veio a Zurique para o lançamento da Campanha. Durante os eventos, a ONG aproveita para colher assinaturas para petições e enviar às autoridades brasileiras para que as mortes sejam investigadas. Atualmente apenas 8% dos homicídios são levados à justiça.

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Entrevista com Ana Paula

Este conteúdo foi publicado em Uma das mães de crianças mortas em operações policiais conta a sua história.

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O relatório apresenta investigação exclusiva sobre execuções extrajudiciais, homicídios outras violações de direitos humanos praticados pela Polícia Militar. A pesquisa que deu origem ao relatório foi desenvolvida entre agosto de 2014 a junho deste ano, visitas de campo e entrevistas com vítimas, familiares de vítimas, testemunhas, defensores de direitos humanos, representantes de organizções da sociedade civil, especialistas e autoridades da área de segurança pública. O principal objetivo da pesquisa foi analisar um conjunto de casos de mortes provocadas pela Polícia do Rio, verificando a existência de indícios de execução extrajudicial e em que medida os policias têm usado a força de forma desnecessária, excessiva e arbitrária. Para trabalho de campo, foi escolhida a favela de Acari, que está situada na região da cidade do Rio de Janeiro com o maior número de registros de homicídeos decorrentes de intervenção policial em todo o Estado.

O documento traz em números a real barbárie que cidadãos de favelas vem sofrendo e aprofunda as questões do racismo institucional e impunidade no país. Não é novidade que o Brasil tem vivido, nos últimos 30 anos, uma crise na segurança pública, chegando a registrar 56 mil homicídios por 100 mil habitantes. De 1980 a 2012, a taxa de homicídios aumento 143% no país. Em um período de dez anos (2005-2014), foram registrados 8. 466 casos de homicídio decorrente de intervenção policial no estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital. Das 1275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% eram homens, 79% negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade. A cor da pele, nesse caso, é definida pelo médico que atesta o óbito, e não por autoclassificação, como acontece nos censos.

Racismo e violência: velhos conhecidos

A violência contra jovens negros e pobres no Brasil tem sido observada e estudada por outros órgãos internacionais. A Organização das Nações Unidas para Educação,  Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil, em parceira com a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) da Presidência da República, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Ministério da Justiça lançou esse ano um indicador inédito, o chamado Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) – Violência e Desigualdade RacialLink externo. O indicador mostra que a cor da pele dos jovens está diretamente relacionada ao risco de exposição à violência. O novo índice foi calculado com base em cinco categorias: mortalidade por homicídios, mortalidade por acidentes de trânsito, frequência à escola e situação de emprego, pobreza no município e desigualdade. Os dados são de 2012.

As Nações Unidas, em seu Relatório sobre Desenvolvimento Humano do Brasil, chama a atenção para o tema violência. O estudo, feito em 2005 pelo PNUD, concluiu que a população negra está em situação desfavorável em todos os indicadores. O “Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 – Racismo, pobreza e violência” descreve as desigualdades raciais em áreas como renda, educação, saúde, emprego, habitação e violência. O estudo aborda ainda os mitos raciais surgidos ao longo da história brasileira — como o racismo científico e a democracia racial —, a história e os desafios do movimento negro no país e a pobreza política a que a população negra está submetida. O PNUD também apresenta propostas para combater o racismo no país. É o primeiro relatório desse tipo já publicado.  

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Entrevista com Terezinha

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O racismo institucional presente na sociedade brasileira e, consequentemente, nas abordagens policiais, foi resultado da pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) em 2003. Com o título de Abordagem Policial, Estereótipos Raciais e Percepções da Discriminação na Cidade do Rio de Janeiro, o estudo se propos a conhecer os mecanismos de policiamento ostensivo, buscando verificar a possível influência de filtros socias e raciais na definição dos “elementos suspeitos”, ou seja, das pessoas com maior probabilidade de serem paradas e revistadas pela Polícia. Suspeita que se confirmou durante o trabalho.

De acordo com a coordenadora do Projeto, Silvia Ramos, indícios mais claros da seletividade racial e social surgem quando se examina a incidência de revistas corporais registrado em quase metade das abordagens no intereeior de ônibus ou trem. Mais da metade (55%) das pessoas autoclassificadas como pretas e metade dos jovens de 15 a 24 anos parados pela Polícia, a pé ou em outras situações, disseram ter sofrido revista corporal, contra 33% do total de brancos parados e 25% de pessoas na faixa etária de 40 a 65 anos. As pessoas com renda mensal de até cinco salários mínimos sofreram revista em mais de 40% dos casos, enquanto as de renda superior a cinco salários mínimos, somente em 17%. “Parece confirmar-se, assim, a idéia de que a Polícia não só para menos transeuntes brancos, mais velhos e de classe média, como tem mais pudor em revistá-lo”, explica Ramos.

Os filhos que se vão em uma questão de segundos

Eduardo de Jesus, filho de Terezinha, tinha 10 anos quando foi morto por policiais militares na porta de sua casa, no complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 2 de abril deste ano. O menino estava com a mãe, assistindo televisão, quando saiu da casa e sentou próxima a porta para esperar a irmã, que estava chegando. Segundo Terezinha, foi tudo uma questão de segundos. “Eu escutei só um estouro e um grito dele: Mãe… Nisso eu corri para o lado de fora e me deparei com aquela cena horrível do meu filho lá caído”. Terezinha, na hora, acusou os policiais e partiu para cima deles. Um dos policiais apontou o fuzil para a sua cabeça e disse: “Assim como matei seu filho, eu posso muito bem te matar porque eu matei um filho de bandido, um filho de vagabundo.” Ameaçada pela Polícia, Terezinha vive hoje escondida no estado do Piauí.

O filho de Ana Paula, Jonatha, tinha somente 19 anos, quando foi assassinado em Manghinhos. Segundo Ana Paula, foi a Polícia Pacificadora da comunidade que acabou com a vida do seu filho. “E depois dele, outros dois também foram mortos”, diz. Em depoimento emocionado, em Zurique, ela expressou sua dor em palavras. “Os policiais disseram que meu filho teria trocado tiros. Meu filho não era bandido. Era uma menino alegre, muito amado, que gostava de viver. Nós mães, nessa situação, não temos nem direito ao luto por termos que correr atrás de justiça. Boa parte da sociedade aceita as mortes que acontecem em favelas por acharem que todo mundo ali é criminoso. Eu aceitei o convite da Anistia Internacional porque eu quero fazer da minha voz, enquanto eu viver, a do meu filho clamando por justiça”. 

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