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Governo de Berna pede desculpas a trabalhador infantil

Essa famíia pobre de Berna perdeu a guarda de três crianças. Paul Senn, FFV, Kunstmuseum Bern, Dep. GKS. © GKS.

Berna se tornou o primeiro cantão suíço (estado) a pedir retratação a algumas dos milhares de "Verdingbuben".

Elas eram crianças de famílias pobres, que eram colocadas em outras famílias para trabalhar como mão de obra barata na agricultura até os anos 1960.

Com um mínimo de proteção por parte das autoridades, muitas crianças sofriam com os maus tratos e excesso de trabalho, como mostra um estudo realizado por pesquisadores da Universidade da Basileia.

A pesquisa havia sido encomendada pelo governo cantonal de Berna em 2006. Há uma semana os resultados foram publicados em um livro, cujo título é “As autoridades decidem…pelo bem-estar da criança?”.

A prática de recolocar crianças de orfanatos ou famílias pobres era bastante comum em regiões agrícolas do cantão de Berna como o Emmental e Simmental, que foram tomados como foco principal para a pesquisa.

A equipe de historiadores, advogados e sociólogos examinou o desenvolvimento da Lei da pobreza e crianças em necessidade e analisou como ela foi aplicada. Além de estudar arquivos contemporâneos e textos jurídicos, os pesquisadores também entrevistaram nos últimos anos aproximadamente 300 das “crianças” vítimas da prática.

Tempos duros

“Quando uma família passava por tempos difíceis, eles podiam pedir ajuda à sua comuna de origem (‘Heimatort’, em alemão). As autoridades municipais poderiam decidir se forneciam essa ajuda ou separavam os membros da família”, conta a pesquisadora Loretta Seglias.

Devido às várias gerações de migrantes internos que abandonavam as regiões rurais de Berna, um grande número de pessoas vivendo em outras partes do país tinham raízes nessas regiões. Em caso de necessidade, elas eram obrigadas a solicitar ajuda nesses locais.

“Havia duas formas diferentes de recolocação: através da Lei da pobreza originada no século 19 ou pelo caminho da tutela através da Lei de proteção infantil de 1912”, completa. 

“As crianças poderiam ser retiradas de suas famílias e recolocadas sob tutela se estivessem correndo risco ou fossem negligenciadas, mas a interpretação era bastante flexível, o que dava às autoridades uma grande margem de manobra.”

E como a demanda de mão de obra na agricultura era elevada, as crianças também poderiam vir de orfanatos ou lares para crianças. Algumas pessoas chegavam mesmo a tomar iniciativa e enviavam seus filhos para outras famílias antes que fossem forçadas a tomar tal decisão.

Trauma

O sistema era praticamente não regulamentado até pouco depois da II Guerra Mundial. Foi quando se tentou introduzir leis de proteção para tornar o controle mais rigoroso, exigindo-se, por exemplo, autorização por parte das famílias de acolho para receber crianças.

Mas aqueles que partiam descrevem, em sua grande maioria, a experiência como traumática. Na perspectiva atual, é difícil compreender como se dava tão pouca atenção ao bem-estar das crianças. Muito frequentemente elas eram tratadas como servos, e não membros da família de acolho.

Como os pesquisadores descobriram através das suas entrevistas, as crianças envolvidas no sistema sentiam-se isoladas e discriminadas. Suas lembranças são de impotência e medo.

Roland Begert, originário de Berna e nascido em 1937, foi uma dessas crianças. Ele foi recolocado em uma família de agricultores após doze anos passados desde a mais tenra infância em um lar infantil.

Suas mais tristes lembranças são menos as privações físicas na fazenda onde viveu, do que os sofrimentos emocionais, particularmente o fato de ter sido sempre excluído das festas familiares como Páscoa ou Natal, e não ter tido companheiro de brincadeiras.

Retratação

Begert, que escreveu um romance baseado na sua história pessoal, acredita que o pedido de retratação tem um certo valor para algumas das vítimas, mas não para ele. “Ele vem de pessoas que não viveram esses anos ou que nem tinham nascido, ou seja, não me traz nada.”

“Mas estou convencido que algumas das vítimas estavam esperando por isso”, relatou à swissinfo.ch.

Christoph Neuhaus, chefe do Departamento de Justiça no governo cantonal de Berna, declara esperar que a apresentação de retratação formais em nome do cantão tenha algum significado para essas pessoas.

Cerca de 100 pessoas participaram de um evento no histórico prédio da prefeitura em 15 de março, onde a nova pesquisa foi lançada, assim como o pedido de retratação.

“Foi muito emocionante, pois muitas pessoas vieram me falar depois do evento para dizer que a retratação tinha um peso para elas”, explica Neuhaus.

Marie Reichen, que participou do evento, se mostrou satisfeita de escutar as palavras do funcionário graduado do governo de Berna, como publicou o jornal local “Der Bund”.

Aos 78 anos, ela foi retirada da sua família em uma região de língua francesa aos nove anos de idade, logo depois do falecimento da mãe. Ela passou depois seis anos trabalhando em fazendas do Emmental e Simmental.

Contexto social

Begert ressalta que, apesar do caráter negativo das suas experiências, ele se sente capaz de ver sua história em um contexto social e conseguiu, portanto, perdoar sua família de acolho.

“Precisamos ver isso no contexto da época. Eu acabei compreendendo, após ter refletido sobre a questão e trabalhado tudo o que ocorreu comigo naqueles anos. Havia vozes críticas, mas em grande parte o sistema era visto como justo.”

“Também existiram os bons pais adotivos, que deram o melhor de si para dar um novo lar às crianças.”

A crescente prosperidade econômica nos anos do pós-guerra, a modernização da agricultura e as mudanças fundamentais na compreensão da infância contribuíram para o abandono gradual da prática da recolocação na Suíça.

Begert acredita que um exame histórico do tema é mais importante do que pedidos oficiais de retratação ou compensação financeira. “É preciso que ele esteja na memória pública e nos livros de história, sobretudo para que os jovens possam saber o que ocorreu e tenham mais sensibilidade para essa questão.”

A prática de colocar crianças oriundas de famílias pobres ou orfanatos para trabalhar em fazendas, à troca de cama e comida, era comum até os anos 1960 na Suíça.

Até os primeiros anos do século 20 era comum também a organização de leilão de crianças trabalhadoras em cidades e vilarejos helvéticos.

Apesar de não existirem estatísticas oficiais, pesquisadores estimam que aproximadamente 100 mil crianças foram recolocadas entre 1920 e 1960.

Uma proposta de lei sobre um fundo de compensação para as vítimas em Berna ainda está em debate no Parlamento cantonal de Berna. “Mas precisamos consultar as autoridades do nível federal, pois essa prática era comum até fora das fronteiras do cantão”, lembra o chefe do Depto. de Justiça.

Adaptaçao: Alexander Thoele

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