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Uma população desesperada à beira da loucura

Aylan Al-Kurdi, a criança de 3 anos de idade encontrada morta em uma praia em Bodrum, Turquia, estava em um barco de refugiados sírios que tentava alcançar a Grécia. Keystone

Enquanto a Europa enfrenta uma onda de refugiados, um novo relatório da Comissão de Inquérito para a Síria enfatiza o sofrimento sem fim de civis, particularmente mulheres e crianças, que estão com sua saúde mental cada vez mais ameaçada, conta para swissinfo.ch um especialista do CICV.

Aylan Kurdi, a criança encontrada morta em uma praia de Bodrum, na Turquia, assombra as mídias sociais e as primeiras páginas dos jornais. Uma tragédia que ilustra de certa forma o novo relatório da Comissão Internacional Independente de Inquérito para a Síria, publicado quinta-feira em Genebra. Um organismo mandatário do Conselho de Direitos Humanos, sediado em Genebra.

“A vida das crianças sírias foi marcada pela brutalidade da guerra. São incontáveis aquelas que sofreram as mesmas violações que os adultos, sem distinção. As partes em conflito continuam recrutando e utilizando crianças nas hostilidades (…) Como resultado da exposição repetida à violência e à insegurança, as crianças de toda a República Árabe Síria demonstram sintomas traumáticos, incluindo distúrbios psicológicos, comportamentais e estresse pós-traumático. A duração prolongada do conflito (quatro anos e meio, n.d.r.) enfraquece a resistência dessas crianças”, dizem os investigadores, entre eles a suíça Carla Del Ponte, após as investigações realizadas de 10 de janeiro a 10 de julho deste ano.

Os beligerantes perderam o controle da guerra

Especialista em saúde mental do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Senop Tschakarjan confirma a sombria constatação do relatório: “Cada novo ataque, cada nova repressão aumenta o número de pessoas traumatizadas, especialmente as crianças. Muitos civis parecem enfrentar a situação. Mas o risco de desmoronar psicologicamente aumenta com a duração do confito.”

Com relação à duração da guerra, o relatório da ONU é pessimista: “Nenhum dos beligerantes não parece à beira do esgotamento, nem em posição de conseguir uma vitória militar total. Após mais de quatro anos de luta, todas as partes envolvidas conseguiram apoio suficiente, ganhos territoriais e capacidade operacional para se manter durante muitos anos.

A concorrência entre as potências regionais gerou, entre outras consequências, uma exacerbação alarmante da dimensão sectária, iniciada pela intervenção de combatentes estrangeiros e extremistas religiosos.

As partes interessadas no conflito sírio foram perdendo pouco a pouco o controle do curso dos acontecimentos devido a uma variedade de fatores externos que têm obscurecido a dimensão interna da guerra.”

Hospitais deliberadamente alvejados

Entre outras consequências, o sistema de saúde está arrasado. “O uso contínuo do governo sírio de bombardeios aéreos indiscriminados destruiu hospitais, hospitais de campanha, clínicas, equipamentos médicos, entrepostos de medicamentos e causou o fechamento temporário ou permanente dos estabelecimentos de saúde.”

Mas todas as partes do conflito têm a sua quota de responsabilidade, dizem os investigadores da ONU: “Os beligerantes submeteram o pessoal médico aos ataques, muitas vezes como parte de ações mais amplas contra as instalações e a infraestrutura sanitária.”

Além desses ataques deliberados, o grupo Estado Islâmico (EI) agrava ainda mais a situação nas zonas que controla: “As regras impostas pelo EI contra a mistura dos sexos têm um impacto adverso sobre as mulheres e as meninas em sua capacidade de acesso aos cuidados de saúde. Muitos médicos fugiram das áreas controladas pelo EI em 2013, e há muito poucas médicas na região. Consequentemente, os especialistas para as mulheres e as meninas são extremamente raros.”

Durante a fuga, o pesadelo continua

Só resta a fuga para escapar deste inferno: “Com mais de quatro milhões de refugiados e 7,6 milhões de deslocados, metade da população síria está agora desenraizada”, diz relatório.

Embora um número crescente tenta chegar à Europa, a maioria sobrevive em acampamentos na Síria e nos países vizinhos. E o relatório é desolador em relação a essas instalações: “Os acampamentos são geralmente lugares onde reina a insegurança. A necessidade de segurança para os membros do sexo feminino da família, o custo do cuidado das famílias grandes, levaram a um aumento dos casamentos precoces nos acampamentos. Isso tem consequências na educação, na saúde e nas vidas de moças e meninas da Síria. As crianças mostram sinais óbvios de trauma. A exposição repetida à violência, a perda da família, os vários deslocamentos e a instabilidade têm um impacto particularmente negativo sobre as vidas das crianças sírias.”

No entanto, como observa o médico Senop Tschakarjan, a segurança é a primeira condição para não agravar ainda mais a saúde mental das vítimas dessa guerra que deixou mais de 230 mil mortos, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos Direitos (OSDH): “Em termos de saúde mental, a priori é melhor ficar na região, onde a mentalidade e a cultura são próximas. A fuga para a Europa aumenta ainda mais os traumas das vítimas da guerra, incluindo quando são rejeitadas no continente. Mas a possibilidade de viver em um lugar seguro é a melhor maneira de parar o ciclo de violência e traumatismos”.

Pois, adverte o relatório: “Milhares de sírios colocam suas vidas nas mãos de redes de passadores e traficantes para tentar viagens arriscadas em barcos improvisados em todo o Mediterrâneo. Desde 2011, mais de 2 mil refugiados sírios se afogaram na tentativa desesperada de encontrar segurança na Europa.

A Europa já não pode fugir às suas responsabilidades

“O fracasso global em proteger os refugiados sírios agora se traduz em uma crise no sul da Europa. É essencial que os países respeitem o princípio de não repulsão e respeitem suas obrigações em virtude do direito internacional consuetudinário e convencional”. Um apelo que começa a ser ouvido, mas que continua dividindo os membros da União Europeia.

Uma vergonha

A inação do Conselho de Segurança da ONU é uma vergonha, disse quinta-feira em Genebra a ex-procuradora Carla Del Ponte. Ela denunciou a impunidade total na Síria.

“Minha frustração é enorme”, disse à imprensa suíça na apresentação do 10º Relatório da Comissão de Inquérito da ONU sobre as violações dos direitos humanos na Síria.

“A justiça poderia ser um primeiro passo importante, mas na Síria prevalece a impunidade”, disse a ex-procuradora dos tribunais internacionais sobre a antiga Iugoslávia e Ruanda.

A comissão de inquérito tem repetidamente solicitado em vão nesses quatro anos, que o Conselho de Segurança da ONU apele ao Tribunal Penal Internacional (TPI) ou a um tribunal ad hoc da situação na Síria. Leal ao presidente Bashar al-Assad, a Rússia ameaçou vetar qualquer tentativa nesse sentido.

No seu relatório, que será apresentado em 21 de setembro ao Conselho de Direitos Humanos, a Comissão denuncia o rosário de horrores que continua acontecendo na Síria na indiferença geral. Todos os beligerantes cometeram crimes de guerra e crimes contra a humanidade nos últimos meses, de acordo com o relatório.

“A população civil está sofrendo de forma inimaginável e o mundo está assistindo tudo passivamente”, disse por sua vez o presidente da comissão de inquérito, o brasileiro Paulo Sergio Pinheiro.

Fonte: ATS

Adaptação: Fernando Hirschy

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