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“Não reconhecem o direito de ser mãe com a mulher que amo”

Apesar da possibilidade de adotar o filho do parceiro(a), as famílias lgbt ainda são discriminadas pela lei. © Keystone / Gaetan Bally

Para os homossexuais que desejam ser pais na Suíça, o caminho é árduo. Entre lacunas legais e procedimentos complexos, a lei ainda está longe de lhes garantir a igualdade de tratamento. Os casais do mesmo sexo voltam agora suas esperanças para o projeto de lei que prevê o casamento para todos, a ser examinado pelo novo Parlamento recém-eleito.

“Pensei durante muito tempo que não eu tinha o direito. Minha parceira falou muito cedo sobre a ideia de termos um filho “, recorda Véronique. Depois de muitas reflexões, de dar passos longos e caros, e depois de muitas emoções, Véronique e Julie*, que vivem em uma parceria registrada desde 2013, perceberam seu desejo comum de fundar uma família.

Um banco de esperma no estrangeiro

Na Suíça, o acesso à reprodução medicamente assistida (RMA) está reservado aos casais heterossexuais casados. As duas mulheres, que vivem no cantão de Berna, examinaram várias soluções alternativas. “Primeiro pensamos em uma doação privada de esperma e perguntamos a alguns homens, que ao final de contas não mostraram interesse no projeto”, explica Véronique.

O casal recorreu então a uma clínica de fertilidade em Londres. “Neste assunto, notamos que a legislação inglesa era semelhante à da Suíça; a doação não é anônima. A nossa filha poderá, se assim o desejar, obter informações sobre o seu dador quando atingir a maioridade. Uma condição que consideramos decisiva”, explica Véronique.

Para a inseminação, foi necessário planejar uma viagem à capital britânica no momento certo do ciclo hormonal de Verônica. Ela engravidou na primeira tentativa. “Tivemos sorte”, diz ela. Véronique e Julie são agora mães de uma menina de três anos. No entanto, seu caminho para serem consideradas por lei como uma família ainda não terminou.

Ter mais de dois pais?

“O ideal seria ter quatro pais”, diz Fabien*. Este Bernês de 45 anos e seu companheiro têm um filho de 7 anos. “A mãe dele tem sido minha melhor amiga desde a adolescência. Somos ambos homossexuais e desejávamos ser pais”, explica. Neste caso, não há necessidade de recorrer à RMA ou a um procedimento de adoção. Fabien e sua melhor amiga construíram juntos o projeto de co-parentalidade. Seus respectivos parceiros nem sempre estiveram envolvidos e não podem ser reconhecidos como pais pela lei, que proíbe haja mais de dois pais. “No entanto, essa seria uma prática a ser reconsiderada, pois hoje não é incomum ver crianças crescendo com mais de dois adultos, tanto em famílias arco-íris como em outras famílias”, diz Fabien. No entanto, atualmente, nenhum país concede a possibilidade de se ter mais de dois pais legais.

* Os nomes foram trocados.

Um processo de adoção intrusivo, demorado e caro

Até o final de 2017, apenas Véronique, a mãe biológica da criança, podia ser reconhecida como mãe legal. Graças a uma revisão da lei suíça de adopção, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2018, os homossexuais podem agora adotar o filho do seu parceiro.

Para que Julie também fosse reconhecida por lei como a mãe da menina, ela teve que embarcar em um processo de adoção, que está longe de ser uma mera formalidade administrativa. Em primeiro lugar, a legislação impõe alguns critérios preliminares: os pais devem ter partilhado três anos de vida juntos e a criança deve ter pelo menos um ano de idade.

Deux femmes en robe de mariées qui s embrasse, avec le Palais fédéral en toile de fond
“Não casadas desde 2013 por questões políticas”: o movimento político “Operação Líbero” organizou em 2018 um protesto para pedir abertura do casamento aos casais do mesmo sexo. Keystone / Anthony Anex

“Por um lado, este atraso permite que as autoridades assegurem que ambos os pais estão realmente comprometidos com a criança”, diz Véronique. No entanto, podem surgir problemas como no caso da morte da mãe biológica, ela observa: “Meus pais poderiam, por exemplo, querer ficar com a criança. No nosso caso, felizmente isso não aconteceria porque as nossas famílias nos apoiam.”

O procedimento varia de acordo com o cantão ou região linguística. Em primeiro lugar, ele envolve a entrega de uma série de documentosLink externo, incluindo um atestado de bons antecedentes criminais, um certificado do Ministério Público, uma cópia da declaração de impostos, um atestado médico, uma biografiaLink externo pormenorizada, etc. Uma pesquisa social é então realizada dentro da família, que envolve uma visita domiciliar e, por vezes, até mesmo uma entrevista com a criançaLink externo se ele ou ela tem mais de seis anos de idade. As famílias terão também de pôr as mãos na carteira, uma vez que o procedimento custa entre cerca de 1000 francos até mais de 3500 francos em alguns cantões de língua alemã. 

Um mecanismo inadequado

O sistema é o mesmo daquele criado em 1973 para famílias que se recompõem. “Na maioria dos casos, é um padrasto que adota os filhos de sua esposa, enquanto o pai biológico é desconhecido, falecido ou ‘desinvestido’ (sem relações). Um procedimento que não está de forma alguma adaptado à realidade das famílias arco-íris”, explica Catherine Fussinger, co-presidente da Associação das Famílias Arco-írisLink externo.

“Às vezes fico zangada por ser tratada como alguém que deve provar ter ficha limpa”. Véronique *

A organização tenta sensibilizar as autoridades para as especificidades das famílias do mesmo sexo, e apoiá-las no processo. A Comissão não tem conhecimento de qualquer processo que tenha resultado numa decisão negativa, mas muitos pedidos estão pendentes. “A longa espera até que a adoção seja concluída rompe a unidade e a identidade da família”, disse Maria von Känel, diretora da associação, em recente apresentaçãoLink externo. Sem mencionar que o procedimento terá de ser repetido para cada nova criança da família.

Por enquanto, Véronique e Julie continuam à espera de uma resposta das autoridades a seu pedido; um período durante o qual a sua família não tem cobertura legal adequada. “Às vezes fico zangada por ser tratada como alguém que deve provar ter ficha limpa. Se eu fosse uma mulher solteira, seria reconhecida como mãe, mas não sou reconhecida com uma mulher que amo”, diz Verônica.

Casamento para todos: a solução

Para acabar com as desigualdades que persistem, as associações de direitos LGBTIQ estão defendendo a introdução do “casamento civil para todosLink externo“, que garantiria aos homossexuais os mesmos direitos dos heterossexuais. Isto inclui o acesso à adopção, bem como à RMA e ao duplo parentesco para casais lésbicos desde o nascimento da criança. Dessa forma, deixaria de ser necessário recorrer a um procedimento de adoção, já que a esposa da mãe biológica seria automaticamente reconhecida como a segunda mãe legal.

O uso de “sub-rogação” na maternidade (barriga de aluguel) continuará a ser proibido na Suíça, como na maioria dos países europeus. No entanto, alguns casais do sexo masculino contornam a lei viajando para o exterior para fazê-lo, enquanto outros optam por um projeto de co-parentalidade com uma mulher.

No plano político, a situação permanece incerta. Em 30 de agosto, a Comissão de Assuntos Jurídicos do Conselho Nacional (Câmara dos Deputados) decidiu em favor da liberação do casamento para casais do mesmo sexo, excluindo a possibilidade de utilizar-se a RMA. Quando o projetoLink externo “Casamento para todos” foi lançado para consulta, a maioria das partes preferiu uma versão completa, incluindo o acesso à doação de esperma para se ter um filho.

Caberá agora ao Conselho Nacional tomar uma decisão, que não sairá antes de março de 2020. A bola está, portanto, no campo do novo Parlamento.

*Nomes fictícios

E no estrangeiro?

Conforme destacado pela Associação das Famílias Arco-ÍrisLink externo, 11 países ocidentais garantem não apenas o casamento a casais do mesmo sexo, mas também todos os direitos parentais relacionados, ou seja, adoção intra- e extrafamiliar, acesso à RMA e o reconhecimento desde o nascimento da filiação dupla de ambos os pais do mesmo sexo.

A Suíça é um dos quatro países da Europa Ocidental que concedem menos direitos aos parceiros homossexuais. Ela está à frente da Grécia, de Liechtenstein e da Itália, que concedem aos casais do mesmo sexo o direito de entrar numa união civil, mas negam-lhes todos os direitos parentais, como mostra este gráfico.

“Nosso país está em má companhia com seus grandes vizinhos”, diz Catherine Fussinger. Na verdade, se a França e a Alemanha liberaram o casamento a casais do mesmo sexo, estes ainda não têm acesso à RMA. No entanto, depois de acalorados debates e manifestações dos opositores, a França poderá tomar este passo no próximo ano. A Assembleia Nacional francesa acaba de dizer “sim” ao RMA para todos, enquanto o Senado deverá votar o tema em janeiro.

Fonte: Associação das Famílias Arco-Íris

Adaptação: DvSperling

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